Recurso
Hierárquico (Des)necessário Lato Sensu
No contexto da análise
da impugnabilidade de actos administrativos, o Professor Vasco Pereira da Silva
levanta o problema do recurso hierárquico necessário (artigos 166º e seguintes
do Código do Procedimento Administrativo, doravante CPA). Antes de nos
debruçarmos sobre o problema, cumpre fazer uma introdução geral, designadamente
acerca da amplitude de actos administrativos impugnáveis, consagrada após a
Reforma e ainda sobre o princípio da tutela judicial efectiva. Todavia,
comecemos antes por uma breve apresentação da figura em causa:
O Recurso Hierárquico é
o meio de impugnação de um acto administrativo praticado por um órgão
subalterno, perante o respectivo superior hierárquico, a fim de obter a
revogação ou a substituição do acto recorrido.
O recurso hierárquico
tem sempre uma estrutura tripartida:
·
O recorrente: que é o particular que
interpõe o recurso;
·
O recorrido: que é o órgão subalterno de
cuja decisão se recorre, também chamado órgão a quo;
·
E a autoridade de recurso: que é o órgão
superior para quem se recorre, também chamado órgão ad quem.
São pressupostos para
que possa haver um recurso hierárquico: que haja hierarquia; que tenha sido
praticado um acto administrativo por um subalterno; e que esse subalterno não
goze por lei de competência exclusiva. Fora destes pressupostos não há recurso
hierárquico.
Espécies de Recursos
Hierárquicos
Em primeiro lugar, e
atendendo aos fundamentos com que se pode apelar para o superior hierárquico do
órgão que praticou o acto recorrido, o recurso hierárquico pode ser de
legalidade, de mérito, ou misto.
Os recursos
hierárquicos de legalidade, são aqueles em que o particular pode alegar como
fundamento do recurso a ilegalidade do acto administrativo impugnado.
Os recursos de mérito,
são aqueles em que o particular pode alegar, como fundamento, a inconveniência
do acto impugnado.
Os recursos mistos, são
aqueles em que o particular pode alegar, simultaneamente, a ilegalidade e a
inconveniência do acto impugnado.
Deve dizer-se a este
respeito que a regra geral no nosso Direito Administrativo é a de que os
recursos hierárquicos têm normalmente carácter misto, ou seja, são recursos em
que a lei permite que os particulares invoquem quer motivos de legalidade, quer
motivos de mérito, quer uns e outros simultaneamente.
Há todavia, excepções a
esta regra: são, nomeadamente, os casos em que a lei estabelece que só é
possível alegar no recurso hierárquico fundamentos de mérito, e não também
fundamentos de legalidade.
Uma outra classificação
dos recursos hierárquicos é aquela que os separa em recursos necessários e
recursos hierárquicos facultativos (artigo 167º nº1 do CPA)
Há actos
administrativos que são verticalmente definitivos, porque praticados por
autoridades de cujos actos se pode recorrer directamente para o Tribunal
Administrativo, e há actos que não são verticalmente definitivos, porque
praticados por autoridades de cujos actos não se pode recorrer directamente
para os Tribunais.
O “recurso hierárquico
necessário” é aquele que é indispensável utilizar para se atingir um acto
verticalmente definitivo do qual se possa recorrer contenciosamente.
Diferentemente, o
“recurso hierárquico facultativo” é o que respeita a um acto verticalmente
definitivo, do qual já cabe recurso contencioso, hipótese esta em que o recurso
hierárquico é apenas uma tentativa de resolver o caso fora dos Tribunais, mas
sem constituir um passo intermédio indispensável para atingir a via
contenciosa.
A regra do nosso
Direito é que os actos dos subalternos não são verticalmente definitivos: por
conseguinte, em princípio, dos actos praticados pelos subalternos é
indispensável interpor recurso hierárquico necessário. E aí, de duas uma: ou o
superior dá razão ao subalterno confirmando o acto recorrido, e desta decisão
confirmativa cabe recurso contencioso para o Tribunal Administrativo
competente; ou o superior hierárquico dá razão ao particular, recorrente, e nesse
caso, revoga ou substitui o acto recorrido, e o caso fica resolvido a favor do
particular.
Regime Jurídico do
Recurso Hierárquico
Interposição do
recurso: O recurso hierárquico é sempre dirigido à autoridade ad quem, pois é a ela que se formula o
pedido de reapreciação do acto recorrido.
Mas nem sempre o
recurso tem de ser interposto, ou apresentado, junto do órgão a quo, pois de
acordo o artigo 169º nº2 in fine, apesar de ter que ser dirigido ao mais
elevado superior hierárquico do autor do acto, pode ocorrer uma situação de
delegação de poderes.
Prazo de recurso: Se se
tratar de recurso hierárquico necessário, vigora o disposto no Artigo 168º nº1
do CPA. A lei fixa aqui um prazo de trinta dias para a interposição de recurso
hierárquico necessário. Se for um recurso hierárquico facultativo, o prazo para
a interposição será o mesmo do recurso contencioso previsto para o acto em
apreço (artigo 168º nº2 do CPA).
Efeitos de recurso: A
interposição do recurso hierárquico produz um certo número de efeitos
jurídicos, dos quais os mais importantes são o efeito suspensivo da eficácia do
acto recorrido (artigo 170º nº1 do CPA) assim como a suspensão do prazo para a
interposição de recurso contencioso (artigo 59º nº4 do CPTA).
O “efeito suspensivo”
consiste na suspensão automática da eficácia do acto recorrido: havendo efeito
suspensivo, o acto impugnado, mesmo que fosse plenamente eficaz, e até
executório, perde a sua eficácia, incluindo a executoriedade, e fica suspenso
até à decisão final do recurso; só se esta for desfavorável ao recorrente,
confirmando o acto recorrido, é que este acto readquire a sua eficácia plena.
A regra no nosso
Direito é que os recursos hierárquicos necessários têm efeito suspensivo ao
passo que os facultativos não o têm, como podemos concluir pela análise dos nº
1 e 3 do artigo 170º do CPA.
Tipos de decisão: o recurso
hierárquico dá lugar a cinco tipos de decisão possível (artigos 173º e 174º do CPA):
·
Rejeição do recurso: dá-se quando o
recurso não pode ser recebido por questões de forma (artigo 173º)
·
Quando haja competência exclusiva do
autor do acto recorrido: o órgão que aprecia o recurso apenas confirma ou
revoga o acto recorrido;
·
Quando não haja competência exclusiva do
autor do acto recorrido: neste caso, o órgão que aprecia o recurso não só
poderá revogar ou confirmar o acto recorrido como ainda poderá modifica-lo ou
substituí-lo.
