quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Breves considerações sobre a figura dos contra-interessados



Do passado de uma Administração “poderosa” de marcada influência francesa, encontramos agora um regime que visa sobretudo a protecção dos particulares. A partir da tão aguardada Reforma de 2004, o que passa a estar em juízo é o direito do particular. Mas nota-se aqui uma outra mudança de imensa importância: não é apenas o autor do acto que deve ser chamado a juízo mas, existe sim, a possibilidade de estarem vários sujeitos em juízo entre os quais aqueles que aleguem ser titulares de um interesse conexo ou direito cujo acto que se pretende impugnar pode causar prejuízos. Foi, assim, introduzida a figura dos contra-interessados, fruto do alargamento da legitimidade processual em sede do Contencioso Administrativo.

A maior parte das relações jurídicas administrativas, hodiernamente, são caracterizadas pela sua multilateralidade, envolvendo um conjunto alargado de pessoas cujos interesses são afectadas pela actuação da Administração. Por isso, todos os que são atingidos por um acto administrativo e todos os que fazem parte da relação jurídica devem ser considerados interessados e não terceiros[1]. Os contra-interessados são sujeitos da relação processual e também da relação administrativa.

Para se perceber melhor a figura, será útil um exemplo: A fica em primeiro lugar num concurso público. O que ficou em terceiro pretende impugnar o acto de decisão. Será que o que ficou em segundo lugar deve ser chamado? Sim, pois esse tem interesse na manutenção do acto. Passemos agora, então, à análise dos contra-interessados.

O artigo 10º CPTA no seu nº1, consagrando uma regra geral de legitimidade passiva na primeira parte, acaba na segunda parte do referido preceito por frisar que devem ser demandados também “as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”. Pode daqui aferir-se uma primeira característica: os contra-interessados não actuam ao lado do autor mas pretendem que o tribunal declare o oposto daquilo que o autor pretende pois caso contrário terão um prejuízo na sua esfera jurídica.

O legislador consagrou, em especial, o regime dos contra-interessados na acção de impugnação de actos administrativos no artigo 57º e na acção de condenação à prática do acto devido no artigo 68º/nº2. Analisando os dois artigos, o objecto acaba por ser o mesmo:
No artigo 57º devem ser demandados obrigatoriamente para além do réu:
- quem o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar;
- ou quem tenha legítimo interesse na manutenção do acto impugnado.

No artigo 68º/nº2:
- quem a prática do acto omitido possa directamente prejudicar;
- ou quem tenham legítimo interesse em que o acto não seja praticado.

A lei exige, assim, um litisconsórcio necessário passivo nas situações acima descrita. O contra-interessado defende um interesse que coincide com o interesse do réu mas tem uma actuação autónoma e independente do ponto de vista processual. Se o réu decidir confiar ao tribunal a resolução do litígio sem exercer o seu direito ao contraditório, isso não impede o contra-interessado de defender a sua posição no processo. Isto é bastante visível nas áreas de urbanismo, consumo e ambiente. Aliás, acrescente-se, que foi com o desenvolvimento do Direito do Urbanismo e do Direito do Ambiente que a posição dos tradicionais terceiros começou a ser vista de modo diverso[2].
Os dois artigos impõem ainda que esses “terceiros” “possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”. É um critério objectivo com intenção de delimitar os contra-interessados.

PAULO OTERO ensina três critérios para se considerar um sujeito como contra interessado[3]:
1- O sujeito seja fonte de situações jurídicas activas provenientes do acto que está a recorrer;
2- A sentença de provimento do recurso tenha efeitos directos na esfera desse;
3- O autor configure a petição inicial em termos que se mostram susceptíveis de um eventual provimento do recurso prejudicar terceiros.


O contra-interessado tem os poderes processuais próprios de uma parte, pois pode contestar (art.83º CPTA), apresentar alegações escritas (art.91º/nº4 CPTA), recorrer e tem de proceder de boa fé.
É obrigatório demandar o contra-interessado e é ao autor que cabe o ónus de alegar os “terceiros” que conhece (art.78º/nº2 alínea f) CPTA)[4]. A ausência de identificação dos contra-interessados constitui fundamento da recusa da petição inicial nos termos do artigo 80º/nº1 b) do CPTA por ilegitimidade passiva. Salvo quando o número de contra-interessados for superior a vinte, competindo nesse caso a citação desses ao Tribunal mediante publicação de anúncio (art.82º/1º CPTA). O Tribunal Central Administrativo Norte já se pronunciou sobre este assunto justificando esta regra com base num argumento totalmente correcto: “não se vê como um cidadão comum, sem colaboração da entidade administrativa, poderia indicar nomes e moradas de dezenas de milhares de pessoas”[5].

