sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

"Cada macaco no seu galho"


À primeira instância o que é de primeira instância[1]: uma viagem pela Reforma do Contencioso Administrativo e o seu impacto na competência dos tribunais administrativos

Assim consta das Exposições de Motivos do ETAF e do CPTA:
Trata-se de uma reforma essencial à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, pois incide sobre o principal instrumento de garantia desses direitos perante a Administração Pública. E trata-se de uma reforma absolutamente indispensável à plena instituição, no nosso país, do Estado de Direito que a Constituição da República Portuguesa veio consagrar. Como é sabido, o contencioso administrativo português não foi objecto da reforma profunda que a instituição do regime democrático exigia e que, em sucessivas revisões constitucionais, o legislador constituinte tem vindo a reclamar. Crescentemente aguardada, mas sucessivamente adiada, a necessária reforma foi sendo substituída por medidas de alcance mais limitado, que, aperfeiçoando embora o sistema, não alteraram as suas traves mestras.

            Foi longo e árduo o caminho do contencioso administrativo que hoje conhecemos. Antes de iniciarmos esta viagem pela competência dos tribunais administrativos após a Reforma de 2002/2004, torna-se fulcral perceber de que forma é que a Constituição a exigiu, bem como perceber qual impacto da mesma em termos da competência dos tribunais administrativos, sobretudo em razão da hierarquia.
            Apesar de a realidade não ter sido sempre esta, actualmente a Constituição da República Portuguesa prevê um contencioso administrativo de plena jurisdição, ao mesmo tempo que garante uma tutela jurisdicional efectiva de todos aqueles que, no âmbito da jurisdição administrativa, a reclamem – o que se retira com facilidade dos Arts. 202º e 268º, nº 4 e 5 CRP, respectivamente. A nossa actual CRP inseriu-se, há vários anos atrás, naquilo que a doutrina chama de “movimento de constitucionalização[2] do contencioso administrativo, movimento este que se deu por volta dos anos 70 em vários países europeus.
Consagrando-se no texto constitucional o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, importa perceber qual o seu sentido. Tal como refere VASCO PEREIRA DA SILVA, o direito de acesso à justiça administrativa tem duas vertentes, enquanto direito fundamental: enquanto direito fundamental no próprio sentido da palavra, conforme consta do Art. 20, nº 1 CRP, e enquanto direito processual fundamental, patente no Art. 268º, nº 4 CRP. Mas o contencioso administrativo não carecia apenas de constitucionalização, uma vez que os preceitos constitucionais careciam de consagração em legislação ordinária. A verdade é que foi longa a demora – apesar do caminho seguido pela Constituição de 1976, que foi sendo acentuado com as sucessivas revisões constitucionais, só em 2004 se chegou a um contencioso administrativo que procurou, finalmente, dar uma resposta legislativa (ordinária) aos preceitos constitucionais.
            O texto Constituição de 1976 previa, de facto, um contencioso administrativo de plena jurisdição, tutelando-se de forma efectiva os direitos dos particulares, mas, neste texto intrinsecamente compromissório, muito foi deixado à constituição material. No entanto, o único diploma de relevo e com algum impacto nesta matéria, até à primeira revisão constitucional, foi o Decreto-Lei nº 256-A/77, de 17 de Junho, que, em traços sintéticos, previa um regime de fundamentação de actos administrativos (o que, como se percebe, terá grande impacto aquando da propositura de uma acção em tribunal), um regime de impugnação contenciosa das omissões administrativas (abandonando-se, desde já, embora não totalmente, a clássica ideia francesa do indeferimento tácito) e um regime de execução das sentenças dos tribunais administrativos (o que contribui, em larga medida, para a existência de um contencioso de plena jurisdição, embora não tenha sido ainda o suficiente).
            A revisão constitucional de 1982 esteve na origem da reforma do contencioso administrativo de 1984/1985, tendo sido aprovados dois diplomas legislativos da maior importância: o ETAF (DL nº 129/84, de 27 de Abril) e a LEPTA (DL nº 267/85). No entanto, e utilizando a expressão de VASCO PEREIRA DA SILVA[3], esta reforma ficou a meio caminho, uma vez que, não se debruçando sobre todos os pontos carentes de legislação ordinária, se gerou uma situação de pluralidade de instrumentos legislativos, muitos deles ainda elaborados no quadro da anterior ordem constitucional. No entanto, há ainda que fazer uma ressalva: com a aprovação do ETAF, houve aqui uma primeira transferência de competências entre o STA e os Tribunais Administrativos de Círculo, atribuindo-se aos últimos a competência para julgar os recursos de actos dos directores-gerais e de outros órgãos da administração central, deixando de fora os actos do Governo, e dos actos dos órgãos dirigentes dos serviços personalizados do Estado[4].