Natureza Jurídica do
Recurso Hierárquico
A estrutura do recurso
hierárquico: é um recurso de tipo de reexame, ou antes um recurso de tipo de
revisão? Deve sublinhar-se, desde já, que esta tipologia não é privativa dos
recursos hierárquicos, nem sequer é exclusiva do Direito Administrativo.
Diz-se que um recurso é
do tipo “reexame” quando se trata de um recurso amplo, em que o órgão “ad quem”
se substitui ao órgão “a quo”, e, exercendo a competência deste ou uma
competência idêntica, vai reapreciar a questão subjacente ao acto recorrido,
podendo tomar sobre ela uma nova decisão de fundo.
Diferentemente, o
“recurso de revisão” é um recurso mais restrito em que o órgão “ad quem” não se
pode substituir ao órgão “a quo”, nem pode exercer a competência deste,
limitando-se a apreciar se a decisão recorrida foi ou não legal ou conveniente,
sem poder tomar uma nova decisão de fundo sobre a questão.
A tendência geral do
nosso Direito Administrativo é no sentido de que o recurso hierárquico
necessário é um recurso de tipo reexame, ao passo que o recurso facultativo é
um recurso do tipo revisão, fundamentalmente porque no recurso hierárquico
necessário a competência do superior hierárquico é mais ampla do que no recurso
hierárquico facultativo.
O recurso hierárquico é
predominantemente objectivo ou predominantemente subjectivo? O que significa
indagar se o recurso hierárquico é um instrumento jurídico que visa
predominantemente defender os interesses gerais da Administração Pública ou se,
pelo contrário, visa predominantemente defender os direitos subjectivos e os
interesses legítimos dos particulares.
O recurso hierárquico é
sempre simultaneamente uma garantia objectiva mas, sendo certo que ele
representa um instrumento de serviço dos interesses gerais da Administração e
dos direitos e interesses dos particulares, o que se pergunta é qual o
interesse que, em última análise, prevalece?
A meu ver, será sempre
mais um meio de defesa que, sendo certo que tem subjacente o interesse
objectivo, consubstanciará numa garantia subjectiva ao serviço dos particulares
na defesa dos seus direitos.
No entanto, já foi
defendido que no Direito Administrativo, e em particular no recurso
hierárquico, entende-se que existe a figura da “reformatio in pejus”: quem
interpuser recurso hierárquico sabe que se arrisca a que a decisão de que vai
recorrer possa ser alterada para pior. A função essencial do recurso
hierárquico é mais a da garantia da legalidade e dos interesses gerais da
Administração do que a garantia dos direitos e interesses legítimos dos
particulares, pois se o recurso hierárquico fosse apenas uma garantia do
particular é óbvio que não poderia haver a chamada “reformatio in pejus”.
Acto
Administrativo? É pau para toda a obra.
O Professor estabelece
a existência de três momentos principais no que ao conceito de acto administrativo
diz respeito. Neste sentido, faz corresponder três tipos de Estados a três
tipos de Administração e, por sua vez, a três tipos característicos de actos
administrativos de cada período. Primeiramente, o Estado Liberal que se
caracterizaria por uma Administração “Agressiva”, onde a sua actuação se
pautava por actos de autoridade ou “de polícia”. No entanto sublinhe-se que,
apesar de alguns defensores (Otto Mayer, Maurice Hauriou e até mesmo, a
determinada altura, Marcello Caetano), esta concepção foi criticada,
inicialmente, pela Revisão Constitucional de 1989 e, posteriormente, completamente
afastada pela reforma. Seguidamente, no Estado Social, constata-se uma
Administração “Prestadora” que generaliza a favorabilidade dos actos
administrativos aos particulares. Por consequência desta forma de actuação, não
só o acto administrativo deixou de ser a maneira principal de agir da
Administração, passando a ser uma de muitas, como ainda perdeu a sua “veste”
autoritária que tanto o distinguia. Por último, teríamos o Estado Pós-Social,
onde a introdução da ideia de uma Administração Infra-estrutural, preconizada
por Faber, elevou a multilateralidade a característica (quase) incontornável de
acto administrativo. Esta concepção baseia-se, fundamentalmente, no facto de qualquer
acto administrativo ter, directa ou indirectamente, efeitos sobre terceiros na
medida em que não só poderão ter por objecto relações jurídicas multilaterais
como também outro tipo de situações em que, apesar de por uma visão minimalista
poder parecer apenas um problema bilateral, estamos perante “actos singulares,
praticados pela Administração relativamente a indivíduos determinados, mas que
são também, simultaneamente, instrumentos reguladores” de situações mais
abrangentes, por via dos efeitos produzidos em relação a terceiros afectados. Esta
recondução lógica constrói a ponte entre as entidades públicas e privadas que
exercem a actividade administrativa na medida em que se tornam equiparáveis a
actos administrativos mesmo aqueles que não sejam emanados de entidades da
Administração. Dá-se portanto um duplo alargamento do conceito de acto
administrativo, no sentido em que passam a “caber” no âmbito de jurisdição
administrativa tanto as actuações de outros órgãos do Estado (artigo 4º, nº1,
alínea c, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, doravante ETAF e
artigo 51º nº2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante
CPTA) como ainda os actos provenientes de sujeitos privados que estejam em
colaboração com a Administração, tal como prevêem os artigos 4º, nº2, alínea d,
do ETAF e 51º nº2 do CPTA. Em face do exposto, o Professor acrescenta que todo
o desenvolvimento histórico apresentado vai ao encontro do conceito amplo de
acto administrativo “abraçado” pelo legislador no artigo 120º do CPA. O
legislador foi coerente com o desenvolvimento histórico da Administração,
designadamente com a dimensão multifacetada que agora apresenta, pois tanto “as
decisões de carácter regulador como as actuações de conteúdo mais marcadamente
material, os actos de procedimento como as decisões finais, as actuações
internas bem como as externas, são consideradas pela lei como actos
administrativos.”
