domingo, 16 de dezembro de 2012

O Direito da Acção Popular



1.       O DIREITO DE ACÇÃO POPULAR CLÁSSICO

1.1. O direito de acção popular como instrumento de democracia participativa

Nas democracias modernas, ao lado de um conceito de democracia representativa ou indirecta, o conceito de democracia representativa tem sido integrado pelo conceito de democracia participativa; o exercício do direito de voto é um dos momentos necessários mas não o suficiente para consentir que o povo participe no poder.
A expressão “participação” refere-se às formas de concurso dos cidadãos, na tomada de decisões, expressando a existência ou previsibilidade de formas de expressão institucional dos seus interesses, ultrapassando os esquemas tradicionais da democracia representativa.
Um dos traços característicos da organização do poder político na Constituição reside na ampla consagração que m as formas de democracia participativa.
O artigo 48.º CRP dispõe que todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do País, directamente ou por intermédio dos seus representantes livremente eleitos. Em reforço deste princípio, o artigo 112.º CRP refere que a participação directa e activa dos cidadãos na vida política constitui condição e instrumento fundamental da consolidação do sistema democrático, sendo tarefa fundamental do Estado Português assegurar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais.
O direito de acção popular, consagrado constitucionalmente no n.º 3 do artigo 52.º da Lei Fundamental, é um instrumento de participação e intervenção democrática dos cidadãos na vida pública, de fiscalização da legalidade, de defesa dos interesses das colectividades e de educação e formação cívica de todos. É, assim, consagrada uma forma peculiar de participação dos cidadãos, individual ou colectivamente organizados, na defesa e preservação de valores essenciais, por pertencerem a uma mesma colectividade.
Com a nova redacção do n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa, que procedeu ao alargando do conteúdo do direito de acção popular, reforçam-se os instrumentos de participação dos cidadãos na vida pública, aprofundando-se a democracia participativa, como enunciado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, se o acesso ao direito e aos tribunais é um direito de todos, ganha dimensão o direito à participação de cada um na realização da justiça.


2.       CONSAGRAÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE ACÇÃO POPULAR

1 .  Antes da revisão de 1989

A Constituição da República Portuguesa, na redacção original, consagrou no n.º 2 do seu artigo 49.º, o direito de acção popular, dispondo: É reconhecido a todos o direito de acção popular, nos casos e termos previstos por lei.

2 . Depois da revisão de 1989

De acordo com a nova redacção do art. 52.º/3 CRP é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, nomeadamente o direito de promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, a degradação do ambiente e a qualidade de vida ou a degradação do património cultural, bem como de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização.
O novo regime do artigo 52.º, ampliando consideravelmente o âmbito do direito de acção popular, faz aparecer sob a qualificação unitária de acção popular, duas figuras de recorte distinto. Por um lado, subsiste o tradicional instituto da acção popular, referenciado à actividade da Administração, ora como meio de suprir a sua inércia, ora como reacção à prática de actos ilegais. O direito de acção popular é também consagrado como instrumento de tutela dos interesses colectivos e difusos.
As precisões introduzidas no novo texto constitucional tiveram como
propósito aprofundar e desenvolver as condições de acesso à justiça e reforçar a tutela de interesses difusos.
O novo artigo 52.º enumera, exemplificativamente, as matérias objecto do direito de acção popular, ou seja, infracções contra a saúde pública, degradação do ambiente e qualidade de vida e degradação do património cultural.
Embora de diversos projectos constasse a referência à protecção dos direitos dos consumidores e, contrariamente ao previsto no Acordo de Revisão, não constam os mesmos do elenco do n.º 3 do artigo 52.º, por ser aquela uma área que poderia conduzir a um uso generalizado do direito de acção popular, afectando matérias muito ligadas a questões de autonomia privada.
Assim, alguns autores[i] consideram que os cidadãos apenas poderão agir como partes principais quando estejam em jogo interesses dos consumidores que se identifiquem com a saúde pública, carecendo, contudo, de legitimidade para desencadear acções judiciais quando estejam em causa interesses de ordem meramente económica[ii].
No entanto, parece poder retirar-se do n.º 3 do artigo 52.º, através da utilização do advérbio “nomeadamente”, que a enumeração aí prevista não é exaustiva, mas exemplificativa.
A acção popular já o tem o sentido clássico, o se limita a um direito de intervenção junto dos Tribunais, sendo também um direito de agir junto da Administração pública, através de procedimentos que devem ser expeditos e sumários para serem eficazes.

