terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Abre a condenação à prática de acto devido as portas à desgarrada actuação da administração?


 

Trata-se, muito provavelmente, do mais firme pilar de um Estado de Direito o facto de tanto os particulares como os poderes públicos se encontrarem subordinados à lei. No entanto, enquanto os particulares actuam (são livres de fazer) balizados por tudo aquilo que a lei lhes permite fazer, a Administração Pública está subordinada à legalidades em termos diferentes, dir-se-á memo que mais impositivos. Dizemo-lo, já que a lei é a fonte o meio e o limite de toda a actuação da Administração Pública

Corresponde a margem de livre decisão administrativa à zona dentro da qual a Administração é livre para tomar a decisão que lhe parecer mais propensa à consecução do interesse público, já que, nesse espaço, por ser indiferente ao Direito o sentido da decisão tomada, o Judiciário não pode, a princípio, substitui-se ao administrador.

Tudo o que escapa à pré-determinação normativa foge do âmbito do controle jurisdicional para penetrar num terreno povoado por alternativas de igual valoração normativa.

O princípio de reserva de lei impõe que a actividade administrativa seja não só precedida de um fundamento normativo, mas também que esse mesmo fundamento tenha uma densidade tal que “antecipe adequadamente a actuação administrativa” (na expressão de Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos). Certo é, ainda assim, que a norma não esvazia completamente os parâmetros dentro dos quais a Administração se pode mover. O mesmo é dizer que haverá sempre lugar a uma valoração dos pressupostos legais, assim como um juízo de prognose quanto aos efeitos da sua concretização.
Não se pode esperar que o poder legislativo preveja (de forma abstracta) todo e qualquer caso em que o poder administrativo actue e em que moldes (limites) o deverá fazer. É corolário do dever de boa administração que existam poderes de decisão adaptativa, ou mesmo criativa resultantes, portanto num verdadeiro espaço de concretização.
Este espaço traduzir-se-á em, uma vez presentes os pressupostos fácticos e jurídicos vertidos em dada norma a Administração opte por agir ou não agir, escolhendo de entre as alternativas que a mesma norma lhe confere ou mesmo que faço uso da “discricionariedade criativa”. Sendo esta última expressão uma criação de Sérvulo Correia, julgamos que o exemplo fornecido pelo seu autor a ilustra na perfeição: “ Imagine-se que uma norma jurídica preceitua que as câmaras poderão autorizar a construção de imóveis de um só piso na zona de protecção de templos medievais, conquanto fique salvaguardada a harmonia arquitectónica do conjunto. É submetido a uma câmara o pedido de licenciamento de uma obra dentro de tal zona. Está, assim, formalizado um conflito entre o interesse público à harmonia da zona envolvente do templo que qualquer nova construção poderá fazer perigar, e o interesse privado de edificar. Com base no exame correlativo da norma e da situação, a Câmara poderá formular a directiva de que a harmonia do local em causa ficará salvaguardada desde que os novos imóveis se localizem a uma distância superior a cem metros e de que o seu revestimento não destoe da matéria prima utilizada nas edificações envolventes.”

Serviu o anteriormente exposto, ainda que numa perspectiva porventura um tanto aérea para fornecer ao leitor uma perspectiva de como, em moldes gerais, se articula o poder legislativo com o poder administrativo e de que fibra são feitas as amarras deste último. Fizemo-lo pois pretende-se com a presente rábula auscultar a execução (e o conteúdo) das sentenças dos tribunais administrativos, em especial a delicada questão de saber qual a extensão dos poderes de pronúncia de que dispõe o tribunal nos processos de condenação à prática de actos administrativos.

 

Debrucemo-nos, agora, sobre o cerne da acção de condenação à prática do acto legalmente devido, em especial sobre o âmbito da sua aplicação.

Este meio processual encontra-se vertido no 67º do CPTA e abrange as seguintes situações:

a)           Situações de inércia ou omissão,

b)            Os casos de (acto administrativo) de indeferimento,

c)             As situações de (acto de) recusa de apreciação da pretensão.

