terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A declaração de ilegalidade por omissão



A declaração de ilegalidade por omissão

1. Introdução

          A declaração de ilegalidade por omissão consta do artigo 77º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos[1] (doravante CPTA) e permite às entidades designadas por lei reagir contra omissões de regulamentos por parte da Administração.
      O aparecimento deste mecanismo processual constituiu uma das alterações mais significativas do novo contencioso administrativo[2] pois permitiu suscitar-se um pedido de apreciação da ilegalidade por omissão numa acção administrativa especial.
     A criação deste instituto foi decalcada da declaração de inconstitucionalidade por omissão referida no artigo 283º da Constituição da República Portuguesa.
           
2. Principais aspectos deste regime

Na terminologia do professor Freitas do Amaral[3] os regulamentos administrativos “são as normas jurídicas emanadas no exercício do poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei”.
            O artigo 77º do CPTA é expresso ao referir que o que está em causa é a omissão de regulamentos administrativos cuja ausência gera uma ilegalidade e, tal como defende o professor Mário Aroso de Almeida[4], daqui decorre que esta exigência “constitui um verdadeiro dever e não uma mera faculdade” pois a ilegalidade decorre da inércia da Administração e não de uma lacuna ou omissão no seu processo de formação ou no seu conteúdo.
            Este artigo também estabelece que para se poder invocar este instituto tem que existir uma omissão, omissão esta que a generalidade da doutrina entende terá que ser juridicamente relevante, ou seja, só se poderá recorrer a este regime quando a Administração tenha um dever legal de agir.
A doutrina tende a defender que é possível equacionar três situações típicas:
1.  Ou há uma pura omissão regulamentar: que deixa de existir com a emissão do regulamento necessário;
2.  Ou há um regulamento, mas este é incompleto e deficiente, devendo a carência ser suprida através dos mecanismos normais de interpretação e integração (quando isso seja possível);
3.  Ou a incompletude é da própria normação primária, o que se resolve ou pelos mesmos mecanismos de interpretação e integração, ou pela alegação da inconstitucionalidade da lei, por violação do princípio da igualdade.
O dever de regulamentar pode advir de forma directa (da indicação expressa de uma concreta lei) ou decorrer de forma indirecta (como é o caso de uma remissão implícita para o poder regulamentar devido a uma situação de incompletude ou inexequibilidade do acto legislativo em causa).
Já Vieira de Andrade[5] acrescenta que esse dever existe ainda em casos de imposição por princípios jurídicos em situações concretamente determinadas, bem como em casos de auto-vinculação da própria Administração, quando esta se obriga a regulamentar determinada situação e não o faça[6].
A verificação do dever regulamentar diz respeito quer a regulamentos de execução (“aqueles que desenvolvem ou aprofundam a disciplina jurídica constante de uma lei”[7]) quer a regulamentos autónomos ou independentes (“aqueles regulamentos que os órgãos administrativos elaboram no exercício da sua competência, para assegurar a realização das suas atribuições específicas, sem cuidar de desenvolver ou completar nenhuma lei em especial”[8][9]).
Ademais, e considerando a concepção do professor Vasco Pereira da Silva[10] deverá considerar-se que mesmo os regulamentos autónomos ou independentes destinam-se a “dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação” desde que a sua emissão corresponda ao cumprimento de um dever legal.

3.  Requisitos

Muito embora já tenham sido referidos alguns pressupostos relativamente a este instituto cumpre analisar especificamente os requisitos que o artigo 77º do CPTA estabelece para que as acções de declaração de ilegalidade por omissão sejam procedentes.
Assim, e tendo em conta o entendimento de diversos acórdãos na nossa jurisprudência[11] existem três requisitos de verificação cumulativa que são indispensáveis à identificação das hipóteses de omissão ilegal de normas administrativas:
1.           Que exista um acto legislativo carente de regulamentação, ou seja, que a “omissão seja relativa à falta de emissão de normas cuja adopção possa considerar-se, sem margem de dúvida, como exigência da lei”;
2.           Que exista, e seja exigível, uma obrigação legalmente imposta à Administração, ou seja, não se pode estar perante uma mera faculdade ou poder discricionário da Administração e deve-se estar perante uma obrigação relativamente à qual já pode ser exigido judicialmente o seu cumprimento. Por outras palavras, é necessário que faltem elementos para o regulamento poder ser aplicado aos casos da vida visados no âmbito da norma (elementos esses cuja definição o legislador voluntariamente endossou para concretização através de regulamento.
3.           Que o conteúdo dessa obrigação seja a emissão de normas de natureza regulamentar.           
Tal como refere o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 30/01/2007 (op.cit) o terceiro requisito desdobra-se em dois aspectos, a necessidade do regulamento e a autorização para regulamentar, “sendo que entre eles existem certas relações, mas também alguma autonomia”.