III.  DIREITO DE ACÇÃO POPULAR E INTERESSES DIFUSOS

De tudo o atrás referido parece poder inferir-se que o legislador constituinte teve o propósito de ampliar ou, densificar, o conceito clássico de acção popular.
Da redacção dada ao n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa, verifica-se a intencionalidade de inscrever no quadro constitucional a tutela dos chamados direitos colectivos, fragmentados ou difusos, através de um novo esquema jurídico de protecção de tais direitos[iii].
No entanto, a formulação adoptada o prima pela limpidez e concludência.
Desde logo estabelece-se uma patente ambiguidade entre o que é classicamente  tido por acção popular e o que se deverá supor ser a protecção de interesses difusos. É patente que se quis ir para além das acções populares “clássicas” ou “puras”, embora sem prejuízo destas. No preceito constitucional contém-se, ao que tudo faz crer, sem grande rigor conceitual, como que uma “miscigenação das acções populares, no sentido convencional, e das acções de grupo, em defesa de interesses indirectos[iv].
A adopção do direito de acção popular como instrumento adequado e eficaz  à protecção destes interesses, vem na sequência do preconizado por alguns autores que acabam por concluir que o “instrumento tem potencialidades muito mais ricas do que a lei lhe confere, podendo alargar-se à tutela das acções colectivas para defesa de interesses difusos”[v].

1 . Interesses difusos

m sido avançadas várias definições para a categoria dos interesses difusos, podendo-se dizer que será o interesse, juridicamente reconhecido, de uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos, eventualmente unificada mais ou menos estreitamente com uma comunidade e que tem por objecto bens não susceptíveis de apropriação exclusiva[vi].
A necessidade de proteger uma série de interesses plurindividuais, que não são protegidos pelos instrumentos clássicos, fez nascer a noção de interesses difusos, em áreas conexas com a atribuição de direitos económicos, sociais e culturais, sem que com eles se confundam, nomeadamente em matérias rela- cionadas com o ambiente, consumidores e património cultural.
No entendimento geral e de acordo com o consagrado constitucionalmente, o interesse difuso é um direito subjectivo público, porquanto confere um poder-dever por parte do Estado. É ainda direito de carácter positivo, pois pode levar à inconstitucionalidade por omissão, mas também negativo, traduzindo-se, neste caso, na abstenção por parte do Estado ou de terceiros de acções atentatórias aos direitos conferidos. Estas normas, não são meramente programáticas, pois estabelecem condições materiais e institucionais necessá- rias à participação do cidadão e à sua realização pelos poderes públicos.
Ainda que muitos autores considerem que interesses difusos e interesses colectivos são sinónimos, pois, assentam na ideia de interesse público, deve ser feita, na nossa opinião, clara distinção entre os conceitos. Os interesses colectivos têm um portador, concreto e determinado, tendo como base uma estrutura  organizativa que surge de uma relação de interesses estabelecida para a prossecução de um fim comum, existindo uma estrutura tendencialmente unitária do colectivo, podendo assim ser considerado um interesse privado, de um grupo ou de uma categoria. Quanto aos interesses difusos apresentam-se sem sujeito concreto, indeterminados, não quanto ao sujeito mas também quanto ao objecto, traduzindo de forma plural e heterogénea o interesse público.
A doutrina italiana distingue entre interesses difusos em sentido próprio e impróprio[vii]. Os direitos difusos em sentido impróprio  o aqueles em que o se verifica a coexistência de todos os caracteres do interesse difuso, porque a ordem jurídica atribui a sua titularidade a determinado ente público ou privado, transformando-os em interesses colectivos.
Sendo grande a ambiguidade terminológica entre interesses difusos e interesses colectivos, não se afigura ser a mesma relevante no âmbito deste comentário, pois o parece que fosse intenção do legislador constituinte distingui-las conceitualmente, mas sim procurar adequada tutela jurisdicional à defesa dos interesses difusos e colectivos, focando-se antes a titularidade plurindividual do interesse.

2 . A tutela dos interesses difusos

A tutela dos interesses difusos pode adquirir efectividade prática através de dois meios: um direito de participação a nível procedimental e a atribuição de uma forma de acção judicial, de legitimação para agir processualmente em defesa daqueles direitos.
A participação procedimental deve possibilitar que o cidadão intervenha, individual ou colectivamente, nas decisões administrativas, expressando os seus interesses ou de determinado grupo, em conexão com o princípio da democracia participativa.
Para a protecção dos interesses difusos deve ser dada relevância, num primeiro plano, às relações entre a Administração e o particular, para que este possa conhecer validamente as exigências e carências do grupo, devendo tomar uma decisão depois de ouvir o interessado.
A participação na emanação de  uma  decisão da Administração implica uma primeira especificação do interesse a tutelar, sendo, de modo geral, tutelados os interesses difusos em sentido impróprio, isto é, aqueles que o representados por uma entidade colectiva.
Ao permitir-se a intervenção a nível procedimental dos representantes de determinado grupo, deve posteriormente ser legitimada a tutela judicial dos seus interesses que, ainda que independente, é complementar.
O problema da tutela judicial dos interesses difusos está intimamente ligado com um problema de direito processual, a legitimidade para agir. As vias processuais típicas o se encontram adaptadas à protecção dos interesses difusos, em virtude de não reconhecerem capacidade judicial activa aos entes representativos desses interesses, ou aos cidadãos individualmente.
A forma mais eficaz de defesa desses interesses será a atribuição de legitimidade por categorias ou grupos, sem prejuízo da legitimidade de cada cidadão, como direito cívico, em situações de direito difuso impróprio.
Através da tutela destes interesses por parte dos cidadãos, realiza-se uma forma de participação do cidadão na administração da justiça, deixando de competir somente aos Estados a defesa do interesse público e, ultrapassando-se a figura do interesse pessoal e directo, de acordo com a qual a acção do particular é admissível quando a tutela do seu interesse coincidir com a protecção da sua esfera individual.
Para a legitimação para agir por parte de entes associativos houve necessidade de subjectivar os interesses difusos, definindo-se critérios de subjectivação como a ligação territorial, reconhecimento do fim estatutário e representação adequada dos titulares de interesses difusos.