A situação à qual aludimos na alínea a) está plasmada no 67º, n.º 1, a) do CPTA, disposição legal esta que vem exigir que para que a inércia seja relevante para este efeito, é necessário que exista o dever de decidir (no sentido de uma obrigação legalmente imposta por lei). Cabe portanto articular o 67º, n.º 1, a) do CPTA como 9º CPA, que vem regular o dever legal de decidir, impondo que para que este exista a colocação da questão por parte do particular e que a Administração não se pronuncie (decida) no prazo legalmente devido.

Antes da reforma, no seu artigo 109º, o CPA resolvia o problema com a formação do acto tácito de indeferimento, uma vez que esta era a regra geral, afastada nos moldes prevista no 108º CPA. Posto isto, talvez seja conveniente que nos debrucemos (ainda que de forma breve9 sobre em que se consubstanciam o indeferimento tácito e o deferimento tácito (o chamado silêncio positivo).

Trata-se o primeiro de uma presunção legal de que o silêncio administrativo equivale a uma concordância com a pretensão do particular. É a este propósito pertinente citar Mário Aroso de Almeida, referindo o ilustre Professor “a lei tende a associar à inércia da Administração o seu consentimento, a presunção legal de que a pretensão apresentada pelo requerente foi julgada conforme às exigências postas pelo ordenamento jurídico, sendo que esse deferimento substitui para todos os efeitos o acto administrativo que foi omitido”. Assim sendo, parece que a acção de condenação ao acto devido seria uma redundância, já que o efeito pretendido pelo particular resultaria já da presunção legal de deferimento tácito. Neste sentido, tendemos a acompanhar Colaço Antunes, ao considerarmos que o CPTA parece antes querer dar resposta ao indeferimento tácito.

Esta figura (indeferimento tácito) surge associada a um incumprimento pela Administração do dever legal de decidir. Tal sucede sempre que lei especial não qualifique como de deferimento tácito determinada situação. Posto isto, o mesmo é dizer quer o silêncio da Administração, uma vez convocada a decidir e extinto o prazo de decisão legalmente previsto, é valorado pela lei administrativa como recusa da pretensão do particular.

Resulta da conjugação dos artigos 51, n.º 4, e 71º, n.º 1 do CPTA, e como bem observa Aroso de Almeida, que a nova acção condenatória vem responder às necessidades antes satisfeitas pelo indeferimento tácito: “a partir do momento em que se deixa de fazer depender o acesso à jurisdição administrativa da existência de um acto administrativo passível de impugnação, deixa de ser, na verdade, necessário ficcionarem situações de pura inércia ou omissão, a existência de actos administrativos (os ditos deferimentos tácitos9 que possam ser objecto de impugnação. Dever-se-á, pois, entender que com o novo CPTA, fica expurgado do artigo 109º a possibilidade do indeferimento tácito.

 

O artigo 67, n.º1, b) reporta-se aos casos em que, existindo um indeferimento expresso do acto requerido pelo particular, este deixa de ter que intentar o recurso de anulação, por esta se demonstrar “inútil”. Deverá o particular intentar acção condenatória, permitindo esta pedir mais do que até agora o recurso de anulação permitia. O mesmo é dizer que o pedido de condenação à prática do acto devido, uma vez procedente, permite ao particular conseguir não só a erradicação do acto de indeferimento do ordenamento jurídico, mas ainda na condenação da Adminstração na pr+atica do aço legalemnte exigido, nos termos do 66º, n.º2 (neste sentido, consideramos extremamente pertinente a observação de Paula Barbosa, “ a condenação da Administração à prática do acto legalemnte devido, face a um não por esta dito, implica necessariamente a sua condenação no dizer sim, implica naturalmente a eliminação do não dito, pois as duas relaidades são, logicamente, incompatíveis.