            No entanto, em termos de competência administrativa, foi a revisão constitucional de 1989 que veio introduzir significativas previsões constitucionais. Enquanto no anterior quadro constitucional apenas se previa a possibilidade de existirem tribunais administrativos e fiscais, que constituiriam uma jurisdição própria, separada dos tribunais comuns e não sujeitos ao STJ, é com esta revisão constitucional que se estabelece que estes tribunais são, de facto, uma jurisdição própria, sem deixar isso a cargo do legislador ordinário, conferindo-lhe assento constitucional. Mas, uma vez mais, há uma certa distância entre aquilo que a Constituição prevê e aquilo que a lei ordinária possibilita – a tentativa de reforma, em 1990, veio dar origem ao Código de Procedimento Administrativo (DL nº 442/91, de 15 de Novembro, alterado depois com o DL nº 6/96, de 31 de Janeiro), ficando, no entanto, paralisada a reforma do contencioso administrativo, que, como se sabe, só se verificou uns largos anos mais tarde. Neste âmbito, verificam-se apenas alterações parcas com o surgimento da Lei da Acção Popular (Lei nº 83/95, de 31 de Agosto), mas, com maior importância para o tema em causa, o DL nº 229/96, de 21 de Março, que modificou o ETAF.
            O DL supra referido veio criar o Tribunal Central Administrativo, passando então a existir três instâncias a nível de organização dos tribunais administrativos – os Tribunais Administrativos de Círculo, o Tribunal Central Administrativo e o Supremo Tribunal Administrativo. O objectivo primordial que esteve na base da criação deste tribunal era sobretudo descongestionar o STA, mas a verdade é que se manteve uma confusão de esferas jurisdicionais, uma vez que o STA continuou a ter competências de 1ª e 2ª instância e não existiam tribunais especializados em função da matéria[5] – o que facilmente explica o excessivo volume de processos neste tribunal. Acresce ainda que, tal como refere MÁRIO TORRES[6], esta alteração na distribuição de competências entre os tribunais administrativos não se baseou em qualquer consideração dogmática – simplesmente passou para o Tribunal Central Administrativo a competência para julgar em primeira instância os recursos de actos dos membros do Governo relativos ao funcionalismo público, porque estes eram os processos que existiam em maior número, não estando aqui em causa qualquer “foro pessoal” dos membros do Governo. No fundo, nada de significativo se alterou: por um lado, continua o congestionamento do STA; por outro, continua a acumular-se num tribunal superior funções de 1ª e de 2ª instância.
            Parece difícil não se concordar com as afirmações de VASCO PEREIRA DA SILVA[7]: estas parcas alterações não permitiram uma aproximação da constituição material à constituição formal, gerando-se assim uma inconstitucionalidade por omissão, e o contencioso administrativo era um Direito Constitucional por realizar.
            A revisão constitucional de 1997 veio alterar, reafirmando, o direito fundamental de acesso à justiça administrativa: o contencioso administrativo serve para proteger de forma plena e eficaz os direitos particulares, é um contencioso de plena jurisdição e é ainda um direito fundamental dos cidadãos a possibilidade de impugnação de normas administrativas[8]. Acontece que, uma vez mais, o legislador ordinário não foi no sentido de proceder a uma reforma global do contencioso, procedendo antes a intervenções legislativas pontuais que não permitiram a aproximação aos preceitos constitucionais – DL nº 433/99, de 26 de Outubro, que aprova o Código de Procedimento e de Processo Tributário, deixando de lado o facto de os tribunais administrativos e tributários se enquadrarem na mesma ordem jurisdicional e que, depois, foi deixado de lado com a reforma de 2004. Convém ainda apontar-se aqui a crítica que VASCO PEREIRA DA SILVA[9] e JORGE MIRANDA[10] fazem, uma vez que, se estamos perante direitos, liberdades e garantias dos particulares, cabendo esta matéria na reserva relativa da Assembleia da República (Art. 165º, nº 1, alínea a) CRP), é, no mínimo, negativo, que muitas das intervenções do legislador ordinário nesta matéria se tenham feito através de decreto-lei autorizado.
            Chegámos ao ano 2000. Surgem três anteprojectos, a saber: o Anteprojecto de Código de Processo dos Tribunais Administrativos, o Anteprojecto de Estatuto dos Tribunais Administrativos e Tributários e o Anteprojecto sobre Comissões de Conciliação Administrativa[11]. Não foram estes os diplomas que, posteriormente, foram adoptados (os quais, em termos de organização dos tribunais administrativos, pouco inovavam), mas tiveram a mais-valia de terem posto o tema em cima da mesa – finalmente, estavam comprados os bilhetes da viagem. Esta viagem começou pela discussão nas Faculdades de Direito das Universidades públicas e na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa[12], fazendo-se previamente estudos sobre a justiça administrativa portuguesa. A meu ver, este debate teve o mérito de deixar a descoberto as insuficiências dos Anteprojectos – se se ia proceder a uma reforma tão ampla, havia que, finalmente, dar resposta a todos os pontos que a Constituição e os diplomas anteriores deixavam em aberto.