Esta amplitude
apresentada pelo acto administrativo não poderia deixar de se reflectir no
âmbito do contencioso administrativo. Desta feita, como se de um espelho se
tratasse, a impugnabilidade de actos administrativos sofreu, igualmente, de um
processo de alargamento levando, assim, a que não só as decisões finais possam
ser apreciadas em juízo como também outras actuações administrativas que sejam
susceptíveis de lesar direitos dos particulares. Esta solução de paralelismo
entre existência e impugnabilidade dos actos administrativos, que segundo o
Professor Vasco Pereira da Silva, não abre possibilidade a interpretações
discordantes entre o plano substantivo e o processual, nem sempre foi assim tão
consensual na medida em que, desde logo, uma fracção da “escola clássica de
Lisboa”, nomeadamente o Professor Marcello Caetano defendia um conceito
restritivo de acto administrativo impugnável, assim como a “escola de Coimbra”,
designadamente o Professor Cérvulo Correia, preconizava uma interpretação
restritiva de acto administrativo, tanto a nível substantivo como a nível
processual. O Professor Vasco Pereira da Silva defende que a definição
estabelecida no artigo 51º nº1 do CPTA é clara e que não deixa margem para que
se infira a impugnabilidade em face da natureza do acto em si mas sim que
explana a ideia de que o critério a utilizar será sempre a situação dos actos
em causa, ou seja, que sejam passíveis de lesar ou afectar posições subjectivas
de particulares. Esta ampla noção processual de acto administrativo é
indubitável na medida em que será claro para qualquer intérprete que se trata
de um reflexo da disposição constitucional estabelecida no artigo 268º nº4 da
Constituição da República Portuguesa (doravante CRP). Concluímos então que a
reforma acompanhou a Constituição e concretizou um modelo de “Justiça
Administrativa plenamente jurisdicionalizada e destinada a garantir de forma
integral e efectiva os direitos dos particulares nas relações jurídicas
administrativas” (bilaterais e multilaterais) conforme está patente nos artigos
202º e seguintes e ainda nos números 4 e 5 do artigo 268º da CRP.
A partir do supra
exposto, em conjugação da análise dos artigos 212º nº3 da CRP e 1º do ETAF,
conseguimos concluir que o alargamento apresentado trouxe, igualmente, uma
“abertura” no controlo exercido pelo “Processo”, levando mesmo, e numa lógica
do que tem sido dito, a uma consagração que reflecte a preocupação pela tutela
jurisdicional efectiva, como se infere do artigo 2º do CPTA.
Analisemos agora os
critérios para aferir a impugnabilidade dos actos administrativos que, à luz do
artigo 51º nº1 do CPTA, serão a eficácia externa e a susceptibilidade de lesão
dos direitos dos particulares. Antes de mais, note-se que o artigo em questão
faz jus ao artigo 268 nº4 da CRP que, ao estabelecer um direito fundamental de
impugnação de actos administrativos susceptíveis de lesar os direitos dos
particulares, leva a concluir pela adopção de um modelo marcadamente
subjectivista da Justiça Administrativa que eleva como prioridade principal a
protecção dos direitos dos particulares. Tal facto não obsta a que,
simultaneamente, o Contencioso Administrativo venha ter um papel complementar,
mas igualmente fundamental, de defesa da legalidade e do interesse público.
Seguidamente, cumpre-nos deixar claro que a susceptibilidade de lesão de
direitos deve ser entendida como “pressuposto processual relativo ao acto
administrativo e não à legitimidade das partes, pois uma coisa é afirmar que um
acto administrativo está em condições de produzir uma lesão em posições
subjectivas das partes, outra coisa diferente é a alegação pelo particular da
titularidade de um direito, que foi lesado por um acto administrativo ilegal”.
Em jeito de conclusão, impõe em suma assumir que o critério de impugnabilidade
é bastante simples de decifrar na medida em que este se afere por via da função
e natureza da acção de impugnação e causa, isto é: se for uma acção para defesa
de um direito do particular em relação à Administração, a correspondente acção
de impugnação terá que ser, impreterivelmente, de teor subjectivista na medida
em que apesar de poder subliminarmente defender a legalidade, o seu verdadeiro
objectivo será o da defesa do direito do particular violado; se for, por outro
lado, uma acção de defesa da legalidade e do interesse público, aqui já
estaremos em sede de predominância objectiva como são exemplo os casos da acção
popular e da acção pública.
Apesar da concordância
do Professor Vasco Pereira da Silva com o conteúdo do artigo 51º nº1 do CPTA, o
Professor critica a má formulação adoptada pelo preceito, na medida em que a
forma em que está escrita poderá induzir em erro o comum intérprete da lei. A
disposição em causa dá a entender que existe um critério amplo (“são
impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa”) que terá dentro
dele um outro critério mais específico (“especialmente aqueles cujo conteúdo
seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos”). No
entanto é necessário clarificar que estamos perante critérios completamente
“autónomos, com distinta natureza e função” e que seria indefensável uma
submissão do critério da susceptibilidade de lesão de direitos pois tal iria
não só contra o estabelecido constitucionalmente no artigo 268º nº4, o que
seria desde logo gravíssimo, como ainda no regime consagrado do CPTA está
prevista a possibilidade de impugnação de actos desprovidos de eficácia externa
(artigo 54º). Paralelamente, o Professor faz uma interpretação subjectivista do
nº3 do artigo 51 do CPTA, defendendo que a possibilidade de impugnação de actos
de procedimento não obsta à impugnação da decisão final do mesmo pois qualquer
solução que seja consagrada nunca poderá vedar ou diminuir o acesso dos
particulares à tutela jurisdicional efectiva, suportando-se novamente no facto
de o artigo 268º nº4 da CRP que procede ao alargamento dos actos
administrativos recorríveis. Para o Professor, a nova formulação do direito
fundamental de acesso aos tribunais terá que ser sempre um plus e não um minus
relativamente à garantia de recurso contra os actos definitivos e executórios,
pelo que todas as alterações não pretendem substituir mas sim acrescer às
anteriores previstas.