3 .  A tutela dos interesses difusos no Direito português

A Constituição da República Portuguesa dedica os seus artigos 60.º, 66.º e 78.º à protecção dos direitos dos consumidores, direito ao ambiente e património cultural, consagrando, como já exposto no presente trabalho, o direito de acção popular, como instrumento de defesa destes interesses[viii].
A nível de legislação ordinária e de participação procedimental, a Lei de Defesa do Consumidor[ix]  consagra a defesa dos seus direitos, assegurando-hes a participação, por via representativa, na definição legal ou administrativa dos seus interesses.
Na sequência do que a doutrina vem muito preconizando, o artigo 53.º do Código de Procedimento Administrativo consagra a legitimidade para a protecção de interesses difusos aos cidadãos a quem a actuação administrativa provoque ou possa provocar prejuízos relevantes em bens fundamentais como a  saúde pública, habitação, educação, património cultural, ambiente, ordenamento do território e qualidade de vida, assim como aos residentes na circunscrição em que se localize algum bem do domínio público afectado pela acção da Administração. Tem também legitimidade para defender os interesses dos residentes de determinada circunscrição, as associações dedicadas à defesa de tais interesses, assim como os órgãos autárquicos da respectiva área.
Papel mais relevante tem sido atribuído ao Ministério Público, não só porque o artigo 221.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 3.º da sua Lei Orgânica[x], obrigam à sua intervenção em processos em que estejam em causa interesses públicos, mas porque legislação específica nestas maté- rias lhes confere tal legitimidade.
Ainda que não exista muita jurisprudência sobre este tema, o que poderá ser considerado revelador da fraca protecção conferida aos interesses difusos, é de referir um acórdão de 6 de Janeiro de 1988, do Supremo Tribunal de Justiça[xi]. A autora, invocando um direito subjectivo e interesse legítimo, pedia a condenação dos réus a absterem-se de urbanizar na zona de protecção da Casa dos Carneiros, de que era proprietária, inserida numa zona de protecção urbanística. Os réus contestaram, invocando a ilegitimidade da autora e, tendo no despacho saneador a mesma sido considerada parte legítima, recorreram, com os mesmos fundamentos. Tendo a questão subido ao Supremo Tribunal de Justiça, este pronunciou-se pela legitimidade da autora, argumentando que embora objectivamente os interesses difusos se estruturam como interesses supra-individuais, existe o interesse de cada indivíduo pelo facto de pertencer à pluralidade de sujeitos a que se refere a norma que tutela esse interesse. A nível individual, o interesse difuso encontra protecção no quadro do ordenamento clássico, nomeadamente dos direitos de personalidade, sendo a legitimidade activa do sujeito portador do interesse difuso aferida pela utilidade derivada da precedência da acção.






[i] Raposo, Mário, Os direitos das pessoas e o interesse geral, Provedoria de Justiça, 1991.
[ii] Cfr. Carlos Lopes do Rego, Reflexos imediatos da consagração constitucional do direito de acção popular, bibliografia citada.
[iii] CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª ed.,  Coimbra, Coimbra Ed., 1993.
[iv] Raposo, Mário, Os direitos das pessoas e o interesse geral,  Provedoria de Justiça, 1991.
[v] Cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, edição anterior à revisão constitucional de 1989
[vi] Os interesses difusos o pertencem a uma pessoa isolada ou grupo delimitado de pessoas mas a uma série indeterminada ou de imprecisa determinação; os seus titulares não estão ligados por um vínculo jurídico definido. Como refere Massimo Severo Giannini, no dia em que o interesse difuso encontrar  um portador será um interesse colectivo. Este interesse inscreve-se  simultaneamente na esfera jurídica de cada cidadão e integra o património do  grupo. Quanto ao seu objecto, este traduz-se num bem indivisível, no sentido de ser insusceptível de divisão em quotas atribuídas individualmente a cada um dos interessados e insusceptível de esgotamento.
[vii] Giannini, Ambiente – ensaio sobre os seus diversos aspectos jurídicos, Rivista Trismestrale di Diritto Publico, Passim, 1973.
[viii] Estes direitos são também consagrados internacionalmente na Declaração Universal dos Direitos do Homem, Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Convenções e Recomendações da O.I.T. e normas de direito comunitário, vinculando o Estado português, nos termos do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.
[ix] Lei n.º 24/96, de 31 de Julho
[x] Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro com última alteração pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro 
[xi] Acórdão de 6 de Janeiro de 1988, 1.ª Secção, processo n.º 75 593, in Tribuna de Justiça, Janeiro de 1988.


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Miguel Henriques
19779

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