            Em 2001, publica-se o Despacho nº 1602/2001, do Ministro da Justiça (pelo GPLP – Gabinete de Política Legislativa e Planeamento), de 15 de Janeiro, no qual constavam os anteprojectos legislativos que iriam ser posteriormente adoptados. Convém aqui apontar a divergência doutrinária quanto ao mérito deste despacho: PAULO OTERO[13], por um lado, propugnava pela inconstitucionalidade do mesmo, afirmando haver aqui uma total promiscuidade entre as funções do Estado – tínhamos o Executivo a fixar as orientações políticas da reforma, através de uma actuação administrativa, orientações políticas estas que se debruçavam sobre uma matéria que é da competência legislativa reservada do Poder Legislativo; por outro, MÁRIO TORRES[14], seguido por VASCO PEREIRA DA SILVA[15], afirma que não existia qualquer inconstitucionalidade, uma vez que o despacho pretendia apenas orientar a tarefa futura de redacção final dos textos, não sendo vinculativo e a sua publicação em Diário da República apenas teve como ideia base o princípio da transparência. Acrescenta-se ainda um argumento de VASCO PEREIRA DA SILVA, que me parece bastante pertinente: o princípio da separação de poderes não deve ser entendido de forma rígida e formalista, mas sim de uma forma dinâmica de colaboração entre os órgãos. Salvo o devido respeito, parece-me que a razão está com estes últimos autores, uma vez que, entendendo eu que não se deve interpretar o princípio da separação de poderes da forma rígida como Montesquieu o concebeu, e que falta a normatividade a este despacho para que se possa considerar que este princípio está em causa, a solução mais plausível parece-me ser a da não inconstitucionalidade do mesmo.
            Em Junho de 2001, foram aprovadas três propostas de lei para serem apresentar à Assembleia da República: Proposta nº 92/VIII (CPTA), Proposta nº 93/VIII (ETAF) e Proposta nº 95/VIII (Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado). Em consequência da crítica anteriormente feita, aqui, VASCO PEREIRA DA SILVA[16] e JORGE MIRANDA[17] salientam o aspecto positivo de o novo regime constar de duas leis da Assembleia da República, o que me parece igualmente um aspecto que marca de uma forma muito feliz esta Reforma de 2002/2004. Como a espera ainda não tinha sido longa, a vacatio legis até Janeiro de 2003 foi aumentada até Janeiro de 2004, por motivos “à portuguesa” – deixamos tudo para a última da hora, tendo-se ainda procedido a duas alterações antes da entrada em vigor (Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, impondo algumas alterações a propósito do contencioso pré-contratual e Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro). No entendimento da melhor doutrina[18], passa-se então de um modelo de contencioso francês para um modelo de contencioso alemão, com uma forte aproximação ao processo civil, sobretudo devido à plenitude de jurisdição. No que concerne ao tema aqui abordado, há uma clara, mas não total, aproximação ao processo civil e à organização dos tribunais judiciais.
            Após esta viagem breve sobre o percurso do contencioso administrativo desde 1976, importa perceber quais os impactos da Reforma de 2002/2004 em termos de competência dos tribunais administrativos, pegando nalguns pontos já deixados em aberto.
            Com a Revolução de 1974, os tribunais administrativos passaram a estar integrados no Poder Judicial, tendo o STA, nomeadamente, sido integrado no Ministério da Justiça, pelo DL nº 250/74, de 12 de Junho, no entanto, como já mencionei, previa-se na Constituição que estes tribunais pudessem existir como jurisdição autónoma dos tribunais judiciais, mas apenas que pudessem existir, não tendo que existir assim. Deve entender-se, segundo as palavras do então deputado Jorge Miranda, que o que resultava do texto constitucional era a possibilidade de existirem como tribunais não judiciais, embora o sentido em que se caminhasse fosse o sentido da unidade jurisdicional[19]. Mas esta unidade não se concretizou, tendo o ETAF de 1984 vindo separar as duas jurisdições (DL nº 129/84, de 27 de Abril) – a organização judiciária administrativa torna-se autónoma da jurisdição comum, separação esta que se tornou definitiva com a Revisão de 1989 (actualmente, Art. 209º, nº 1, alínea b) CRP), revisão com a qual o STA ganha, finalmente, estatuto constitucional (actual Art. 212º, nº 1 CRP).
