A
legitimidade processual, uma velha questão cada vez mais actual.
I - Em especial, a posição do particular no
contencioso administrativo
Em primeiro lugar, referir e analisar a qualificação do
particular no processo. É um erro bastante comum admitir e configurar o Direito
Administrativo como o direito da Administração, devendo antes ser definido como
o direito dos particulares nas suas relações com a Administração. Pois só é
justificada a existência da entidade “Administração” se houver administrado.
Como é sabido a Constituição define o âmbito da justiça
administrativa por referência aos litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas. Uma relação jurídica é, sem dúvida, a relação social disciplinada
pelo direito, pressupõe uma relacionamento entre dois ou mais sujeitos, que
seja regulado por normas jurídicas, das quais decorrem as posições jurídicas,
activas e passivas, que constituem o respectivo conteúdo. Torna-se, por isso,
conveniente e necessário, quanto mais não seja para o efeito, pensar no mundo
jurídico-administrativo em termos de relação
jurídica, e não apenas a partir das categorias da actividade da
Administração, da actuação da Administração (sobretudo do ato administrativo, entendido como o objeto do contencioso, por definição).
Como ensina Vieira de Andrade [1], a
justiça administrativa deve ser entendida como um sistema de mecanismos e de
formas ou processos destinados à resolução das controvérsias nascidas de
relações administrativas.
Não pense o leitor, que toda a relação como foi acima
definida tenha que figurar um particular, verifica-se, desde logo, a existência
de litígios de que os particulares estão ausentes: os litígios que surgem nas
relações entre entes administrativos. Porém,
é sentido afirmar a importância da posição que os particulares ocupam, desde a
importância histórica (está na origem
e marcou o desenvolvimento do contencioso administrativo) e prática (numa esmagadora percentagem, os
processos são iniciados pelos particulares) – constituindo ainda o domínio
típico da justiça administrativa.
Apenas para clarificar conceitos, a designação de justiça administrativa por alguns
autores e de contencioso administrativo
por outros em nada altera o âmbito do objeto. Sendo indiferente a utilização
das duas expressões. Todavia, optamos pela designação de contencioso
administrativo, por um lado pela associação ao controle jurisdicional da
legalidade administrativa, pois a concepção de justiça administrativa comporta
uma maior amplitude (procedimento administrativo, que inclui as garantias de
impugnação por via administrativa); por outro lado, a expressão contencioso
administrativo sublinha, com maior ênfase, o carácter especializado da
instituição que fiscaliza e controla a juridicidade da actuação administrativa.
Em princípio, no contexto do contencioso administrativo,
interessa apenas e em específico as relações administrativas interpessoais e
intersubjectivas, por razões de delimitação funcional os tribunais
administrativos só podem conhecer, por regra, litígios entre partes ligadas por
uma relação jurídica externa. Pelo
respeito consagrado na Lei Fundamental decorre do princípio da separação dos
poderes, os tribunais julgam do cumprimento das normas e princípios jurídicos,
não lhes cabendo, em regra, o conhecimento de questões suscitadas nas relações
interiores à própria Administração.
Para efeitos de determinação da relação jurídica e sua
inclusão no âmbito do contencioso administrativo, devem considerar-se relações
jurídicas administrativas externas e interpessoais, no que interessa para o
presente estudo:
a. as
relações jurídicas entre a Administração
e os particulares, incluindo:
i.
as relações entre organizações
administrativas e os cidadãos (chamadas as relações
gerais de direito administrativo),
ii.
as relações entre as organizações
administrativas e os membros, utentes e pessoas funcionalmente ligadas a essas
organizações (as chamadas relações
fundamentais ou relações especiais de direito administrativo),
iii.
as relações entre entes que actuem em
substituição de órgãos integrados na Administração (como os concessionários,
que hoje funcionam como entidades credenciadas para o exercício de funções de
autoridade) e os particulares.
