terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Da Intimação para a Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias


Da Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias:


            As intimações surgiram no ordenamento jurídico português, enquanto meios acessórios. Na LPTA, estavam previstas enquanto meios processuais atípicos acessórios, uma vez não se reconduzirem nem à figura das acções, nem aos recursos.     
            A nomenclatura “intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias” surge apenas com o CPTA. Na LPTA previa-se a intimação para comportamentos (art.º 86.º e ss), destinada a permitir a reacção contra a violação ou ameaça de violação de normas de direito administrativo, levadas a cabo por particulares e concessionários. A legitimidade activa cabia, naturalmente, ao particular lesado e ao Ministério Público; a legitimidade passiva, aos demais particulares e aos concessionários. O juiz, aquando da decisão, determinava o comportamento a adoptar, o prazo e, ainda, uma sanção pecuniária compulsória.
            No CPTA prevêem-se dois processos urgentes de intimação: i) a intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões (art.º 104.º e ss) – que no presente post não nos ocupará – e ii) a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias (art.º 109.º e ss).

Os direitos, liberdades e garantias, ou direitos de natureza análoga, são directamente aplicáveis, vinculando entidades públicas e privadas (art.º 18.º CRP). O CPTA dedicou-lhes algumas linhas, nomeadamente, através da sua inclusão no leque de processos especiais plasmados no art.º 36.º CPTA, cujo regime é estabelecido nos art.º 109.º a 111.º CPTA.
            Como bem nota FIGUEIREDO DIAS[1], o CPTA “encontra as suas raízes no texto da nossa Constituição […] não apenas por ter sido aditado um novo número (o n.º 5) ao art.º 20.º […] mas também pelo facto de a CRP não prever […] nenhum mecanismo específico de queixa constitucional que permita a tutela directa dos direitos fundamentais perante o Tribunal Constitucional”.
            Através de uma análise sumária de direito comparado, são vários os ordenamentos jurídicos que preveem esquemas de defesa de direitos fundamentais de natureza constitucional: pense-se, designadamente, no recurso de amparo utilizado nos países de matriz hispânica.
            Tais mecanismos, tratando-se de “acções destinadas à condenação de uma entidade pública num comportamento activo ou passivo em virtude da violação, activa ou passiva, actual ou iminente, de direitos fundamentais”[2], são verdadeiros meios processuais, apresentados perante e a resolver por Tribunais Constitucionais, ou no limite por órgãos dotados com competência para apreciar matérias de natureza constitucional.
            Sendo evidente a ausência de um tal mecanismo no direito português, na verdade, o seu interesse e contributo foi, de algum modo, suprido através de outros meios colocados ao dispor dos cidadãos: queixa ao provedor de justiça, instituto do habeas corpus, possibilidade de propositura de acções cíveis e administrativas relativas à protecção de direitos fundamentais e, por fim e não menos importante, a faculdade de os cidadãos suscitarem incidentes de inconstitucionalidade em processos judiciais, como objectivo de desaplicação de normas, no quadro da fiscalização concreta da constitucionalidade, com a garantia de recurso ao TC.
            Com a revisão constitucional de 1997, passou a constar da CRP o princípio da tutela jurisdicional efectiva, tendo sido aditado um novo número ao art.º 20.º, nos termos do qual “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”. Com um aditamento deste teor quis-se impor ao legislador ordinário a criação de mecanismos que garantissem a tutela efectiva, célere e em tempo útil dos direitos fundamentais.
E é nesta sequência que o CPTA vem qualificar a intimação como processo urgente (art.º 36.º/1 al. d)). Do que se trata são de verdadeiras acções principais, lado a lado com a acção administrativa comum e acção administrativa especial. Desde logo, o carácter célere e urgente serve de fundamento aos curtos prazos de que o Juiz dispõe para resolver o litígio, a par de uma necessidade de tutela definitiva incompatível com a tutela acessória oferecida pelas providências cautelares. A intimação está, portanto, sujeita a uma tramitação simplificada e acelerada.