            Como já referi, o Tribunal Central Administrativo surge após a Revisão Constitucional supra mencionada, através do DL nº 229/96, de 21 de Março. A criação deste tribunal não foi, no entanto, a solução para o problema gritante de sobrecarga de processos do STA, uma vez que esta sobrecarga se manteve (embora tenha reduzido, como resulta da apreciação dos quadros estatísticos apresentados por MÁRIO TORRES[20]), e agora em ambos os tribunais[21]. Esta sobrecarga advém sobretudo do exercício de competências de primeira instância por estes tribunais superiores, o que se manteve até à Reforma do Contencioso Administrativo. Há ainda que ter aqui em conta a tendência crescente de procura global da justiça administrativa[22], o que foi demonstrado por um recente estudo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que comprova um fenómeno geral de aumento de litigiosidade e de acréscimo das garantias dos particulares perante a Administração[23].
Para além destas questões estatísticas, há uma irracionalidade patente: estamos perante um sistema jurisdicional em que todos os tribunais da hierarquia são tribunais de primeira instância, como faz notar MÁRIO TORRES[24]. E mesmo que se alegue que a intervenção do STA em primeira instância ocorre apenas em casos excepcionais, há que ter em conta que, em comparação com o STJ, o STA é chamado a intervir um maior número de vezes nestas circunstâncias.
            Quanto ao STA, partindo do Art. 12º ETAF, há que ter em atenção a competência da Secção de Contencioso Administrativo, prevista no Art. 24º ETAF; a competência do pleno, plasmada no Art. 25º ETAF e a competência do plenário, estatuída no Art. 29º ETAF. Atente-se que, por força do Art. 4º, nº 3, alíneas b) e c) ETAF, e não obstante aquilo que se dispõe nalgumas alíneas do Art. 24º, foram tidas em conta algumas das críticas feitas ao Anteprojecto de 2000 aquando da redacção do actual texto normativo, nomeadamente que a possibilidade do STA julgar os actos administrativos do Presidente do STJ e do Conselho Superior da Magistratura e do seu Presidente poria em causa a autonomia e a independência da orgânica judiciária comum.
            No entanto, ainda não se eliminaram por completo as funções de primeira instância do STA, embora tenham sido fortemente reduzidas com a Reforma de 2002/2004. Ou seja, para além das funções de tribunal de recurso jurisdicional (de apelação, de revista, de revista per saltum e de uniformização de jurisprudência), de reenvio e de conflitos de jurisdição, o STA tem ainda as funções de tribunal de primeira instância previstas no Art. 24º, alíneas a) a f) do ETAF. Aqui, a principal alteração quanto às competências de 1ª Instância do STA, comparativamente com o ETAF anteriormente em vigor, prende-se com a exclusão das competências deste para julgar os actos do Governo, seus membros, Ministros da República e Provedor de Justiça.
            Acresce que, tendo os Tribunais Centrais Administrativos competências em primeira instância (Art. 37º, alínea c) ETAF), o STA tem ainda competência de segunda e não de última instância (Art. 24º, nº 1, alínea g) ETAF). Mas fora este caso pontual atrás referido quanto à competência em primeira instância dos TCA, a verdade é que, no ETAF de 2002, ele aparece como um puro tribunal de apelação (ou seja, de segunda instância), passando a competência em primeira instância, grosso modo, a ser da competência dos Tribunais Administrativos de Círculo, nos termos do Art. 44º, nº 1 ETAF.
JOSÉ DIMAS DE LACERDA[25] fala, assim, de uma oportunidade perdida, o que, ressalvando todo o mérito que teve a Reforma do Contencioso Administrativo, me parece uma crítica pertinente, já que a hierarquização dos tribunais não é feita conforme a quem cabe a legitimidade[26], mas sim tendo em conta considerações de outra índole, nomeadamente a ideia de “reanálise” das questões suscitadas em primeira e em segunda instância. Acontece que, mesmo após o momento em que passaram a existir três instâncias jurisdicionais, aquando da criação do TCA, só havia duas instâncias normais de decisão[27] – uma julgava em primeira instância, outra julgava como tribunal de recurso, não se podendo aqui fazer um paralelo estrito com aquilo que se passa com os tribunais judiciais. 
            A ideia presente no anterior ETAF, ao conferir um grande número de competências de 1ª Instância ao STA e ao TCA, parece-me que advém de um “quase dogma” de que os actos de altas autoridades só podem ser conhecidos por altos tribunais[28]. Estávamos, nesta altura, numa situação de pirâmide invertida[29], havendo um maior número de juízes no topo do que no sopé da hierarquia. Há ainda aqui que referir o argumento da tradição e da cultura administrativa, uma vez que certos actos, por força de quem os emana, sempre foram julgados por tribunais situados numa categoria superior a nível hierárquico. Obviamente não se pode ver as coisas em termos tão líquidos, mas a verdade é que, à importância dos actos de altas autoridades está associada uma ideia da importância da decisão, e é esta importância da decisão que justifica que em certos casos, que devem, no entanto, ser excepcionalíssimos, a competência seja atribuída a tribunais de 2ª ou de última instância, já que, regra geral, os juízes de 1ª Instância têm uma menor experiência e, portanto, uma menor preparação[30]. Mas é apenas nestes casos excepcionais – à luz da nossa Constituição, todos os tribunais, independentemente do seu posicionamento na hierarquia, são órgãos de soberania, e não é por a decisão provir de um tribunal de 1ª Instância que terá menos legitimidade e a verdade é que o juiz de 1ª Instância se depara com questões tão ou mais complexas como certas questões que são excluídas da sua competência por força da autoridade de quem emana o acto. 