4.  Legitimidade

No que diz respeito ao requisito da legitimidade cumpre analisar as três categorias de pessoas e entidades com legitimidade para pedir esta declaração mencionadas no artigo 77º/1 do CPTA.
Cumpre referir que a legitimidade para a acção de declaração de ilegalidade por omissão não apresenta muitas especificidades quanto à regra da legitimidade geral constante do artigo 9º do CPTA.
Assim tem legitimidade:
1.  Ministério Público: que está encarregado de zelar pela legalidade administrativa não só em situações activas mas também em situações de inércia. Detém uma responsabilidade ilimitada na reacção contra omissões ilegais de normas regulamentares;
2.  Sujeitos da Acção Popular: “demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no nº2 do artigo 9º” que estejam a agir ao abrigo da defesa de interesses e bens constitucionalmente protegidos;
3.  “Quem alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão”: pois só têm legitimidade as pessoas que alegarem uma utilidade directa e imediata na acção e na norma[12] e a referência ao conceito de “prejuízo” só reforça o facto de esta acção particular estar destinada à tutela de interesses subjectivos e legalmente protegidos[13]

5.  O direito à emissão da norma

            O conceito de “norma devida” abrange as situações em que a omissão do regulamento se mostre como imprescindível ou necessária à exequibilidade da lei, mas já não não aquelas em que a regulamentação se revela conveniente.
            De facto, a emissão de regulamentos não releva apenas no que diz respeito à prossecução de interesses públicos mas cumpre também uma função de realização quer de direitos quer de interesses individuais (sobretudo quando estejam em causa direitos fundamentais).
            A jurisprudência[14] entendeu que a existência de uma regulamentação insatisfatória ou deficiente não corresponde ao conceito de omissão ilegal mas, na realidade, a deficiência ou inadequação nas normas pode equivaler à sua ausência para efeitos de operatividade da lei e, portanto, consistir numa verdadeira omissão para efeitos do artigo 77º do CPTA.
            Podemos ter duas situações: aquelas em que haja a fixação de um prazo ou que aquelas em que, pelo contrário, não haja nenhum prazo estipulado.
            Na possibilidade de haver um prazo fixado, a interpretação do artigo 77º/1 e 77º/2 do CPTA leva-nos a concluir pela existência de um dever regulamentar pois há efectivamente a previsão de um prazo legislativo para a emanação das normas administrativas. E, quando assim acontece, a doutrina é unânime e afirma que há uma omissão ilegal por parte da Administração.
            Mas, coloca-se a questão de saber se em todas as hipóteses em que o legislador prevê um prazo para a emissão de normas regulamentares tal implica necessariamente a imposição de um dever de regulamentar cuja omissão gera uma ilegalidade.
            De facto, é possível equacionar certas hipóteses nas quais a não elaboração de um regulamento não implica necessariamente uma omissão ilegal[15].
            Na hipótese de não ter sido fixado um prazo poderá, ainda assim, impender sobre a Administração um dever de regulamentar pois tal como decorre do artigo 77º do CPTA o factor determinante é que a não emissão de regulamento se revele necessária para permitir a exequibilidade de actos legislativos.
            Além disso, ainda que o legislador não fixe um prazo para a emanação normativa da Administração haverá um lapso temporal razoável durante o qual o órgão competente deve aprovar as normas regulamentares necessárias à aplicação das leis[16].           

