quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Ministério Público. Que papel, que razão de ser?

         A atuação do Ministério Público, enquanto órgão encarregado de defender a legalidade democrática, reveste a maior importância no âmbito da jurisdição administrativa. Apesar das hesitações iniciais, o Ministério Público detém no atual contencioso administrativo importantes poderes de iniciativa e de intervenção processuais para defesa da legalidade, do interesse público e de bens comunitários.

A legalidade democrática consubstancia-se, grosso modo, no quadro normativo integrado pela lei constitucional e pelos outros atos normativos que com aquela materialmente se conformem, e desenvolve-se numa prática ou atuação permanente e vinculante, não só de todos os órgãos e agentes do Estado como também os cidadãos individualmente considerados. A defesa deste princípio, pelo Ministério Público, consiste assim na verificação sobre se a função jurisdicional é ou não exercida de acordo com a Constituição e a lei ordinária, neste caso com a lei administrativa. No fundo, trata-se em geral de resolver conflitos e de defender interesses suscitados entre os órgãos do Estado ou órgãos e agentes do Estado e da Administração Pública e os particulares. É este o motivo que justifica a ampla intervenção deste órgão.

O Ministério Público dispõe de um Estatuto próprio (Lei n.º 47/86 de 15 de Outubro), forma um grupo de magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados (arts 219º/4 CRP e 76º/1 do Estatuto), com autonomia relativamente ao Governo (art 2º) e à magistratura judicial (art 75º/1), cuja gestão e disciplina cabe à Procuradoria-Geral da República, que é presidida pelo Procurador-Geral e inclui o Conselho Superior do Ministério Público (arts 219º/2, 4 e 5, e 220º CRP).

É dotado de independência externa (perante o Ministro da Justiça), mas não é um órgão de soberania, e não se confunde com os órgãos do poder judicial, pois não tem competência para a prática de atos materialmente jurisdicionais, nas palavras de VIEIRA DE ANDRADE.

A intervenção do MP na jurisdição administrativa e fiscal está subordinada ao estabelecido no art. 219º da Constituição da República Portuguesa e as atribuições que exerce não são mais do que concretizações e especialidades dessa modelação geral de base constitucional, bem como da densificação que da mesma é feita nos artigos 1º a 6º do Estatuto do Ministério Público.

Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA[1], as funções do MP poder-se-iam agrupar em quatro áreas: “representar o Estado[2], nomeadamente nos tribunais, nas causas em que ele seja parte, funcionando como uma espécie de Advogado do Estado; exercer a ação penal; defender a legalidade democrática, intervindo, entre outras coisas, no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade, designadamente, verificados certos requisitos, os menores, os ausentes, os trabalhadores, etc.”

Conforme resulta dos arts 219º1, CRP, 51º, ETAF, e art. 3º/1 do Estatuto, de forma sucinta, o MP tem:

Poderes concretos:

*           Legitimidade para intentar ações administrativas especiais contra atos e normas regulamentares;

*           Legitimidade para recorrer de decisões judiciais e para requerer a resolução de conflitos de jurisdição e de competência;

*           Poderes processuais como auxiliar da justiça, no âmbito de processos desencadeados por terceiros;

*           Representação do Estado nas ações;

*           Representação do Estado e de outros interessados nos casos previstos na Lei (defesa de interesses sociais).

A intervenção:

*           O Ministério Público surge, no âmbito do contencioso administrativo, com funções muito diversificadas, o que gera por vezes dificuldades e embaraços. Surge umas vezes no papel de representante do Estado, outras vezes aparece contra a administração ao lado do administrado ou em sua substituição, finalmente, aparece por vezes numa posição de imparcialidade emitindo pareceres no âmbito dos processos judiciais.


Dentro dos poderes processuais que o MP goza para o cumprimento das suas funções podemos apontar os seguintes: em primeiro lugar, a iniciativa processual consagrada expressamente nos casos dos arts 55º/1, al. b), 73º/3 e 68º/1, al. c).