O
(Suposto) Bar Aberto da Justiça Administrativa
Passemos agora a uma
breve referência ao princípio da tutela judicial efectiva na visão do Professor
José Carlos Vieira de Andrade. O Professor Vieira de Andrade apresenta o
princípio da tutela judicial efectiva como consequência de um outro
direito-garantia (o direito à protecção judicial) que tem um núcleo essencial
constituído por três elementos garantísticos da sua existência: o direito de
acesso ao direito e aos tribunais; o direito a obter uma decisão judicial em
prazo razoável e mediante processo equitativo; e, por último, o direito à
efectividade das sentenças proferidas. O raciocínio está baseado no artigo 20º
da CRP que tem precisamente como título: “Acesso ao direito e tutela
jurisdicional efectiva”. Desde logo, o seu nº1 deixa bastante explícito o
primeiro elemento supramencionado, depois, quanto ao segundo elemento, o nº 4 é
igualmente claro e, por último, relativamente à efectividade das sentenças, o
artigo 205º nº 2 e 3 também se mostra bastante transparente. Problema que o
Professor levanta e desde logo soluciona relativamente a este último elemento
está relacionado com a possibilidade de reapreciação das decisões judiciais,
isto é, se existe ou não um direito a um duplo grau de jurisdição. Problema que
rapidamente o Professor responde dizendo que na Constituição, exceptuando o
artigo 32º relativo ao âmbito penal, não está garantido tal direito. No
entanto, o Professor defende que, sendo que excepcionalmente pode-se permitir
abranger a tutela quando estejam em causa direitos, liberdades e garantias, é
dado ao “legislador algum espaço para conformação do sistema de recursos” pelo
que, mesmo no campo civil e administrativo e em cumprimento do princípio da
tutela judicial efectiva, devia o legislador prever o recurso (em tempo
razoável).
Quanto à consagração do
princípio a nível administrativo, este está especificamente previsto no artigo
268º nº4 da CRP como ainda reafirmado no artigo 2º nº2 do CPTA. Todavia, nesta
sede, importa, sublinhar a sua “tripla dimensão” em face de estar patente em
três vertentes do contencioso administrativo: “quanto à disponibilidade de
acções ou meios principais adequados”; no plano cautelar quanto às providências
indispensáveis para a garantia da utilidade das sentenças; e, por último, no
plano executivo quanto à efectividade das sentenças. Por último, o Professor
afirma a necessidade de se acrescentar uma grande diferença entre esta
consagração do princípio da tutela judicial efectiva com a consagração prevista
constitucionalmente, ou seja, o facto de, em sede administrativa, o princípio
em questão se estender à protecção do interesse público e dos valores
comunitários.
Recurso
Hierárquico (Des)necessário Strictu Sensu
Retomando a matéria
relativa à impugnabilidade de actos administrativos, assinala-se neste trabalho
a questão da “possibilidade de controlo judicial imediato dos actos dos
subalternos” e o problema da possível inconstitucionalidade da manutenção da
figura do recurso hierárquico necessário. O Professor Vasco Pereira saúda o
legislador da reforma por achar que o artigo 51 nº1 do CPTA veio afastar
liminarmente toda a possibilidade de discussão quanto à necessidade ou não de
recurso hierárquico necessário para impugnação de actos administrativos, na
medida em que, segundo a interpretação do Professor, o legislador acolheu a
segunda hipótese. Esta adopção do legislador, cumulada com a interpretação que
o Professor faz dela, vai ao encontro do seu entendimento quanto à relação
entre as disposições relativas ao recurso hierárquico necessário e o artigo 268
nº4 da CRP que estabelece o direito fundamental de impugnação contenciosa de
actos administrativos, no sentido em que esta tornaria aquelas
inconstitucionais por vedarem ou limitarem o princípio previsto no preceito
constitucional. O Professor, tanto antes como depois da reforma, sempre
defendeu a inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário. Neste
sentido, enuncia um vasto leque de argumentos para fundamentar a sua posição,
que farei o favor de passar a explicitar:
· “Violação do princípio constitucional da
plenitude da tutela dos direitos dos particulares” (artigo 268º nº4 da CRP);
· “Violação do princípio constitucional da
separação entre a Administração e a Justiça”;
· “Violação do princípio constitucional da
desconcentração administrativa” (artigo 267º nº2 da CRP);
· “Violação do princípio da efectividade
da tutela” (artigo 268º nº4 da CRP).
Quanto ao primeiro e
quarto argumentos, o Professor faz equivaler o recurso hierárquico necessário a
um bloqueio ao acesso à Justiça na medida em que por um lado, nega a
possibilidade enquanto não for feito uso da garantia administrativa, como por
outro, no caso de se fazer valer dela, os prazos serem relativamente curtos
para recorrer a juízo. Quanto ao segundo, o Professor dá a entender que se
tornaria numa “escada” jurídica em que Administração impõe que se faça uso das
suas garantias (pise o seu degrau) para poder, eventualmente, atingir o patamar
da Justiça. Quanto ao terceiro argumento, está se perante a preclusão da
“imediata recorribilidade dos actos dos subalternos sempre que lesivos” o que
consubstanciará, ao abrigo do artigo referido, num inconstitucionalidade.
No entanto, é
importante que se diga que esta posição não era unânime na doutrina, veja-se,
desde logo, o Acordão nº499/96 do Tribunal Constitucional que defendeu a
constitucionalidade do recurso hierárquico necessário, sendo até este Acordão
utilizado como “arma” de contra-argumentação pelo Professor Vieira de Andrade.
Continuando com a
argumentação do Professor Vasco Pereira da Silva, cumpre referir que o
Professor sublinha que a distinção entre recurso hierárquico necessário e
facultativo tinha como único factor de destrinça o facto de o acto
administrativo ser “ou não insusceptível de recurso contencioso” (artigo 167º n
º1 do CPA). Levando a concluir que a única razão da “necessidade” de recurso
hierárquico necessário estava relacionado com a impugnabilidade contenciosa do
acto. Seguidamente o Professor faz uma enumeração de disposições do CPTA que,
segundo o Professor, afastarão inequivocamente a exigência prévia de um recurso
hierárquico necessário para que possa haver impugnação contenciosa:
· Em primeiro lugar, refere o conceito de
acto administrativo impugnável de acordo com o previsto no artigo 51º nº1, na
medida em que a letra da lei é explícita quanto aos pressupostos e que um acto
do subalterno terá os pressupostos preenchidos para o efeito;
· Em segundo lugar, enuncia o artigo
59º nº4 que dispõe no sentido da suspensão do prazo de impugnação contenciosa
do acto administrativo se tiver sido interposta alguma garantia administrativa.