6.  O prazo do artigo 77º/2 do CPTA

            O artigo 77º/2 do CPTA estabelece que quando haja a verificação de uma situação de ilegalidade por omissão o juiz deve conceder à Administração um prazo que não pode ser inferior a seis meses para aprovar a norma respectiva.
            A estipulação deste prazo flexível é de aplaudir pois permite a análise das circunstâncias condicionantes da omissão regulamentar por parte do juíz.
            Ressalva-se que para aquelas situações em que um prazo mínimo de seis meses se afigure como desnecessário e excessivo seria melhor adoptar um conceito indeterminado como “prazo razoável” [17].
          Subsiste, no entanto, uma questão que o legislador não resolveu expressamente neste preceito: verificada que a lei não é exequível por si mesma, havendo omissão normativa ilegal e condenada a Administração para suprir essa omissão dentro de um prazo fixado pelo juiz, como resolver o problema se, findo esse prazo, a Administração não aprovar a norma omitida?
        A eventual inobservância deste prazo deverá ser qualificada como um acto de desobediência em relação à sentença entendendo a doutrina que o juiz, se o considerar justificado e atendendo às circunstâncias concretas, pode proceder desde logo à imposição de sanções pecuniárias compulsórias, ao abrigo da previsão genérica do artigo 3º/2, e sobretudo dos artigos 44º (que remete para o regime do artigo 168º), 49º, 164º/4 alínea d) e 169º do CPTA.
          A aplicação desta sanções pecuniárias poderá ocorrer no próprio momento em que se reconheça a ilegitimidade da situação de omissão e permite também fixar um novo prazo limite dentro do qual a omissão regulamentar deve ser suprida.

7.     Natureza jurídica e efeitos da sentença de declaração de ilegalidade por omissão

            Ainda que o preceito dê a entender que a pronúncia é meramente declarativa, Mário Aroso de Almeida (bem como a generalidade da doutrina) defende expressamente que a pronúncia judicial prevista no 77º/2 do CPTA estará mais próxima de uma condenação à emissão de uma norma administrativa do que propriamente de uma sentença meramente declarativa ou mesmo de simples apreciação.
            Isto decorre do facto de se reconhecer a existência de um efectivo dever da Administração (e não de uma mera faculdade), de se fixar um prazo para a adopção das normas regulamentares e de se estabelecerem sanções pecuniárias compulsórias face a uma eventual desobediência.
            Institui-se, deste modo, uma pronúncia declarativa de conteúdo impositivo, que está a meio caminho entre a simples declaração de omissão e a condenação da Administração à emissão da norma administrativa devida.
            O professor Vasco Pereira da Silva entende que dever-se-ia ter ido mais longe consagrando-se uma senteça condenatória que em nada afectaria o princípio da separação de poderes uma vez que seria necessário distinguir duas situações:
1.  Situação em que há um dever legal de emissão de um regulamento devendo o tribunal neste caso limitar-se a condenar à emissão deste instrumento. Nesta hipótese a Administração tem alguma discricionariedade face ao conteúdo do regulamento.
2.  Situação em que não existe apenas o dever legal de emitir o regulamento mas a Administração está obrigada a conformar o seu conteúdo atendendo ao que foi pré-determinado pelo legislador[18].
            Alguma doutrina[19] adopta uma posição mais radical afirmando que a sentença de provimento de uma acção de declaração de ilegalidade por omissão assume-se como condenatória na medida em que vincula a entidade competente a suprir a emissão dentro de determinado prazo e permitindo configurar este meio como uma forma de “antecipação injuntiva” do exercício da função administrativa.
            No regime actual aquilo que é possível fazer é apenas ampliar a eficácia cominatória da sentença de simples apreciação, uma vez que, a par da fixação do prazo para se suprir a ilegalidade, pode juntar-se uma sanção pecuniária compulsória logo no processo declarativo (tal como já foi referido).

8.     Breve Comparação com o regime constitucional

            A figura da declaração de ilegalidade por omissão, bem como o seu regime, foi claramente influenciada pelo artigo 283º CRP[20] relativo à inconstitucionalidade por omissão.
            De facto, prevê-se neste artigo que as omissões legislativas que ponham em causa o cumprimento de normas constitucionais poderão ser alvo de apreciação por parte do Tribunal Constitucional.
            A principal diferença entre o regime constitucional e o regime constante do artigo 77º do CPTA é o facto de este último consagrar um prazo mínimo de seis meses para a supressão da omissão, prazo este que é alvo de várias críticas tal como já foi aqui referido.
             