A posição emblemática do particular deve ser preservada,
pois o contencioso administrativo tem sido entendido como um instrumento de
defesa dos particulares perante e contras as atividades ilegais produzidas pela
Administração lesivas dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Recordemos a evolução da conceção do particular no
contencioso administrativo[2], a conceção
clássica, de inspiração francesa, não tratava o particular como parte no
processo. Pois era entendido que o particular não fazia valer nenhum direito
subjetivo face à Administração, uma vez que todo o processo é dirigido e
envolvente do ato administrativo que, por sua vez, era impugnado. No seguimento
de uma panóplia de autores mais clássicos, no contencioso administrativo, em
especial no recurso de anulação “não são os direitos subjetivos dos
particulares, mas antes a legalidade objetiva do ato administrativo que é
objeto de valoração e decisão”[3]
Por se considerar que o particular não defendia nenhum
direito e interesse próprio, era limitado a sua intervenção ao processo, assim
como o acesso ao juiz, sendo apenas admitido em determinadas razões, para
funcionamento dos tribunais. O processo contencioso funcionava num mundo
autónomo onde somente em circunstâncias excecionais se abria a porta de entrada
ao particular. Já que a finalidade do contencioso administrativo não era a
promoção e proteção dos indivíduos face à Administração, mas apenas o modo de
esta controlar os seus atos (controlo a
posteriori), socorrendo-se da ajuda dos particulares. Um pouco como o Monte Olimpo, onde o acesso era negado
aos comuns mortais.
Como refere e bem Pereira da Silva[4], o
particular é que estava ao serviço do contencioso administrativo, sendo um puro
objeto do poder soberano, a fim de se obter uma atuação administrativa mais
conforme com a lei e não o contencioso que está ao serviço dos particulares
para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Inversão do
papel de instrumento, se antes era o particular, agora é o contencioso
administrativo. Atualmente a conceção de contencioso e a sua classificação como
direito instrumental ou adjetivo face à pretensão do particular
Uma conceção deste estilo é incompreensível e
inconcebível nos presentes tempos e mesmo só admissível como elemento histórico
se tivermos em conta a ascendência autoritária do contencioso administrativo.
Já o insigne mestre, Marcelo Caetano, defendia as teses
subjetivistas, mas de modo implícito, pois o autor ensinava que a defesa da
existência de um direito à legalidade feito valer no processo, que consistia
num “poder dos particulares de exigir dos órgãos e agentes da Administração a
observância estrita dos preceitos legais que os vinculam, serve, a um tempo, os interesses privados dos
particulares e o interesse público de uma Administração submissa à lei: é,
pois, o mais característico direito subjetivo público dos particulares”[5], negrito
nosso, veja o leitor que a tutela do particular no contencioso não é direta nem
imediata, bastava que ocorresse uma relação de titularidade entre o particular
(pessoa singular ou coletiva) do recorrente e a pretensão que era deduzida em
juízo.
Antes da Constituição de 1976, era sentida já a
necessidade de considerar a posição do cidadão na relação entre o
sujeito/Estado no contencioso administrativo. A Lei Fundamental vem consagrar
uma imposição de tratamento do individuo como sujeito nas suas relações com a
Administração (v. arts. 1.º,;18.º, n.º1; 266.º, n.º 1, todos da Constituição da
República Portuguesa, CRP) e a sua consideração como parte no contencioso
administrativo (artigos 20.º, n.º 2 e 268.º n.º 3). Pretendeu o legislador
constituinte considerar o particular como parte no contencioso administrativo,
bem como garantir que aos mesmos era conferido os mais diversos meios
contenciosos jurisdicionais de impugnação das atuações ilegais e lesivas dos
seus direitos, “é garantido aos
interessados recurso contencioso”, artigo 268.º, n.º 3, da CRP, de atos
administrativos, “quais atos
administrativos definitivos e executórios”, art. 268.º, n.º 3, ilegais, “com fundamento em ilegalidade”, art. 268.º,
n.º 3, que tem como objetivo a proteção das suas situações jurídicas
subjetivas, “para defesa dos seus
direitos”, art. 20.º, n.º 2. O reconhecimento constitucional do direito ao
contencioso administrativo como uma especificação no âmbito jurisdicional
comum, “direito de acesso aos tribunais”,
art. 20.º, n.º 2, CRP. Não restando dúvidas quanto à opção constitucional pelo
tratamento do particular como parte no contencioso administrativo.