Correspondendo a uma certeza que é dada ao particular, dando-lhe a
possibilidade de dois momentos de defesa (uma administrativa e outra
contenciosa). Neste contexto, acrescente-se uma afirmação por parte do
Professor Paulo Otero referindo que, em virtude da regra da suspensão dos
prazos, se “acaba por transformar a impugnação administrativa facultativa em
impugnação recomendável”6. Acrescenta o Professor Vasco Pereira da
Silva que o legislador devia ter ido mais longe, não só suspendendo o prazo de
impugnação contenciosa do acto administrativo como ainda devia ter estabelecido
a suspensão da própria decisão administrativa;
· Em terceiro lugar, nomeia o artigo
59º nº5 do CPTA, no sentido em que à luz do disposto, o particular tem não só o
benefício da suspensão do prazo da impugnação como a possibilidade de imediata
impugnação contenciosa do acto administrativo. Ou seja, será possível ao
particular aceder à Justiça tendo ou não tendo interposto recurso
administrativo;
O Professor conclui,
dizendo que é então pacífico dizer que o actual CPTA não tem patente qualquer
exigência de impugnação administrativa como conditio sine qua non de impugnação
contenciosa, tal como o Professor Mário Aroso de Almeida teve, igualmente,
oportunidade de afirmar “o CPTA não exige (..,), em termos gerais, que os actos
administrativos tenham sido objecto de impugnação administrativa para que
possam ser objecto de impugnação contenciosa”.
Contudo, é de referir o
surgimento de uma interpretação restritiva deste regime jurídico, na medida em
que apenas o recurso hierárquico necessário, à luz do CPA, estaria a ser alvo
de revogação por esta regra geral e que por conseguinte, todas as restantes
garantias administrativas previstas em legislação especial não seriam
afastadas. Segundo esta interpretação, defendida pelo Professor Mário Aroso de
Almeida, independentemente daa revogação da regra geral, o Código “não tem (…)
o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem
impugnações administrativas necessárias, disposições que só poderiam
desaparecer mediante disposição expressa que determinasse que todas elas se
consideram extintas”. Pelo que, “na ausência de determinação legal expressa em
sentido contrário, deve entender-se que os actos administrativos com eficácia
externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos, sem
necessidade da prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa.
As decisões administrativas continuam, no entanto, a estar sujeitas a
impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente
previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do
legislador, quando este a considere justificada”. Por sua vez, o Professor
Vasco Pereira da Silva vem, liminarmente, recusar a validade desta
interpretação:
·
Primeiramente, diz ser impossível alegar
a compatibilidade entre a tal “regra geral” de admissibilidade de acesso à
justiça, independentemente de recurso hierárquico necessário, com as referidas
“regras especiais” que manteriam a exigência de passagem pela garantia
administrativa. Afirma ser uma “contradição insanável” que levaria à criação de
uma nova categoria conceptual: “recurso hierárquico necessário desnecessário”;
·
Em segundo lugar, o argumento formal de
manutenção de regras especiais em face da entrada em vigor de uma regra geral
não pode colher, na medida em que se assim fosse as regras especiais só assim
se tinham tornado após a reforma pois até lá teriam a mera função de reiteração
da regra geral. O que leva o Professor a inferir que o argumento utilizado
apenas podia ter um mínimo de viabilidade relativamente a possíveis normas
futuras que previssem novas impugnações administrativas, essas sim especiais;
·
Em terceiro lugar, o argumento formal
alegado parece ao Professor não poder, desde logo, proceder na medida em que, tendo
em conta a relação que se estabelece entre CPTA e CPA (inclusive normas
avulsas), não levará a uma situação de revogação mas sim de caducidade destas
últimas. Caducidade essa, “decorrente da inconstitucionalidade da exigência do
recurso hierárquico necessário”(por violação do conteúdo essencial do direito à
tutela plena e efectiva, assim como dos princípios da divisão de poderes e da
descentralização)”. O Professor faz valer esta posição tanto para garantias
administrativas especiais anteriores como posteriores à reforma;
·
Em quarto lugar, o Professor afirma ser
inconcebível a defesa de excepções ao direito fundamental de acesso à Justiça
Administrativa previsto na Constituição. Acrescenta ainda que tal interpretação
minimalista levaria à criação de um contencioso privativo de certos actos
administrativos em derrogação do regime geral, fundado na Constituição. O que
faria lembrar, segundo o Professor, o regime das “relações especiais de poder”
que como diz Maurer “são um instituto que pertence ao passado, pois é
constitucionalmente inadmissível a ideia de um domínio estadual livre do
direito, à margem do princípio da legalidade e dos direitos fundamentais”;
·
Por último, mas não menos importante, o
clássico argumento sistemático fundamentado na existência de disposições
específicas referentes ao princípio de “promoção do acesso à justiça” e ainda à
necessidade de evitar “diligências inúteis”, previstos respectivamente no
artigo 7º e 8º nº2 do CPTA.
Em jeito de conclusão,
para o Professor, para além de reafirmar a procedência da sua posição quanto à
existência de um direito fundamental de acesso à Justiça Administrativa e a
inexistência de exigência de prévia utilização de impugnação administrativa
para um particular se valer de uma impugnação contenciosa, acrescenta que a
melhor forma de compatibilizar os regimes previstos no CPA e CPTA será pela via
da revogação expressa de todas as disposições que prevêem o recurso hierárquico
necessário (“só por uma questão de certeza e segurança jurídica, uma vez que,
como se viu, deve-se considerar que elas já caducaram”). Paralelamente defende
a necessidade de se proceder à “generalização da regra de atribuição de efeito
suspensivo a todas as garantias administrativas (…) eventualmente acompanhada
da fixação de um prazo (curto) para o exercício da faculdade de impugnação
administrativa pelos particulares (…), prazo esse que não teria qualquer
relevância para a questão de impugnabilidade do acto administrativo, mas que
interessaria, tão só, para a aplicação do regime de suspensão automática da
eficácia, até à decisão da garantia administrativa.”
A solução avançada
traria a satisfação dos diversos interesses em jogo:
·
O do particular, que passava a ter um
estímulo acrescido para utilizar as garantias administrativas;
·
O da administração que passaria a gozar,
em termos mais alargados, de uma “2ª oportunidade”, para melhor cumprir a legalidade
e realizar o interesse público, podendo também, sendo caso disso, satisfazer
desde logo as pretensões do particular e pôr termo ao litígio;
·
O do bom funcionamento da justiça
administrativa, pois o eficaz funcionamento das garantias administrativas podia
servir de “filtro” a litígios, de forma a poderem ser preventivamente
resolvidos. Seria ainda necessário criar órgãos administrativos especiais, de
modo a salvaguardar a autonomia e a imparcialidade das entidades decisoras,
assim como criar simultaneamente novos e específicos meios administrativos.