O que legitima que os interessados estejam em juízo é o artigo 20º e o artigo 268º da Constituição. É pelo facto de o contra-interessados serem titulares de uma posição jurídica substantiva que devem ter acesso a uma tutela jurisdicional efectiva e que se deve garantir o acesso à justiça para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. É um dos fundamentos subjectivos para esta necessidade de intervenção de terceiros. Outro fundamento subjectivo consubstancia-se no princípio do contraditório e da igualdade das partes próprios de um Estado de Direito.
O fundamento objectivo relaciona-se com o efeito útil da sentença na medida em que se pretende alargar o âmbito subjectivo do caso julgado pois não poderá ser atingido por este quem não interveio no processo.

VASCO PEREIRA DA SILVA considera que os contra-interessados não podem ser vistos como terceiros à acção administrativa pois têm um papel activo determinante, devendo, por isso, ter-se como uma parte principal É um fenómeno novo do Contencioso Administrativo que consiste no chamamento ao processo de todos aqueles que são titulares da relação material controvertida[6].

Já VIERA DE ANDRADA vê os contra-interessados como partes “quase principais” e, subsequentemente, defende que se trata de um “litisconsórcio quase-necessário”.

Por tudo o que foi exposto, podemos afirmar que o interesse directo e pessoal do contra-interessado é razão suficiente para se ter consagrado estas regras obrigatórias. Sempre que um caso possa prejudicar ou beneficiar um terceiro, deve este ser chamado ao processo para discutir a acção controvertida ao lado do demandado e do demandante e apenas essa relação. O contra-interessado terá, todavia, de ter um interesse que se exige que seja contrário ao do autor. No caso em que a Administração concede uma licença de construção de casa a alguém e o seu vizinho não concorda, pode este na acção tentar impugnar essa decisão. Neste exemplo é fácil perceber que os interesses de ambas as partes colidem. Os contra-interessados têm, portanto, intenção de que o litígio seja resolvido a favor de uma das partes e defendem uma verdadeira posição jurídica. Isto tudo mais o facto de terem os mesmos poderes processuais que as partes consideradas “normais” têm, faz com que seja fácil considerar os contra-interessados como verdadeiras partes processuais. O CPTA até é bastante claro na distinção dos contra-interessados dos restantes terceiros pois o artigo 10º/nº8 manda aplicar subsidiariamente as regras de intervenção de Processo Civil à intervenção destes últimos.

MÁRIO AROSO ALMEIDA alerta para o facto de ser preciso fazer uma interpretação mais ampla do conceito literal de contra-interessado que decorre dos artigos 57º e 68º/nº2 CPTA “estendendo-se a todos aqueles que, por terem visto ou poderem vir a ver a respectiva situação jurídica definida pelo acto administrativo praticado ou a praticar, têm o direito de não serem deixados à margem do processo”[7].


[1] Posição do Professor Vasco Pereira da Silva e que se retomará no desenvolvimento deste trabalho.
[2] Machete, Rui Chancerelle de, «A legitimidade dos contra-interessados nas acções administrativas comuns e especiais em Estudos em Homenagem ao Profº. Dr. Marcello Caetano no centenário do seu nascimento», Volume II, Coimbra Editora, 2006 págs. 611 e 630;
[3] Otero, Paulo, «Os contra interessados em contencioso administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento concursal em Estudos em Homenagem ao Profº. Dr. Rogério Soares», Coimbra, 2001
[4] Podendo ser mais tarde no processo reformulado e controlado pelo réu, Ministério Público e juiz.
[5] Acórdão TCA Norte de 30-09-2004 a propósito da revogação de um acto de colocação de educadores de infância.
[6] Silva, Vasco Pereira, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Ações no Novo Processo Administrativo», 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009
[7] Almeida, Mário Aroso, «Manual de Processo Administrativo», Almedina, 2012, pág.263.

Carla Silva, nº19532

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