Neste último preceito normativo, o legislador parece ter consagrado o alargamento da legitimidade para a apresentação de pedidos de condenação também no que respeita à defesa da legitimidade e do interesse público.
O legislador parece ter sentido a necessidade de fixar alguns limites, ao estabelecer, na al. c) do n.º1 do art.º 68º CPA, que o MP só pode formular pedidos de condenação quando o dever de praticar o ato resulte diretamente da lei e esteja em causa a ofensa a direitos fundamentais, de um interesse público especialmente relevante ou de qualquer dos bens referidos no nº2 do art. 9º, ETAF.
A doutrina discute um problema de compatibilização do pressuposto processual da legitimidade do MP com o dos pressupostos relativos ao comportamento da Administração. Na perspetiva do Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, a melhor forma de compatibilizar os pressupostos processuais de legitimidade com os relativos ao comportamento da Administração é a de considerar que só é admissível a intervenção do MP (o mesmo vale para o autor popular), quando tenha sido emitido um ato administrativo de conteúdo negativo, mas já não quando se esteja perante uma qualquer omissão administrativa. Se as duas modalidades do pedido de condenação dependem, a primeira, de um comportamento omissivo da Administração, o qual implica o prévio pedido do particular, e a segunda, de um ato administrativo de conteúdo negativo, daqui parece resultar, de forma inequívoca, que o alargamento da legitimidade ao MP e ao autor popular, (também) intencionado pelo legislador, apenas pode ter lugar quando se está perante um ato administrativo de conteúdo negativo.

Continuando a elencar preceitos importantes para definir o papel do Ministério Público na jurisdição administrativa, cabem como exemplos os arts. 77º, 104º/2, 112º/1, 124º/1, 141º, 155º/1, todos do CPTA. Intervém, de forma imparcial, em defesa de direitos fundamentais, valores comunitários ou interesses públicos especialmente relevantes, poderes processuais relevantes nas ações administrativas especiais iniciadas por particulares.
           Na realidade, tal como sucede no processo civil, também no processo contencioso administrativo, antes como depois da reforma, são tais poderes exercidos intervindo quer a título principal – quando atua uma legitimidade própria para a defesa de bens e valores colocados à sua tutela ou quando representa o autor ou o réu – quer como parte acessória[3] – quando exerce funções de defesa da independência e da legalidade na função jurisdicional e/ou de assistência.

Com a Reforma estabeleceu-se um modelo subjetivista, consagrando o processo administrativo como um processo de partes e alargando os poderes de cognição e de decisão do juiz perante a administração. Todavia, também se verificam aspetos objecivistas do regime, nomeadamente no que respeita à legitimidade processual ativa, quanto à impugnação de atos administrativos, e nos poderes que continuam a reconhecer-se ao MP como auxiliar da justiça, em defesa da legalidade, especialmente no que respeita à impugnação de normas.
Vindo o artigo 85º, CPTA alterar profundamente o modelo tradicional de intervenção do Ministério Público nos processos em que este não figure como parte.

No sistema anterior processual, o Ministério Público dispunha de um amplo poder de intervenção que ia desde a defesa da legalidade, mediante recurso contencioso de anulação, até à representação do Estado em juízo (art 27º, LPTA). Tinha uma intervenção de natureza puramente processual, que lhe permitia arguir nulidades, suscitar a regularização da petição inicial e até mesmo requerer diligências instrutórias. Podia igualmente emitir um parecer final sobre a decisão a proferir.
         Seja qual for o entendimento preconizado sobre os poderes processuais do Ministério Público, a reforma não podia, esvaziar a função de representação em juízo do Estado, por tal ir contra a consagração constitucional dessa competência.
Assim, o CPTA acolheu, por imposição dos artigos 219º, CRP e arts 1º a 6º do Estatuto, uma solução de continuidade face ao regime anterior, por continuar a reconhecer-se um papel processual relevante ao MP para fiscalização da legalidade (art 51º, ETAF), sobretudo ao poder geral de iniciativa, mas também, embora limitado à defesa de valores comunitários, ao poder de dar parecer sobre o mérito e o de invocação de novos vícios, apesar de se lhe terem retirado alguns dos seus poderes processuais, limitando a intervenção na fase instrutória e suprimindo a vista final e a participação da sessão de julgamento (arts 58º/2, 62º e 73º, 77º, 85º, 104º/2, 146º, 152º, e 155º, todos os preceitos do CPTA).
As razões para a supressão da vista final prenderam-se com uma ideia de economia processual, tentando diminuir o tempo de trânsito de processo, mas acima de tudo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acolhida pelo Tribunal Constitucional. Esta jurisprudência baseia-se na violação do princípio do contraditório, pois segundo o TEDH, o parecer final do Ministério Público emitido numa fase do processo em que as partes não se poderiam pronunciar mais, viola este princípio basilar comum a todos os ordenamentos jurídicos[4]. O Tribunal Constitucional acabou por perfilhar este entendimento, considerando a violação do art. 6º, CEDH e também do art. 20º/4, CRP, que estipula o direito a um processo equitativo.