O entendimento do particular como titular de posições
jurídicas substantivas face à Administração vai implicar uma mudança radical do
modo de conceber a figura da legitimidade processual no contencioso
administrativo.
Se enquanto a configuração de que o particular não fazia
valer no processo nenhum interesse e direito próprio, a figura da legitimidade
tinha uma importância relevante. Pois, o particular como impugnante e carecido
de um interesse próprio, apenas como meio auxiliar de autoverificação da
legalidade, a determinação do acesso ao juiz não tinha que ver com a afirmação
de um direito subjetivo lesado, mas apenas com a necessidade de demonstrar um
interesse de facto do particular,
conferindo ao indivíduo legitimidade para ser parte no processo[6].
Tal entendimento levou à institucionalização de uma acção
genérica popular, por razões de expediente e funcionamento dos tribunais, o que
teve como consequência necessária que o critério de seleção dos sujeitos que
podiam fazer valer em juízo as suas pretensões fosse, unicamente, o interesse
processual, como condição de legitimidade. Em vez de olhar para a situação
jurídica material para aferir a legitimidade processual, fazendo a subsunção
entre a relação material e processual, de modo a assegurar que no processo
compareçam em juízo os titulares da relação material controvertida.
Aos particulares, em especial aos cidadãos era negado a
qualidade de parte no contencioso, a legitimidade não era aferida pelo quid da relação estabelecida com a
Administração, dependendo de uma maior ou menor abertura do rumo seguido pelo tribunal. A perversão
da legitimidade processual, que na maioria das vezes, não coincidia com a
titularidade de direitos dos particulares, tornava-se o cerne de toda a
problemática e conformação do objeto processual. Saber se a parte era ou não
legítima determinava em garantir ao particular uma tutela efetiva ou não.
Uma conceção adequada da legitimidade e que melhor tutele
os particulares terá, forçosamente, que procurar assegurar a ligação entre a
relação material substantiva e a relação processual, fazendo com que os
participantes na ação sejam os sujeitos efetivos da relação material e não um
conceção que pretenda substituir-se à consideração das situações jurídicas
substantivas das partes e arvorar-se em critério exclusivo de determinação do
acesso ao juiz.
Ao definir como parte legítima o autor que alegue ser parte na relação material
controvertida, é-nos fornecido um indicador seguro quanto à posição de
construção de um novo figurino processual administrativo, como consequência da
predominância da ação do particular em sede jurisdicional. Depois de ter
reconhecido, no art. 2.º, um princípio da tutela jurisdicional efetiva, pelo
qual se pretende assegurar aos cidadãos a plenitude do acesso à justiça
administrativa, e de ter reforçado, no art. 3.º, os poderes do juiz
administrativo, em termos de melhor garantir a eficácia da tutela
jurisdicional, a regra da legitimidade processual enunciada no n.º 1 do art.
9.º, do CPTA, evidencia o propósito de construir e enformar todo o sistema
judiciário em torno da figura da relação jurídica do particular.
II -
Legitimidade Processual
O nosso legislador parece ter instituído um princípio
geral do conceito de legitimidade ativa, no art. 9.º, n.º 1 do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)[7],
superando a conceção clássica e fragmentária deste problema. A cada meio
contencioso estava destinado um critério de aferição do pressuposto processual,
a legitimidade processual. Obviamente, que foi intenção do legislador
concentrar num único preceito – em correspondência com as normais legais
presentes nos arts. 26.º e 26.º-A do Código de Processo Civil (CPC), os dois
modelos típicos de legitimidade direta – a
substância da relação jurídica onde se funda a ação de função subjetiva (n.º
1 do art. 9.º) e a titularidade de um
interesse difuso no que se refere à ação popular (n.º 2).
O n.º 1 do artigo 9.º refere que “o autor é considerado
parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”,
pretendo abranger situações em que existe um interesse pessoal na demanda. Por
outro lado, a ressalva contida no segmento inicial do preceito (“Sem prejuízo
do disposto no número seguinte e do que no artigo 40.º e no âmbito da acção
administrativa especial se estabelece neste Código”), evidencia que estamos
perante um princípio geral que não põe em causa o regime específico aplicável à
acção sobre contratos (a que se reporta aquele artigo 40.º), bem como à
impugnação de actos administrativos (artigo 55.º), à condenação à prática do
acto devido (artigo 68.º) e ao contencioso dos regulamentos (artigos 73.º e
77.º).