Bibliografia

ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2012, 1º edição.
            AMARAL, Freitas do, Curso de Direito Administrativo Volume II, Almedina, Coimbra, 2011 2º edição.
            ANDRADE, José Vieira, A justiça administrativa : lições, Coimbra: Almedina, 2009.
            MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, Aproximações a um conceito de norma devida para efeitos do artigo 77º do CPTA in Cadernos de Justiça Administrativa nº87 Maio/Junho, 2011.
            SILVA, Mário Ramos Pereira da, A impugnação de normas e a declaração de ilegalidade por omissão no novo contencioso administrativo, FDUL 2003.
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009 2ª edição.


Rute Fernandes, 19847



[1] Transcreva-se: 77º: “1. O Ministério Público, as demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no nº2 do artigo 9º e quem alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão podem pedir ao tribunal administrativo competente que aprecie e verifique a existência de situações de ilegalidade por omissão das normas cuja adopção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessárias para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação. 2. Quando o tribunal verifique a existência de uma situação de ilegalidade por omissão, nos termos do número anterior, disso dará conhecimento à entidade competente, fixando prazo, não inferior a seis meses, para que a omissão seja suprida.”
[2] Ao utilizar esta expressão faz-se referência à Lei nº 13/2002 de 19 de Fevereiro que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e à Lei nº15/2002 de 22 de Fevereiro que aprovou o Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA).
[3] AMARAL, Freitas do, Curso de Direito Administrativo Volume II, Almedina, Coimbra, 2011 2º edição
[4] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2012, 1º edição.
[5] ANDRADE, José Vieira, A justiça administrativa : lições, Coimbra: Almedina, 2009
[6] O professor apresenta como exemplo a omissão de um plano de ordenamento territorial.
[7] AMARAL, Freitas do, op.cit.
[8] AMARAL, Freitas do, op.cit.
[9] Contra, SILVA, Mário Ramos Pereira da, A impugnação de normas e a declaração de ilegalidade por omissão no novo contencioso administrativo, FDUL 2003 que entende que “o legislador se refere aos regulamentos de execução, não se encontrando nas suas preocupações os regulamentos independentes”.
[10] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009 2ª edição
[11] Nomeadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 30/01/2007 Processo 0310/06, de 06/05/2010 Processo 0977/07 e, mais recentemente, de 12/06/2012 Processo 0337/11.
[12] MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, Aproximações a um conceito de norma devida para efeitos do artigo 77º do CPTA in Cadernos de Justiça Administrativa nº87 Maio/Junho, 2011, esta autora defende expressamente que “a legitimidade prevista pelo artigo 77º estende-se a quem possa invocar um interesse individual na emissão da norma”, na sequência do que foi defendido pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 15/10/2008, Processo 819/08
[13] SILVA, Vasco Pereira da, op.cit. “a alegação do “prejuízo” diz respeito a uma posição jurídica subjectiva do particular, até porque o contencioso das normas jurídicas, para além da sua dimensão objectiva (…) não pode deixar de possuir também uma componente subjectiva, conforme resulta do artigo 268º, nº5, da Constituição”.
[14] Acórdão do TCA Sul de 9/12/2010 Processo 2161/06 e de 12/05/2011 Processo 2161/06.
[15] MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, op.cit. aponta como exemplo o caso do artigo 2º do Decreto-lei 111/2010 no qual a não elaboração de um regulamento municipal, dentro do prazo previsto, não implicará necessariamente uma omissão ilegal.
[16] MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, op.cit. levanta ainda a questão de saber se nos casos em que o legislador não fixou um prazo para a emissão dos regulamentos pode condicionar a entrada em vigor da lei à edição das normas regulamentares. Aplicando o regime do artigo 112º/5 da Constituição da República Portuguesa a autora afasta expressamente esta possibilidade pois geraria um problema de constitucionalidade na medida em que uma disposição legal não pode fazer depender a sua vigência de um acto não legislativo.
[17] ALMEIDA, Mário Aroso de, op.cit.
[18] SILVA, Vasco Pereira da, op.cit. “Nesse caso, em que tanto a emissão do regulamento como o respectivo conteúdo resultam de vinculação legal, não se vê por que é que não poderia existir uma sentença de condenação na emissão do regulamento com determinado conteúdo, à semelhança do que se passa com similares actos administrativos”.
[19] MONIZ, Ana Raquel Gonçalves, op.cit.
[20] Transcreva-se: «1. A requerimento do Presidente da República, do Provedor de Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas, dos presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas, o Tribunal Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais. 2. Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente.»

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