Regressando de novo à reforma, na época foi muito discutida a questão de saber se os poderes do Ministério Público deviam ter mantidos ou reduzidos. Alguns autores defendiam a sua manutenção argumentando a especialização e experiência de alguns magistrados tinham na área administrativa, melhorando assim a eficácia das decisões.


É o exercício da ação pública que justifica o estatuto processual do Ministério Público no processo contencioso administrativo e ser a ação pública para defesa da legalidade objetiva a dimensão mais carismática da intervenção do Ministério Público nesta área funcional. No âmbito das ações administrativas especiais da iniciativa dos particulares (em que o MP não é parte formal) o CPTA reequacionou a intervenção processual do MP na ação impugnatória quanto ao tipo de intervenção (por requerimento e não por vista), quanto ao conteúdo dessa intervenção (art 85º/ 2 a 4, e quanto ao momento em que deverá ser concretizada art 85º/5).
Ao MP e aos titulares de interesse direto na anulação do ato, mantém-se um conceito muito vasto de legitimidade para a impugnação de atos, e até se alarga a pessoas e aos órgãos administrativos, bem como, no âmbito da ação popular, a qualquer cidadão e a titulares de interesses difusos, incluindo as autarquias (arts 55º/1 a), 9º/2 e 40º do CPTA).
        Conforme aponta o Professor VIEIRA DE ANDRADE, surge a questão da diversidade de funções cometidas ao Ministério Público ser suscetível de causar problemas: derivados quer pelo facto, deste poder desempenhar no mesmo processo funções incompatíveis entre si, quer de desempenhar um papel dúplice como parte processual, surgindo por vezes do lado do Estado, defendendo-o contra as ações do particular, e por vezes contra a Administração, ao lado do administrado ou em vez dele. Defendendo que pela configuração atual do MP este deve ser visto apenas como um defensor da legalidade, quer intervenha como parte principal, quer como auxiliar do juiz, e defende ainda que apesar da referência constitucional à representação do Estado, não há razão para no processo administrativo atual atribuir-lhe a representação dos interesses patrimoniais do Estado-Administração nem das Regiões Autónomas e de outras pessoas coletivas públicas, quando a representação ou o patrocínio podem ser assegurados por funcionários dos serviços jurídicos ministeriais ou por advogados contratados, nem sequer para lhe conferir o encargo de promoção processual do interesse público, quando este possa ser prosseguido por órgãos administrativos. Só sendo possível, nestes termos a resolução do conflito entre a autonomia do MP e a representação do Estado-parte, bem como, em determinadas situações, a dificuldade de conciliação da defesa da Administração com a defesa da legalidade.

 Quanto à ação pública, de facto o poder do MP foi alargado, o que se deve também à passagem para um contencioso de plena de jurisdição e com o consequente surgimento de novas formas processuais para fazer face às verdadeiras necessidades dos particulares. Assim o atual 9.º n.º 2 do CPTA confere ao MP uma amplíssima ação pública, sendo esta uma norma geral que acaba por estar intrínseca a todos os meios processuais previstos no Código. O MP continua assim a ter um amplo poder de iniciativa para proteção do interesse público, agindo como parte no processo. No entanto, a decisão de instaurar ou não um processo, como de resto em todas as suas demais funções, é um poder discricionário, acabando assim as suas intervenções forçadas.  
          Foi a nível da função de amicus curiae que o MP viu os seus poderes diminuídos, tendo sido todos os seus poderes condensados no atual artigo 85º, CPTA. Em suma, o Ministério Público perde quase toda a sua competência a nível de fiscalização da legalidade processual, mantendo-se apenas a possibilidade de pedir diligências instrutórias (85º/ 2, 1ª parte do CPTA), que, no fundo, mais não são do que uma decorrência da busca da verdade material.