Enquanto não tiver
lugar a intervenção do legislador, deve-se entender que caducam todas as normas
que prevejam a necessidade de recurso hierárquico, ou de qualquer outra
garantia administrativa de “1ª instância”, pelo que todas as garantias
administrativas são de considerar como facultativas, no sentido de que não
impedem o particular de utilizar imediata, ou simultaneamente, a via
contenciosa, além de possuírem um efeito suspensivo dos prazos de impugnação
contenciosa. Deve-se considerar que o particular lesado por um acto
administrativo de um subalterno, que preenchesse a previsão do anterior recurso
hierárquico necessário, pode optar por:
·
Intentar a acção administrativa
especial, acompanhada ou não do respectivo pedido cautelar de suspensão da
eficácia do acto administrativo, optando exclusivamente pela via judicial para
a resolução do litígio;
·
Proceder à prévia impugnação hierárquica
que, para além do efeito geral de suspensão do prazo de recurso contencioso,
deve continuar a gozar de efeito suspensivo de execução do acto administrativo
e, só depois, em função do resultado da garantia administrativa, utilizar ou
não a via contenciosa;
·
Impugnar hierarquicamente a decisão
administrativa, que goza do referido efeito de suspensão da eficácia, mas tendo
ainda a possibilidade de aceder imediatamente a tribunal, sem ter necessidade
de esperar pela decisão do recurso hierárquico.
Cumpre agora completar
a opinião do Professor Mário Aroso de Almeida. Desta feita, o Professor faz-se
valer do artigo 3º do Código Civil (doravante CC) para sustentar que as
referidas leis avulsas referentes a garantias administrativas necessárias não
devem ser afastadas pelos nº 4 e 5 do Artigo 59º CPTA. Com base no elevado
número de leis avulsas que vêm prever a necessidade de recurso hierárquico para
se proceder a impugnação contenciosa, não faz qualquer sentido, para este
Professor, que estas, não tendo sido alvo de revogação expressa, não se possam
manter agora como regras especiais relativamente à nova regra geral. Na opinião
do Professor, o artigo 167º prevê a existência desta figura de forma clara,
pelo que apesar do artigo 59º, será de concluir que será sempre possível e
exigível o recurso hierárquico necessário quando se possa concluir que era esta
a decisão “consciente e deliberada” do legislador. Pronunciando sobre a
constitucionalidade da analisada figura, o Professor admite que, apesar da
reforma, nada obsta a que se possa, por lei, estabelecer meios de impugnação
administrativa necessária. No entanto, claro está que, segundo o Professor,
esta possibilidade estará sempre limitada pela necessidade de um
condicionamento mínimo de acesso à Justiça Administrativa, isto é, a solução
deve ser aferida caso a caso e a permissão para exigir a necessidade de
interposição de prévia impugnação administrativa tem que ser sempre tomada com
o devido cuidado sob pena de violação do direito fundamental previsto no 268
nº4 da CRP. Paralelamente, quanto a possível violação do princípio da desconcentração
da administração ao abrigo do artigo 267º nº2 da CRP, o Professor defende que
qualquer decisão de introduzir recursos hierárquicos necessários por parte do
legislador será sempre tomada com as devidas precauções e limites, não obstante
essa possibilidade não lhe estar vedada tal como prevê o próprio artigo 267º
nº2 (“sem prejuízo da eficácia e unidade da Administração e dos poderes de
direcção, tutela e superintendência dos órgãos competentes”). Logo, a
possibilidade nunca poderá ser alegada como inviável na medida em que está
prevista na CRP e apenas é congruente com a mesma.
Poderemos ainda avançar
com a posição do Professor Vieira de Andrade, que supra mencionámos aquando da
referência ao Acordão 499/96 do Tribunal Constitucional. O Professor vem, na
sua anotação ao Acordão, afirmar que não existe qualquer bloqueio ao acesso à
impugnação contenciosa. A disposição constitucional (268º nº4) é clara pelo que
seria impossível alegar que uma norma do CPA pudesse padecer de
inconstitucionalidade pelo que defende a exigência de recurso hierárquico como
qualquer outro pressuposto processual que se possa impor. Por sua vez não
poderia consubstanciar numa obstrução do acesso à Justiça, na medida em que o
acto do subalterno ficará sempre incorporado no acto do superior logo o
primeiro também será, em certa medida, impugnado. Em contradição do que se
alega ser uma violação do princípio da desconcentração administrativa, diz o
Professor que o recurso hierárquico necessário não porá nunca em risco tal
princípio em face da necessidade de preenchimento de certos requisitos para se
proceder a um recurso hierárquico, “pois só existe onde a lei não tenha optado
por competências exclusivas dos subalternos ou não abra a possibilidade de
delegação”. Defende ainda este autor que a facilidade para interposição de
recurso contencioso é de tal ordem que nunca estará em risco a sua inutilidade,
na medida em que defende a suficiência do prazo estabelecido para a sua
interposição. Acrescenta-se que o referido autor apenas levanta o possível
problema de constitucionalidade quanto ao artigo 170º nº1 do CPA. Não obstante
o exposto e defendido pelo Professor, este acaba por concluir que, à luz do
princípio da tutela jurisdicional efectiva, será sempre admissível o recurso
imediato ao tribunal administrativo.
E
o Interesse em Agir? Fica no banco?
Quando confrontado com
este problema de possível inconstitucionalidade do recurso hierárquico
necessário, não encontrei, tanto nas aulas como no estudo e pesquisa que
efectuei, qualquer referência à possibilidade de usar o tão debatido interesse
em agir como arma de arremesso a quem defende que se deve permitir o acesso
imediato à Justiça Administrativa. Não estou de todo a diminuir a elevação,
discernimento e conhecimentos de qualquer um dos Professores mencionados, no
entanto, parece-me a mim, talvez erroneamente, relevante a discussão deste
(quase/já) pressuposto processual no contexto do problema apresentado. Por isso
mesmo, comecemos por apresentar este (permitam-me a redundância) suposto
pressuposto processual.
O interesse em agir
consubstancia-se, de forma muito simples, na pretensão do particular em ser
alvo de tutela judicial na medida em que todos os restantes meios de defesa já
foram esgotados, leia-se, gorados, ou melhor, prejudiciais à sua pretensão. Nas
palavras do Professor António Montalvão Machado, “o interesse em agir consiste
na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para a satisfação da sua
pretensão. Pode dizer-se que o autor só tem interesse em agir quando não dispõe
de quaisquer outros meios (extrajudiciais) de realizar aquela pretensão. E isso
acontece, ora porque tais meios, de facto, não existem, ora porque, existindo,
o autor os utilizou e esgotou sem sucesso.” Partindo desta premissa, apresentemos então as
diversas opiniões da doutrina que está longe de ter uma posição uníssona quanto
a este assunto.