            No entanto, a ideia de que se parte na Reforma de 2004 é a de que tem de se dar a cada um o que seu e, sobretudo, dar à primeira instância o que é de primeira instância. E parte-se não apenas de considerações constitucionais. De facto, há aqui um peso também importante da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[31]. Parece-me, e concordando aqui com MÁRIO TORRES[32], que estas duas considerações a que aludi parecem impor uma garantia, aplicável a todos os processos administrativos, de que existe um verdadeiro recurso de apelação para os tribunais de 2ª Instância e com a consagração do STA como tribunal de revista, o que decorre igualmente do princípio do duplo grau de jurisdição[33], concedendo-se que, em situações excepcionais, haja um triplo grau (Art. 150º CPTA).
            Impõe-se ainda ter em atenção o peso de certos princípios da organização judiciária, claramente postos em evidência por CÂNDIDO DE OLIVEIRA[34]. Um deles é o princípio da aproximação dos tribunais às populações, o qual, conjugado com o princípio do equilíbrio da organização judicial do território, leva a que os tribunais não se devam localizar geograficamente tendo apenas em conta a densidade demográfica, mas tendo também em atenção que a tutela jurisdicional efectiva só se realiza se as pessoas tiverem tribunais pertos de si. E estes princípios são tanto mais difíceis de se concretizar quantas mais competências de 1ª Instância forem atribuídas a tribunais superiores, uma vez que estes existem em menor número e, portanto, em poucas cidades (actualmente, STA e TCA em Lisboa e TCA no Porto, desdobramento feito pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro).
            Posto isto, analisados os preceitos legislativos e as opiniões doutrinárias, importa concluir, partilhando a minha opinião pessoal.  
            Já muito se conseguiu com a Reforma do Contencioso Administrativo, mas parece-me que houve aspectos que ficaram em aberto. Para além da crítica feita por JOSÉ DIMAS DE LACERDA a que já aludi, VASCO PEREIRA DA SILVA[35] menciona ainda a importância da criação de tribunais especializados em função da matéria, como forma de resposta ao número crescente de processos que decorrem perante os tribunais administrativos. A questão relativa à criação de tribunais especializados em função da matéria tem sido pouco debatida na doutrina, não estando ainda consagrada, e estando ainda em aberto. Convém apenas referir a posição de JORGE MIRANDA[36], que afirma que a não inconstitucionalidade dos mesmos não se pode retirar da previsão existente para os tribunais judiciais (211º, nº 2 e 4 CRP), mas está tudo nas mãos do legislador ordinário, que ainda não se pronunciou sobre esta matéria.
Com a Reforma, a organização administrativa veio a aproximar-se cada vez mais do regime de organização dos tribunais judiciais, conferindo-se ao STA mais próximo do STJ, embora mantenha o carácter de tribunal de 1ª Instância nalgumas situações. Assegura-se a tutela jurisdicional efectiva, evitando o congestionamento dos tribunais superiores, onde não é comum existirem muitos magistrados e permite-se que as questões de maior relevo sejam conhecidas pelo STA, o que é importante sobretudo em termos de uniformização da jurisprudência. O impacto da Reforma foi assim o de uma diminuição drástica da procura total dirigida ao STA e um aumento significativo da procura dirigida aos tribunais administrativos de círculo, ficando uma situação mais ou menos semelhante à já existente no que toca aos tribunais centrais administrativos – e eram estes, sem dúvida alguma, os objectivos da mesma, ao dar à primeira instância o que é de primeira instância, pelo que há que ressalvar, uma vez mais, o mérito que teve. Não se pode porém esquecer que o alargamento das competências dos tribunais administrativos de círculo imporá que se dê uma resposta rápida a esta realidade, em nome da tutela jurisdicional efectiva, instalando-se novos tribunais e recrutando-se novos magistrados.
Se a Constituição caminhava no sentido da tutela jurisdicional, esta Reforma veio dar muitas das respostas que faltavam. Fora certas objecções dogmáticas, às quais aludi ao longo do texto e que me parecem pertinentes, parece-me que o balanço é mais que positivo, ficando todos a ganhar – aos tribunais de círculo administrativo são-lhes conferidas as competências que a Constituição e os princípios de organização dos tribunais exigiam; e o STA, com a diminuição de competências de 1ª Instância, ganha o papel de um verdadeiro tribunal supremo. E, assim, dando a cada tribunal as competências que lhe pertencem, fica cada macaco no seu galho.