          Dúvidas surgem, se na defesa do Estado em processos respeitantes a responsabilidade extracontratual e a contratos o Ministério Público também defende a legalidade administrativa.
O chamado contencioso do Estado na jurisdição administrativa assume agora outra dimensão na medida em que, e pela reforma (v.g., art. 4º, nº 1, alíneas e), f) e g), do novo ETAF) foi diferida a esta instância a resolução dos conflitos em matéria de responsabilidade contratual e précontratual em termos mais alargados, e especialmente porque lhe foram diferidos os conflitos em matéria de responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, quando no quadro processual anterior só lhe cabiam se o ato lesivo fosse tido como ato de gestão pública.

        Portanto há aqui uma vasta panóplia de ações contra o Estado que antes cabiam à jurisdição cível e que agora cabem ao foro administrativo. Que podem ir desde complexas questões de responsabilidade resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa até à vulgar responsabilidade emergente de um acidente de viação.

          O que à primeira vista se pode julgar incompatível com aquilo que seria idealmente o Ministério Público, podendo trazer à colação os resquícios dos traumas da infância difícil do direito administrativo. A mudança do objeto do processo do ato administrativo para a pretensão do interessado levou à subjectivização do contencioso administrativo. O contencioso administrativo caracteriza-se agora por um processo de partes e assim sendo o Estado deve assumir a sua posição de parte tanto enquanto autor como demandado. Assim sendo, também o Estado deve poder ser alvo da atuação do Ministério Público quando este considere que tal atuação é benéfica para o interesse público.
           Verificou-se então com a Reforma, uma diminuição das tarefas que lhe eram atribuídas. Nada de negativo se verifica relativamente a esta questão dado que adquire capacidade para responder a mais questões neste âmbito. Este órgão passa, então, a intervir de forma limitada e a mesma reveste uma natureza puramente interlocutória, conforme a que se referiu supra.

Cabendo ao Ministério Público no atual sistema:

a) Ser o titular da ação pública administrativa;

b) Assumir a representação do Estado em juízo;

c) Ao nível processual a sua intervenção está agora limitada e tem uma natureza interlocutória.
Em função do disposto no art. 85º, do CPTA tem um momento processual próprio para intervir, preclusivo, que não pode ultrapassar o prazo de 10 dias após a notificação da junção aos autos do processo administrativo, o chamado processo instrutor, ou da apresentação das contestações.
Pode requerer a realização de diligências instrutórias, pode dar um parecer sobre o mérito da causa, mas apenas em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes, ou de valores ou bens constitucionalmente protegidos e mencionados no art. 9º/2, do CPTA, ou seja em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida e património cultural.


           A complexidade da sociedade atual não se compadece com o individualismo, nem com o amadorismo e é este o desafio que foi colocado ao Ministério Público se quiser continuar a ser uma magistratura de iniciativa e ação com uma modelação constitucional plurifuncional. É um desafio porque não basta reclamar, no plano legislativo, a manutenção ou ampliação de competências. É necessário querer estar à altura das constantes responsabilidades.



Inês Vieira
 
nº19640
Bibliografia

A Justiça Administrativa, Vieira de Andrade
A reforma do contencioso administrativo e as funções do ministério público, Sérvulo Correia in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues
Comentário ao Código de Processo nos Tribunais administrativos, Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha

O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Vasco Pereira da Silva



[1] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, art. 219º.
[2] Nos termos do art. 50º do Estatuto, cabe a representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais e a preparação, exame e acompanhamento de formas de composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado. Em matéria administrativa, esta competência do Ministério Público sofreu algumas alterões, em 2004, com a reforma do contencioso administrativo. Apesar da lei de processo vir, com aquela reforma, pela primeira vez,  prever expressamente a representação do Estado pelo Ministério Público, aquela lei restringe a representação aos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, prevendo, ainda, por outro lado, que as pessoas coletivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito” (art.11/2, do CPTA), pelo auditor jurídico ou o responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa coletiva ou do ministério” (nº 3).
[3] É certo que a possibilidade de intervir no processo em termos instrutórios ou acessórios está agora limitada, devido à reforma.
[4] Cfr. Lobo Machado contra Portugal, acórdão de 20.02.1996, Req. 15764/89

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