Em primeiro lugar, uma
breve referência, mas não menos honrosa, à posição dos Professores José Alberto
dos Reis e Anselmo de Castro que, apesar de ultrapassada, não deixa de ser
relevante a sua menção para efeitos de constatação de divergência doutrinária.
Desta feita, os Professores supracitados, reconduziam o interesse em agir a um
outro pressuposto processual, designadamente a legitimidade. Tendo sido esta posição
já afastada por diversa jurisprudência, cumpre-nos agora expor a opinião do
Professor Miguel Teixeira de Sousa relativamente a este assunto.
O Professor Teixeira de
Sousa defende que o interesse em agir é uma espécie de parte integrante do
interesse processual, este sim pressuposto processual nominado mas estabelecido
no artigo referente à legitimidade (artigo 26º do Código de Processo Civil,
doravante CPC). Neste contexto, releva proceder à distinção entre interesse e legitimidade
processual na medida em que no interesse em agir determina-se as condições em
que a parte pode recorrer aos tribunais, ao passo que pela legitimidade se
define qual o sujeito que pode ser parte na acção.
Diz o Professor que este
“pressuposto processual” consiste no “interesse da parte activa em obter tutela
judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e
o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão dessa
tutela”. Acrescenta o Professor que o preenchimento deste pressuposto
processual deve ser feito com “conta, peso e medida” no sentido em que se terá
que fazer uma análise da situação da parte, no momento anterior à propositura
da acção como ainda ao momento após a sua propositura. Diz ainda que o
interesse em agir deve ser aferido em relação a ambas as partes, ao litígio em
causa, e em função do meio processual utilizado, ou seja, segundo o Professor
Teixeira de Sousa, haverá interesse processual se, da situação descrita,
resultar que essa parte necessita de tutela judicial para realizar ou impor o
seu direito.
Paralelamente, impõe-se
que expúnhamos a opinião do Professor Antunes Varela, partilhada pelo Professor
Montalvão Machado. Segundo estes autores, o interesse em agir consiste na
necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção. No
fundo, a existência de uma situação de carência que necessite de intervenção
dos tribunais. Acrescentam ainda que se tem de tratar de uma situação de
necessidade absoluta, não bastando um mero capricho, temos de estar perante uma
necessidade justificável, razoável e fundada para se recorrer ao Tribunal. O
Professor Montalvão Machado faz-se, inclusivamente, valer da argumentação
apresentada pelo Professor Manuel de Andrade para defender a existência e
exigência de interesse em agir, nomeadamente afirmando que, apesar de
reconhecer a fata de referência expressa da lei a este pressuposto processual,
impõe que este seja tomado em consideração como tal, por duas razões:
1.
A instauração de uma acção inútil vai
causar sempre prejuízos e incómodos injustificados ao réu;
2.
A justiça, sendo um serviço estadual
(pago com erário público), só deve funcionar quando houver motivos para tal,
isto é, quando o autor demonstre um verdadeiro interesse em agir.
Ainda no âmbito da
divergência em sede de Processo Civil, a Professora Paula Costa e Silva avança
com a posição que estamos perante um pressuposto processual inominado pelo que
não poderá ser exigido o seu preenchimento para que possa interpor uma acção.
Contudo, acrescenta a Professora que, não obstante ser inominado, o CPC detém
alguns reflexos da sua existência, nomeadamente o artigo 449º, artigo este faz
um elenco de acções desnecessárias que levam à responsabilidade do autor pelas
custas. Na lógica do seu raciocínio, não se poderá nunca vedar o acesso aos
Tribunais por mero fundamento em falta de interesse em agir, pois,
independentemente de se poder tratar de um pressuposto processual (inominado, é
certo), a sua falta não constitui excepção dilatória (artigo 494º do CPC) e
apenas tem previsto, em caso de violação, a consequente responsabilidade do
autor pelas custas.
Cumpre agora transferir
o problema para o Contencioso Administrativo, pois á semelhança do que acontece
na lei processual, o CPTA não prevê expressamente o interesse em agir como um
pressuposto processual, mas entende a maior parte da doutrina que no artigo 39º
do CPTA se faz referência ao pressuposto. O artigo reporta-se às situações em
que o problema de reconhecimento se coloca com maior dificuldade, prendendo-se
a acções declarativas e de simples apreciação, que visam acorrer a lesões
efectivas, resultantes da existência de situações graves de incerteza
objectiva, ou ameaça de lesão, resultantes do fundado receio da verificação de
condutas lesivas num futuro próximo, determinadas por incorrecta avaliação da
situação existente.
O Professor Mário Aroso
de Almeida transfere para o Contencioso, a posição defendida pelo Professor
Antunes Varela, afirmando que o “interesse em agir não se pode ter como
verificado com a constatação de uma situação subjectiva de dúvida ou incerteza
acerca da existência do direito ou facto ou com um interesse meramente
académico de ver o caso definido pelos tribunais, exigindo-se uma situação de
incerteza objectiva e grave, que resulte de um facto exterior e que seja capaz
de trazer um sério prejuízo ao demandante, impedindo-o de tirar do seu direito
a plenitude das vantagens que ele comporta”. No que respeita à acção
administrativa comum, o artigo 39º inclui na legitimidade o interesse
processual, ao exigir a necessidade de tutela judicial, que deverá encontrar-se
legitimada pela existência de uma situação de incerteza, de ilegítima
afirmação, por parte da administração, da existência de determinada situação jurídica,
ou de fundado receio de que a administração possa vir a adoptar uma conduta
lesiva.
No âmbito da acção
administrativa é entendimento geral considerar o interesse em agir como
pressuposto processual, prova disso é a jurisprudência do Tribunal Central
Administrativo Sul de 21 de Fevereiro de 2008, Processo nº 01145/05.
Neste acórdão
determina-se que nas acções de simples apreciação, coexiste com os restantes
pressupostos processuais, o pressuposto processual do interesse em agir, o qual
não se confunde com a legitimidade, pois o autor pode ser titular de uma
relação material controvertida e não ter, face às circunstâncias do caso
concreto, a necessidade de recorrer à acção.
O acórdão completa no sentido
de, na acção de simples apreciação, se exige que o autor demonstre o estado
actual e objectivo de incerteza do direito que se arroga e que pretende tornar
certo com uma declaração judicial, pelo que, sendo o estado de incerteza sobre
determinada situação possibilita a instauração de uma acção de simples apreciação,
tem de ser um estado de incerteza objectivo, não podendo ser colocada uma mera
questão jurídica, que se reconduz a um problema de interpretação.