[1] TORRES, Mário; «Organização e competência dos tribunais administrativos», in Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, Volume I, Coimbra Editora, 2003, pp. 142 e ss.
[2] SILVA, Vasco Pereira da; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo; Almedina, 2ª Edição, 2009, pp. 182 e ss.
[3] SILVA, Vasco Pereira da; ob. cit.
[4] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes; «Ainda a Reforma do Contencioso Administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, Nº 2, Março/Abril 1997.
[5] SILVA, Vasco Pereira da; «Vem aí a Reforma do Contencioso Administrativo (!?), in Reforma do Contencioso Administrativo, Volume I, Coimbra Editora, 2003, pp. 80 e ss.
[6] TORRES, Mário; ob. cit.
[7] SILVA, Vasco Pereira da; ob. cit.
[8] SILVA, Vasco Pereira da; ob. cit.
[9] SILVA, Vasco Pereira da; ob. cit.
[10] MIRANDA, Jorge; «Uma perspectiva constitucional da reforma do contencioso administrativo», in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume V [Separata], Almedina, 2003, pp. 51.
[11] Estas teriam o objectivo de dirimir, numa fase preliminar, os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais, mas não foram, posteriormente, consagradas.
[12] As intervenções constam na Reforma do Contencioso Administrativo, Volume I, Coimbra Editora, 2003.
[13] OTERO, Paulo; «Breve Nota Sobre o Processo Político-Constitucional de Reforma do Contencioso Administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, Nº 28, Julho/Agosto 2008, pp. 61.
[14] TORRES, Mário; ob. cit.
[15] SILVA, Vasco Pereira da; ob. cit.
[16] SILVA, Vasco Pereira da; «Vem aí a Reforma…»
[17] MIRANDA, Jorge; ob. cit.
[18] AMARAL, Diogo Freitas do; e ALMEIDA, Mário Aroso de; Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Edição, Almedina, 2007.
[19] LOPES, José Eduardo de Oliveira Gonçalves; Do Supremo Tribunal Administrativo como Tribunal Supremo no âmbito da reforma do contencioso administrativo de 2004; Lisboa, 2003.
[20] TORRES, Mário; ob. cit.
[21] SILVA, Vasco Pereira da; «Vem aí a Reforma…».
[22] «Estudo de Organização e Funcionamento dos Tribunais Administrativos», in Reforma do Contencioso Administrativo, Volume II, Coimbra Editora, 2003, pp. 23 e ss.
[23] «Estudo de Organização e Funcionamento dos Tribunais Administrativos», ob. cit., pp. 214.
[24] TORRES, Mário; ob. cit.
[25] LACERDA, José Dimas de; «Ainda a Reforma do Contencioso Administrativo e a Proposta de Lei do Orçamento para 2003», in Scientia Iuridica, Tomo LI, nº 294, Setembro-Dezembro de 2002.
[26] Questão igualmente suscitada por OLIVEIRA, Cândido de; «Organização dos Tribunais Administrativos e Fiscais», in Reforma do Contencioso Administrativo, Volume I, Coimbra Editora, 2003, pp. 279 e ss., afirmando que “a justiça administrativa é uma justiça com a mesma dignidade da que é administrada por qualquer ordem de tribunais”.
[27] ANDRADE, Vieira de; A Justiça Administrativa, 11ª Edição, Almedina, 2011, pp. 117 e ss.
[28] OLIVEIRA, Cândido de; «Organização dos Tribunais Administrativos e Fiscais», in Reforma do Contencioso Administrativo, Volume I, Coimbra Editora, 2003, pp. 279 e ss.
[29] AMARAL, Diogo Freitas do; e ALMEIDA, Mário Aroso de; ob. cit.
[30] «1ª Mesa: Organização dos Tribunais e Tramitação Processual», in Reforma do Contencioso Administrativo, Volume I, Coimbra Editora, 2003, pp. 639 e ss.
[31] Artigo 6º, nº 1: «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.»[32] TORRES, Mário; ob. cit.
[33] OLIVEIRA, Cândido de; ob. cit.
[34] OLIVEIRA, Cândido de; ob. cit.
[35] SILVA, Vasco Pereira da; «Vem aí a Reforma…»
[36] MIRANDA, Jorge; «Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, Nº 24, Novembro/Dezembro de 2000.