Por sua vez, o n.º 2 do artigo 9.º, dá azo ao exercício
da acção popular, ao estipular que “independentemente do interesse pessoal na
demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensores dos
interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm
legitimidade para propor e intervir, nos termos, previstos na lei, em processos
principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens
constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo,
o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os
bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais” (cfr. artigo 52.º,
n.º 3, da CRP).
A expressão “nos termos previstos na lei”, ínsita no n.º
2 do artigo 9.º, pretende efectuar uma remissão para os artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, diploma
que regula, em termos gerais, o direito de participação procedimental e de
acção popular e que fixa, designadamente, os requisitos de que depende o
reconhecimento da legitimidade popular. Assim, o artigo 2.º explicita que são
titulares do direito de acção popular “quaisquer
cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos” (n.º 1) e ainda as
autarquias locais, “em relação aos
interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva
circunscrição” (n.º 2). Por outro lado, as associações e fundações
defensoras de interesses difusos dispõem de legitimidade activa desde que
possuam personalidade jurídica, incluam expressamente nas suas atribuições ou
nos objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção
de que se trate e não exerçam qualquer tipo de actividade profissional
concorrente com empresas ou profissões liberais (artigo 3.º). Outra inovação,
prende-se com a possibilidade conferida ao Ministério Público, o n.º 2 do
artigo 9.º estendeu-lhe o direito de acção popular, para tanto passa assim a
ter poderes de iniciativa processual, não apenas na defesa do interesse geral
da legalidade (Ação Pública), mas ainda para assegurar a protecção
de interesses difusos (Ação Popular).
Vejamos agora com maior atenção aos regimes específicos
da legitimidade no contencioso administrativo onde são aplicáveis consoante o
tipo de pretensão que poderão ser requeridas no âmbito da açao administrativa especial, e, desde logo, no que respeita à impugnação de actos administrativos e condenação à prática de um acto legalmente
devido, assim como as demais pretensões possíveis no âmbito da açao administrativa especial.
O artigo 55.º sistematiza as regras de legitimação para a
impugnação de actos administrativos. Nos
termos do n.º 1 desse artigo, poderá impugnar um acto administrativo:
a) quem
alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter
sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos,
noutro sentido AROSO DE ALMEIDA[8], ao
afirmar que o regime próprio da acção administrativa especial, quando está em
causa a prática ou a omissão de um acto administrativo impugnável ou de uma
norma – reconhecendo a legitimidade activa ao MP e a órgãos administrativos,
não exigindo aos particulares, quantos aos pedidos impugnatórios, a
titularidade de uma posição jurídica subjectiva substantiva, bastando-se com a
existência de um interesse directo e
pessoal na invalidação do acto ou da norma.
b) o
Ministério Público;
c) pessoas
colectivas públicas e privadas, quanto aos direito e interesses que lhes cumpra
defender,
d) órgãos
administrativos, relativamente a actos praticados por outros órgãos da mesma
pessoa coletiva;
e) presidentes
de órgãos colegiais, em relação a actos praticados pelo respectivo órgão, bem
como outras autoridades, em defesa da legalidade administrativa, nos casos
previstos na lei;
f) pessoas
e entidades mencionadas no n.º 2 do artigo 9.º, pretendendo referir-se os
titulares de interesses difusos.
O n.º 2 do artigo 55.º reporta-se, por seu turno, à acção
popular correctiva, permitindo que “qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos
civis e políticos”, possa impugnar deliberações adoptadas por órgãos das
autarquias nas circunscrições em que se encontrem recenseados.
Para além de continuar a admitir-se, nos termos
tradicionalmente aceites, a acção popular, para a defesa de interesses difusos,
e a acção pública, para a defesa da legalidade.
No que concerne à legitimidade neste tipo de pretensão (condenação à prática do ato legalmente
devido), o artigo 68.º do CPTA fixa um elenco de situações mais restrito do
que aquele que se encontra definido para a impugnação de actos administrativos[9].