Apesar do artigo 39º do
CPTA ser o único que refere expressamente o interesse processual, no âmbito da
acção administrativa comum, há autores que defendem que as razões que
justificam a existência do pressuposto nesta norma também devem aplicar-se à
acção administrativa especial, nomeadamente por analogia com o interesse
directo e pessoal do artigo 55º nº1 alínea a). Quanto a esta possibilidade, o
Professor Antunes Varela admite a sua legitimidade, na certeza porém de que se
na acção administrativa comum a exigência de interesse em agir como pressuposto
processual existe e será de certa forma fácil de fundamentar, mais que não seja
pelo artigo 39º do CPTA, no âmbito da acção administrativa especial, talvez
estejamos, passo a expressão, “a navegar por águas bastante tenebrosas”.
A minha questão é: Será
que não se estará a preterir o pressuposto processual do interesse em agir
quando se recorre, ao abrigo do princípio da tutela jurisdicional efectiva, de
forma imediata a recurso contencioso, sem prévia utilização do recurso
hierárquico necessário, isto é, quando o particular não se faz valer de uma
garantia administrativa antes de recorrer a juízo? Ou melhor, não será o novo
regime ou a figura do recurso hierárquico necessário um reflexo da necessidade
de respeito pelo pressuposto processual do interesse em agir?
A meu ver,
efectivamente, estamos perante uma inconstitucionalidade bem patente no texto
do artigo 167º nº1 do CPA na medida em que delimita as possibilidades de
interposição de recurso hierárquico necessário apenas aos actos insusceptíveis
de recurso contencioso o que se torna
contrário ao regime previsto no CPTA, nomeadamente o artigo 51º nº1 pois
qualquer acto de um subalterno pode deter essas características, logo ser
impugnável. A inconstitucionalidade encontra-se quando se constata que o artigo
51º nº1 do CPTA vem apenas ser coerente com o estabelecido constitucionalmente,
designadamente no artigo 268º nº4 que prevê o princípio da tutela jurisdicional
efectiva. No entanto, parece-me claro que uma boa solução para o problema em
causa seria a reformulação do artigo 167º do CPA, no sentido de apenas afirmar
a necessidade de intentar recurso hierárquico independentemente do acto em
causa, sem prejuízo de recurso contencioso. Porque, sinceramente, tenho para
mim que teria sido essa a opção do legislador pois existem disposições que
claramente vão nesse sentido, nomeadamente os números 4 e 5 do artigo 59º do
CPTA. Portanto, nota-se uma que existe o cuidado de deixar sempre a porta
aberta para o particular aceder à Justiça no entanto dever-se-ia prever
igualmente, e independentemente do acto em questão, a necessidade de recurso
hierárquico, ou seja, antes de entrar na tal porta aberta para o particular
aceder à Justiça Administrativa só teria que limpar os pés no tapete. Desta
forma, penso que não só estava garantido o princípio da tutela jurisdicional efectiva
assim como o respeito pelo pressuposto processual que é o interesse em agir.
Quanto à possível dificuldade de transferência deste pressuposto processual do
Processo Civil para o Contencioso Administrativo, para além da necessária
referência à interpretação supramencionada do artigo 39º relativo à acção
administrativa comum, a dificuldade de aplicação à acção administrativa
especial seria, na minha opinião, rapidamente suprida a partir da “ponte” que é
feita pelo artigo 1º do CPTA, em função da aplicação do CPC. Poderíamos dizer
que estariam compatibilizados os regimes, tendo sempre a Constituição como pano
de fundo inviolável nesta cena teatral com dois actores principais. Por último,
gostaria de sublinhar o meu pessoal agrado para com as razões invocadas pelo
Professor Manuel de Andrade, pois apesar de poderem ser não tão jurídicas como
muitas outras, são da mais elevada consideração na medida em que tocam num
ponto subjacente que, para mim, é fulcral: a Justiça não pode ser utilizada de
forma discricionária e a decisão de interposição de uma acção em tribunal não
pode ser feita de ânimo leve. Assim sendo, os Tribunais devem ser o último
recurso para o particular ver satisfeita a sua pretensão pelo que até lá deverá
dar uso a todos os meios que tiver a dispor para o efeito. Se se respeitar este
corolário, este pressuposto processual que é o interesse em agir, teremos os
tribunais muito menos sobrecarregados de processos na medida em que se
constataria uma maior triagem ou filtro dos litígios.
Em jeito de conclusão,
de referir que:
1. Concordamos
com o Professor Vasco Pereira da Silva quanto à inconstitucionalidade da figura
do recurso hierárquico necessário tal como se apresenta hoje;
2. Não
sufragamos a posição minimalista ou interpretação restritiva defendida pelo
Professor Mário Aroso de Almeida;
3. Defendemos
a existência do interesse em agir como pressuposto processual, da forma como é
figurado e fundamentado pelos Professores Manuel de Andrade e Montalvão
Machado;
4. Somos
da opinião que, por via de um acertamento no texto do artigo 167º do CPA, o
problema da constitucionalidade seria resolvido;
Bibliografia
1.
Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise”;
2.
Vasco Pereira da Silva, “Em Busca do
Acto Administrativo Perdido”;
3.
Vasco Pereira da Silva, “Breve Crónica
de uma Reforma Anunciada”;
4.
Vasco Pereira da Silva, “De Necessário a
Útil: a Metamorfose do Recurso Hierárquico no Novo Contencioso Administrativo”;
5.
Vieira de Andrade, “Em Defesa do Recurso
Hierárquico Necessário – Ac. nº499/96, do Tribunal Constitucional”;
6.
Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa
(Lições)”;
7.
Mário Aroso de Almeida, “O Novo Regime
do Procedimento nos Tribunais Administrativos”;
8.
Paulo Otero, “Impugnações
Administrativas”;
9.
Marcello Caetano, “Manual de Direito
Administrativo”;
10. Freitas do Amaral, “Curso de Direito
Administrativo”.
João Maltez, nº19685
Ps: Gostaria de sublinhar que toda a aparente desformatação do texto, em nada tem que ver com qualquer tipo de "copy/paste" mas simplesmente com o facto de não saber solucionar o problema depois de copiado o texto para o blog, visto que o documento em apreço, em formato Word, estava impecável!!!
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