BIBLIOGRAFIA
Monografias, Artigos e Teses

«1ª Mesa: Organização dos Tribunais e Tramitação Processual», in Reforma do Contencioso Administrativo, Volume I, Coimbra Editora, 2003.

AMARAL, Diogo Freitas do; e ALMEIDA, Mário Aroso de; Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Edição, Almedina, 2007.

ANDRADE, José Carlos Vieira de; A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2011.

CADILHA, Carlos Alberto Fernandes; «Ainda a Reforma do Contencioso Administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, Nº 2, Março/Abril 1997.

«Estudo de Organização e Funcionamento dos Tribunais Administrativos», in Reforma do Contencioso Administrativo, Volume II, Coimbra Editora, 2003.

LACERDA, José Dimas de; «Ainda a Reforma do Contencioso Administrativo e a Proposta de Lei do Orçamento para 2003», in Scientia Iuridica, Tomo LI, nº 294, Setembro-Dezembro de 2002.

LOPES, José Eduardo de Oliveira Gonçalves; Do Supremo Tribunal Administrativo como Tribunal Supremo no âmbito da reforma do contencioso administrativo de 2004; Lisboa, 2003.

MIRANDA, Jorge; «Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, Nº 24, Novembro/Dezembro de 2000.

          - «Uma perspectiva constitucional da reforma do contencioso administrativo», in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume V [Separata], Almedina, 2003.

SILVA, Vasco Pereira da; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo; Almedina, 2ª Edição, 2009.

- «Vem aí a Reforma do Contencioso Administrativo (!?), in Reforma do Contencioso Administrativo, Volume I, Coimbra Editora, 2003.

OLIVEIRA, Cândido de; «Organização dos Tribunais Administrativos e Fiscais», in Reforma do Contencioso Administrativo, Volume I, Coimbra Editora, 2003.

OTERO, Paulo; «Breve Nota Sobre o Processo Político-Constitucional de Reforma do Contencioso Administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, Nº 28, Julho/Agosto 2008.

TORRES, Mário; «Organização e competência dos tribunais administrativos», in Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, Volume I, Coimbra Editora, 2003.


Diana Salvado Nunes
Nº 19580

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