No cotejo com a precedente disposição do artigo 55.º,
constata-se que não é feita qualquer referência aos órgãos administrativos e
aos presidentes dos órgãos colegiais, o que significa que
estas entidades, podendo embora impugnar, com base em ilegalidade, um ato
praticado por um outro órgão da mesma pessoa coletiva ou pelo respetivo órgão
colegial, não dispõem já de legitimidade para recorrer à ação de condenação à
prática do ato devido para reagir contra situações de ilícita omissão ou recusa
expressa da prática de ato.
Acresce, que em conformidade com o estabelecido no artigo
68.º, n.º 1 aliena c), o exercício da ação pública por iniciativa do Ministério
Público está limitada aos casos em que “o dever de praticar o ato resulte
diretamente da lei e esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um
interesse público especialmente relevante ou de qualquer dos valores e bens
referidos no n.º 2 do artigo 9.º”.
No mais, mantêm-se as regras de legitimidade já
enunciadas para a impugnação dos atos administrativos, pelo que o pedido de
condenação à prática de ato devido pode ser formulado nos termos gerais por “quem
alegue ser titular de um direito ou interesse…” (artigo 68.º, n.º 1, alínea
a)), por “pessoas coletivas…” (alínea b)) e pelas “demais pessoas e entidades
mencionadas no n.º 2 do artigo 9.º” para a defesa de interesses públicos
(alínea d)).
Relativamente, à
impugnação de normas, importa ter presentes os dois tipos de pretensões que
poderão ser deduzidos. A declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral (que tem em vista a eliminação da
norma do ordenamento jurídico), pode ser pedida
por quem seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir
a sê-lo em momento posterior, e ainda pelo Ministério Público, oficiosamente ou
a requerimento de qualquer das pessoas ou entidades que sejam titulares de
interesses difusos. Quando deduzido por particular, torna-se ainda necessário
“que a aplicação da norma sido recusada por qualquer tribunal, em três casos
concretos, com fundamento na sua ilegalidade”, o que consubstancia um
pressuposto processual autónomo relativamente ao da legitimidade. A desaplicação ao caso concreto (que, em
caso de procedência, apenas impede que a norma produza efeitos em relação ao
impugnante, sem afetar a sua vigência para o futuro), pode ser pedida pelo
lesado ou, por quaisquer pessoas ou entidades que sejam titulares de interesses
difusos, que, neste caso, dispõem de legitimidade para deduzir diretamente o
pedido, não necessitando que o Ministério Público funcione como intermediário.
Note-se ainda que nesta segunda situação apenas é conferida legitimidade ao lesado efetivo (assim se compreende o
n.º 2 do artigo 73.º) e não a um potencial
lesado, que poderia apenas vir a ser afetado no futuro.[10]
A declaração de
ilegalidade por omissão, que tem lugar quando se verifiquem “situações de
ilegalidade por omissão de normas cuja adoção, ao abrigo de disposições de
direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a atos
legislativos carentes de regulamentação”, pode ser requerida pelo Ministério
Público, pelas pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no n.º 2
do artigo 9.º e quem alegue um prejuízo resultante da situação de omissão
(artigo 77.º, n.º1). Trata-se, assim, de um pedido que pode ser formulado no
exercício da ação pública, no interesse geral da legalidade, ou no exercício da
ação popular, para defesa de interesses difusos, ou, ainda, a título
individual, por quem possa demonstrar ter sido lesado pela falta de
regulamentação.
Apenas por necessidade didática e num breve parágrafo, já
que a querela doutrinária que fez correr (no caso, escrever) rios de tinta já
se encontra esbatida. O legislador em jeito de novidade, à semelhança do que já
sucedera com a nova redação dada ao n.º 3 do art. 26.º, do CPC, utilizando
contudo uma fórmula verbal diversa da que consta do dispositivo processual,
tomou posição explícita da divergência quanto ao critério de determinação da
legitimidade, dando agora como assente que a legitimação processual no
contencioso é aferida pela relação jurídica controvertida tal e qual como é apresentada pelo autor.