O artigo 67, n.º1, c)dispõe sobre a recusa de apreciação de requerimento dirigido à prática de acto administrativo (aplicável, portanto, a uma inexistência de pronúncia, por parte da Administração, sobre o mérito da causa do particular). Não nos encontramos aqui perante casos em que a omissão seja um mero pressuposto de facto, ou que não haja recusa de apreciação de facto. No âmbito do 67, n.º1, c), estamos perante uma recusa de apreciação de mérito.

Posto isto, e acompanhando, Mário Aroso de Almeida, é nossa convicção que a acção de condenação se funda nos seguintes tipos de razões: a) inexistência de motivos formais invocados pela Administração para não apreciar o pedido, b) existência de circunstâncias que, o caso concreto, restrinjam ou eliminem a discricionariedade de acção que, em abstracto, a lei confira à Administração e de que ela se arrogue para se recusar a agir.

Da descrição que anteriormente fizemos do regime da condenação à prática do acto devido se retiram logo os ingredientes que temperarão esta nossa exposição. Debruçámo-nos sobre restrição de discricionariedade, sobre apreciações de facto, sobre a necessidade de a Administração eliminar um não por si proferido, para que a sua actuação seja atinente com o sim ao qual foi condenada.

Julgamos ter atingido um ponto, na nossa dissertação, em que não é possível continuarmos sem que façamos a devida vénia à tese de Doutoramento do Professor Freitas do Amaral. Com que linhas se cose, afinal a execução das sentenças de anulação dos actos administrativos? Reveste-se de extraordinária importância a posição do ilustre Professor, ao afirmar que o dever de executar as sentenças de anulação dos actos administrativos não se esgota no mero dever de reconstruir o status quo existente no momento em que o acto anulado foi praticado mas que, pelo contrário, se estende ao cumprimento de todo um conjunto de outros deveres, que, por regra, devem conduzir à constituição de uma situação diferente daquela que existia inicialmente. Surge a este propósito uma expressão que fez escola, a “reconstituição da situação actual hipotética”.
Ainda que a tese a que nos referimos seja finalisticamente orientada a um estudo científico e muitíssimo pertinente da natureza da condenação da Administração à anulação de actos administrativos, é-nos especialmente querida em esta sede, ao versar sobre o real conteúdo das sentenças. Contem-se nesta expressão a exigência de que a Administração extraia todas as consequências jurídicas da anulação decretada pelo tribunal praticando para tal todos os actos jurídicos e materiais necessários à reintegração efectiva da ordem jurídica violada, mediante a reconstituição da situação que existiria se o acto administrativo ilegal não tivesse sido praticado.

Pela primeira vez, entre nós, um autor exprimiu a sua convicção de que o dever de executar as sentenças não se subsume num “apagar” do que a Administração fez indevidamente, mas antes se estende ao cumprimento de todo um conjunto de outros deveres, que, por regra, devam conduzir à constituição diferente daquela que existia inicialmente .

O critério que preside à utilização da referida fórmula não se esgota portanto num dever de executar a sentença em termos que importariam uma indemnização pelos danos emergentes e pelos lucros cessantes.

De acordo com o Professor Fretas do Amaral, o conteúdo da sentença deverá r mas além duma mera remoção dos efeitos positivos do aço anulado. Acompanhando nós o Professor, é nossa convicção que executar uma sentença é dar realização efectiva à decisão nela contida.

Questão complexa e muito delicada é a de saber qual a extensão dos poderes de pronúncia de que dispões o Tribunal no domínio da condenação à prática de acto devido.

Começámos logo a nossa exposição por aclarear de que se trata a discricionariedade e deixando claro que, ao abrigo da separação de poderes, o tribunal não se pode intrometer no espaço próprio  do poder Administrativo. Implica esta afirmação uma ulterior dificuldade, já que o mesmo é afirmar que não se podem os tribunais intrometer nos poderes discricionários da Administração. O Princípio da separação de poderes implica em certa medida que a Administração não se muna de poderes que a lei não lhe atribui, como também impede aos tribunais administrativos que fiscalize a sua actuação num determinado campo.

Ainda assim, perguntar-se-á o que deve o tribunal considerar como “devido”, condenando a Administração, portanto a tal.