Naquilo que aos pressupostos da admissibilidade da sua propositura diz respeito, há que aludir ao disposto no art.º 109.º CPTA.
Relativamente aos pressupostos relativos às partes, a capacidade judiciária e a personalidade judiciária deverão ser aferidas nos mesmos termos do CPC (art.º 5.º e ss CPC ex vi art.º 1.º CPTA). O patrocínio é obrigatório em todos os processos que corram na jurisdição administrativa (art.º 11.º CPTA).
Quanto à legitimidade (aferida nos termos dos art.º 9.º e 10.º), importa desde já aludir ao facto de o legislador ordinário ter procedido à extensão do âmbito objectivo do preceito da CRP, isto porque admitiu no CPTA não apenas direitos, liberdades e garantias de natureza pessoal, como ao omitir tal característica, possibilitou a referência a direitos, liberdades e garantias de outra natureza, que não a pessoal.
Legitimidade activa terão os titulares (veja-se: pessoas singulares e pessoas colectivas privadas) dos direitos, liberdades e garantias objecto de lesão ou ameaça de lesão (art.º 109.º). Já quanto à legitimidade passiva, a regra é a da titularidade da relação material controvertida (art.º 10.º/1), nomeadamente a contra-parte e os contra-interessados – no âmbito da intimação, legitimidade passiva terá a entidade lesante, seja a Administração, sejam os demais particulares.
Ainda quanto à legitimidade passiva, importa fazer algumas considerações: nos termos do art.º 109.º/2 admite-se a existência de legitimidade passiva relativamente a todo e qualquer particular ou somente àqueles que, de algum modo, exerçam a função administrativa? Parecendo-nos procedente o entendimento de ANABELA F. COSTA LEÃO[3] “uma leitura de tamanha abrangência [como a primeira] colide com a delimitação constitucional da jurisdição administrativa, à qual cabe dirimir os litígios resultantes das relações jurídico-administrativas (art.º 212.º/3 CRP e art.º 1.º ETAF)”.

Pensando-se, agora, nos pressupostos relativos ao processo, VIEIRA DE ANDRADE[4] faz alusão ao pressuposto da subsidiariedade da intimação, na medida em que a tutela requerida pode ser alcançada por outro meio com preferência legal face a este processo urgente. Tratando-se de meios urgentes, “há-de entender-se que, pela sua natureza, deverão ser utilizados com parcimónia, nas circunstâncias de especial urgência previstas na lei, e sempre que se entenda que são o meio mais adequado, porque necessário à tutela dos direitos em causa”[5].
JORGE GUERREIRO MORAIS[6] retira do enunciado do art.º 109.º/1 duas condições de admissibilidade da pretensão: a urgência e a indispensabilidade.
A urgência aparece enquanto decorrência lógica da qualificação da intimação como meio urgente, analisada subjectivamente, i.e., de acordo com a situação concreta do requerente.
Quanto ao pressuposto da indispensabilidade (ausência de qualquer outro meio processual que tutele, da mesma forma, a situação abrangida pela intimação – que, a existir, preferirá a esta) da emissão célere de uma decisão, é patente o carácter excepcional da intimação. Senão veja-se: a não ser urgente a tutela efectiva, a defesa de tais direitos, liberdades e garantias far-se-á por meio de acções administrativas não urgentes, seja sob forma comum, seja sob forma especial.  A urgência aparece pois, aqui, enquanto manifestação do interesse processual – “só tendo interesse em usar a Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias aquele que daí retirar uma utilidade presente”[7]
O Juiz deverá, portanto, proceder à análise da urgência da pretensão (sendo certo que se ela não se confirmar não poderá usar-se mão do mecanismo do decretamento provisório da providencia cautelar – art.º 131.º CPTA) e somente depois analisar o pressuposto da indispensabilidade, que apenas se encontrará preenchido caso se verifique, em concreto, a insuficiência do decretamento provisório da providência.
O decretamento provisório tem, na sua génese, as mesmas intenções e motivações que a intimação, acontece que, tratando-se de uma acção acessória, não se compagina com a necessidade de uma tutela definitiva e efectiva dos direitos fundamentais. A intimação determina uma situação irreversível sobre a situação jurídica em causa, não podendo regular-se provisoriamente a situação por um eventual futuro processo principal ficar prejudicado por falta de objecto[8].
A estes pressupostos há ainda a acrescentar o requisito da insuficiência – a pretensão do particular apenas se satisfaz com a tutela definitiva e não com uma  composição provisória[9].

O que fazer perante um caso de não verificação dos pressupostos de admissibilidade de proposição da intimação (art.º 109.º CPTA)?
A doutrina é divergente. Apresenta-se possível, por um lado, a absolvição da instância e, por outro, a convolação do processo em procedimento cautelar.
RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA[10] defende a convolação sempre que a situação seja de excesso de processo (casos em que o particular pensava que a sua situação carecia de uma decisão urgente e definitiva), optando pela absolvição da instância nos casos de meros erros de processo, em que, por exemplo, nem sequer exista um direito, liberdade ou garantia a tutelar. Já MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[11] entende que quando se deva negar a existência de pressupostos que permitam a decretação da intimação, deverá o juiz convolar oficiosamente o processo em providência cautelar, nunca se podendo proferir uma decisão de absolvição da instância, pelo facto de isso obstar ao princípio da tutela efectiva.