A ideia de legitimidade processual inculca a remissão
para os ensinamentos apreendidos no âmbito da jurisdição comum. A legitimidade
de parte[11]
e a sua elevada importância. Para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito
da questão, julgando acção procedente ou improcedente, não basta que as partes
tenham personalidade judiciária e gozem de capacidade judiciária. É preciso
que, além disso, elas tenham legitimidade
para a acção, que o autor e o réu sejam partes legítimas. É essencial que
estejam em juízo como autor como réu, as partes
exactas da relação substantiva.
Ser parte legítima na acção é ter o poder de dirigir a
pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível, o poder de
condução do processo.[12] A parte
terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode valer a
pretensão em face do demandado, fazendo e estabelecendo a lei uma presunção de
que a pretensão existe. Pois se assim não suceder, a decisão que o tribunal
viesse a proferir sobre o mérito da acção, não poderia surtir o seu efeito
útil, visto não poder vincular os verdadeiros sujeitos da relação material
controvertida, ausentes da lide.
Já não se trata, note-se bem, de saber quem pode propor a
acção ou contra quem pode a acção ser proposta. Desde que tenha personalidade e
capacidade judiciária, qualquer pessoa pode propor a acção em juízo.
Em jeito de conclusão, a legitimidade pode ser compreendida em diversos sentidos, numa primeira aceção, é um pressuposto processual que uma vez não verificado, poderá obstar à apreciação da questão a fundo pelo tribunal. Num outro entendimento é a correspondência, o ponto de encontro entre a relação material controvertida (relação jurídico-administrativa) e a relação tripartida (particular-Administração-Tribunal), confronto em sede jurisdicional.
Miguel Machado,
aluno n.º 16305
[1]
Em rigor, VIEIRA DE ANDRADE, JOSÉ CARLOS, in Justiça Administrativa, pág. 9 a
12, Almedina, Coimbra, 2005
[2]
Veja-se PEREIRA DA SILVA, VASCO, in Para um Contencioso Administrativo dos
Particulares, Esboço de uma Teoria Subjetivista do Recurso Directo de Anulação,
pág. 67 e ss, Almedina, Coimbra, 1989.
[3]
ENTERRÍA, GARCIA DE/FERNANDEZ, TOMÁS-RÁMON, in Curso de Derecho Administrativo,
vol. II, pág. 39, Madrid, 1986.
[4]
[4]
Veja-se PEREIRA DA SILVA, VASCO, in Para um Contencioso…., pág. 70 e ss,
Almedina, Coimbra, 1989.
[5]
CAETANO, MARCELO, in Comentário ao Acórdão do Conselho Ultramarino (Secção de
Contencioso) de 13 de Janeiro de 1961, pág. 328 e 329
[6]
PEREIRA DA SILVA, VASCO, in O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pág. 63 e ss, 2ª Edição Almedina, 2009
[7]
CADILHA, CARLOS FERNANDES, Legitimidade Processual, in CJA, IV Seminário de
Justiça Administrativa, pág. 9, 2002
[8]
V. AROSO DE ALMEIDA, MÁRIO, in Manual de Processo Administrativo, pág. 58 – 62,
Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2012.
[9]
FERNANDES CADILHA, CARLOS ALBERTO, in Dicionário de Contencioso Administrativo,
pág. 336, Almedina, Coimbra, 2006
[10]
LIBERAL FERNANDES, in Sobre a Legitimidade em procedimento administrativo dos
sindicatos dos trabalhadores da Administração Pública, CJA, n.º 56, pág. 32
[11]
Por todos, ALBERTO DOS REIS, in Legitimidade das Partes, no Bol. Fac. Dir.,
VIII, pág. 64., Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 72, 3ª Edição –
Reimpressão, Coimbra Editora, 2012; CASTRO MENDES, in Direito Processual Civil,
vol. II, pág. 151, AAFDL, Lisboa; TEIXEIRA DE SOUSA, in A legitimidade singular
em processo declarativo, no B.M.J., 292, pág. 53 e segs.;
[12]
V. ANTURES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, in Manual de Processo
Civil, pág. 129, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1985.
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