No artigo 3º, n.º 1 do CPTA determina-se que os Tribunais não podem apreciar conveniência ou a oportunidade da actuação da Administração. Assim, o Tribunal só poderia agir no espaço de vinculação da Administração quando a solução a seguir resultasse da conjugação das normas e dos princípios vigentes, cabendo então ao julgador a explicitação destas vinculações e, essencialmente, determinando o acto a praticar.

Estamos colocados perante um problema de delimitar o que a lei impõe e nem tanto de invadir a área da discricionariedade administrativa. Certo é que o Tribunal não poderá nunca substituir a Administração ou tão pouco tomar decisões por esta n o campo da sua discricionariedade mas, no âmbito da sua função de aplicação de regras de Direito, poderá certamente determinar as áreas de vinculação da decisão por si proferida.

Perefrasiando Rui de Medeiros , a propósito do princípio da separação de poderes, “o que o princípio da separação de poderes visa garantir é uma margem de liberdade da Administração, quer face aos tribunais, quer face ao próprio legislador. Em relação ao Tribunal, só o âmbito da discricionariedade é que o juiz não pode intervir, nem sequer para anular o acto administrativo. Pelo contrário, no plano da legalidade, não há qualquer obstáculo a que o juiz condene a Administração.” Daqui se retira que o ju+iz não pode condenar a Administração ao que há de fazer, mas apenas a fazer (executar, realizar) no quadro da sua actuação vinculada à lei, respeitando os seus limites e ratio.

Discricionariedade não implica necessariamente arbítrio. A decisão discricionário encontra-se sempre vergada perante o respeito ao fim da actuação da Administração e da prossecução do interesse público.

O n.º2 do artigo 71 do CPTA dispõe que quando a emissão do acto pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução legalmente possível, o tribunal não pode explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido. Parece, pois, que o legislador quis dizer que perante a presença de actividade administrativa discricionária, não há lugar a acto devido, mas tão só a emanação de um acto administrativo.

No ordenamento jurídico português  ex vi CPTA todo o processo tem início com a avaliação do Tribunal do ripo de solução em causa, se vinculada ou discricionária, numa fase a que uma determinada franja da doutrina chama, quanto a nos bem, fase da qualificação. A esta fase seguir-se-á uma reflexão sobre o caso material concreto, determinando e condicionando esta mesma fase a primeira.

Surge, então, uma gradação de poderes de pronúncia do tribunal:
                 a)                   Se o acto que se pede for de conteúdo legalmente definido, vinculado em resultado das normas aplicáveis, e sendo a sua emissão devida, o >tribunal poderá condenar a administração a praticar o acto X, com conteúdo Y resultante da subsunção do caso concreto ao direito aplicável, tipificado na lei. Haverá uma sentença condenatória plena, por dar satisfação ao pedido do particular

b)     Se o conteúdo do acto não estiver legalmente predeterminado, se for discricionário (sendo, ainda assim devida a emissão do acto), o Tribunal limita-se a a condenar a Administração à prática do mesmo, sem especificar o seu conteúdo, especificando portanto apenas os seus parâmetros. O Juiz traçará o quadro, de facto e de direito, dentro do qual esses poderes discricionários deverão ser (re)exercidos, explicitando as  suas vinculações, sem precisar o sentido da decisão a tomar.
               
              c)      Em último caso, perante uma total falta de elementos, haverá apenas uma condenação genérica, importando esta uma ausência de precisões adicionais quanto ao modo de exercício da actuação administrativa.

Com efeito, o tipo de pronuncia a emitir pelo julgador dependerá sempre do tipo de dados normativos e circunstâncias aplicáveis ao caso concreto.

Note-se ainda que, do ponto de vista formal, os poderes do Tribunal não se encontram necessariamente  limitados pelo facto de a Administração poder ter permanecido omissa, não tendo dado resposta à pretensão do interessado ou pelo facto de a Administração  se ter recusado a apreciar o requerimento apresentado.

 
 
Sérgio Santos

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