Quanto ao prazo de propositura da acção, parte da doutrina defende a isenção do requerente da observância de qualquer prazo processual[12]. JORGE GUERREIRO MORAIS apresenta, contudo, uma distinção: nas situações em que esteja em causa a violação do núcleo essencial do direito, razão pela qual o acto é nulo (art.º 133.º/2 al.d) CPA), a sua impugnação poderá ser feita a todo o tempo; fora do núcleo essencial, o acto será anulável, motivo pelo qual o respectivo prazo de impugnação será de 3 meses (art.º 58.º/2 al. b) CPTA)
No que concerne à tramitação, a intimação, sendo um meio processual urgente, caracteriza-se pela simplicidade e rapidez. Enquanto processo urgente, dispensa de vistos prévios, corre em férias judiciais, sendo os actos da Secretaria praticados no próprio dia, com prioridade sobre os demais.
ANABELA F. COSTA LEÃO, apresenta-nos quatro tipos de tramitação[13]:
1)        Tramitação normal - aquela que resulta do art.º 110.º - apresentado o requerimento, o juiz ordena a notificação do requerido para responder no prazo de 7 dias, de modo a permitir-se o exercício do contraditório (art.º 110.º/1); o juiz pode determinar as diligências probatórias necessárias (art.º 110.º/2), findas as quais deverá proferir decisão no prazo de 5 dias.
2)        Tramitação mais lenta que o normal – nos casos em que a complexidade do processo a determine, a tramitação segue os termos da acção administrativa especial, com os prazos reduzidos a metade (art.º 110.º/3)
3)        Tramitação mais rápida que o normal - situações de maior urgência e celeridade (art.º 111.º/1), impondo-se que se siga a tramitação normal (art.º 110.º/1 e 2), encurtando-se o prazo para o contraditório do requerido.
4)        Tramitação ultra-rápida – em razão da extrema urgência, o juiz, após análise da petição inicial, optará pela realização de uma audiência oral, no prazo de 48horas, após o qual decide imediatamente.

Por fim, e naquilo que à sentença diz respeito, sendo pretensão do particular a emissão ou omissão de um acto estritamente vinculado, pode o tribunal substituir-se à Administração, através da execução específica (art.º 109.º/3)
        Pode ainda ao Juiz determinar a aplicação de uma sanção pecuniária compulsório, com vista ao incitamento do cumprimento da decisão da causa, havendo também a possibilidade de responsabilidade, nos termos do art.º 159.º, ex vi art.º 110.º/5.
Uma última nota quanto ao facto de caber sempre recurso de improcedência da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias (art.º 142.º/3 al. a)). Relativamente ao recurso de procedência, dependerá do valor da causa, que deve ser superior à alçada do tribunal de que se recorre (art.º 142.º/1).

           


[1] José Eduardo Figueiredo Dias, Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, Intimação, in  Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. 84 (2008).
[2]  idem
[3] Anabela F. Costa Leão, A Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, in Estudos de Direito Público, coord. João Caupers, Jorge Bacelar Gouveia. - Lisboa, 2005, p. 347-452.
[4] Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa: lições, 10ª ed., Coimbra, Almedina, 2009.
[5] Anabela F. Costa Leão, ob. cit.
[6] Jorge Guerreiro Morais, A sensibilidade e o bom senso no contencioso administrativo : um breve ensaio sobre a intimação para protecção de direitos liberdades e garantias , in O direito, A. 139, nº 5.
[7] Anabela F. Costa Leão, ob. cit.
[8] Jorge Guerreiro Morais, ob. cit.
[9] Ana Sofia de Sousa Firmino, A Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, Relatório de mestrado para a cadeira de Contencioso Administrativo II apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. - Orientador: Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva.
[10]  Rodrigo Esteves de Oliveira, Meios urgentes e tutela cautelar.
[11] Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed. rev. e actualizada, Lisboa. Almedina, 2005
[12] Neste sentido, Carla Amado Gomes, Pretexto, contexto e texto da intimação para protecção de direitos, liberdade e garantias, Coimbra, Almedina, 2003, Ana Sofia Firmino, ob, cit. e Sofia David, Das Intimações: considerações sobre uma nova tutela de urgência no código de processo nos tribunais administrativos, Lisboa, Almedina, 2005.
[13] Anabela F. Costa Leão, ob. cit.



Bruna Bilro
Aluna n.º 19.523

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