Do passado de uma Administração “poderosa” de
marcada influência francesa, encontramos agora um regime que visa sobretudo a
protecção dos particulares. A partir da tão aguardada Reforma de 2004, o que
passa a estar em juízo é o direito do particular. Mas nota-se aqui uma outra
mudança de imensa importância: não é apenas o autor do acto que deve ser
chamado a juízo mas, existe sim, a possibilidade de estarem vários sujeitos em
juízo entre os quais aqueles que aleguem ser titulares de um interesse conexo
ou direito cujo acto que se pretende impugnar pode causar prejuízos. Foi,
assim, introduzida a figura dos contra-interessados, fruto do alargamento da
legitimidade processual em sede do Contencioso Administrativo.
A maior parte das relações jurídicas
administrativas, hodiernamente, são caracterizadas pela sua multilateralidade,
envolvendo um conjunto alargado de pessoas cujos interesses são afectadas pela
actuação da Administração. Por isso, todos os que são atingidos por um acto
administrativo e todos os que fazem parte da relação jurídica devem ser
considerados interessados e não terceiros[1].
Os contra-interessados são sujeitos da relação processual e também da relação
administrativa.
Para se perceber melhor a figura, será útil um
exemplo: A fica em primeiro lugar num concurso público. O que ficou em terceiro
pretende impugnar o acto de decisão. Será que o que ficou em segundo lugar deve
ser chamado? Sim, pois esse tem interesse na manutenção do acto. Passemos
agora, então, à análise dos contra-interessados.
O artigo 10º CPTA no seu nº1, consagrando uma regra
geral de legitimidade passiva na primeira parte, acaba na segunda parte do
referido preceito por frisar que devem ser demandados também “as pessoas ou entidades titulares de
interesses contrapostos aos do autor”. Pode daqui aferir-se uma primeira
característica: os contra-interessados não actuam ao lado do autor mas
pretendem que o tribunal declare o oposto daquilo que o autor pretende pois
caso contrário terão um prejuízo na sua esfera jurídica.
O legislador consagrou, em especial, o regime dos
contra-interessados na acção de impugnação de actos administrativos no artigo
57º e na acção de condenação à prática do acto devido no artigo 68º/nº2.
Analisando os dois artigos, o objecto acaba por ser o mesmo:
No artigo 57º devem ser demandados obrigatoriamente
para além do réu:
- quem o
provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar;
- ou quem tenha
legítimo interesse na manutenção do acto impugnado.
No artigo 68º/nº2:
- quem a prática
do acto omitido possa directamente prejudicar;
- ou quem tenham
legítimo interesse em que o acto não seja praticado.
A lei exige, assim, um litisconsórcio necessário
passivo nas situações acima descrita. O contra-interessado defende um interesse
que coincide com o interesse do réu mas tem uma actuação autónoma e
independente do ponto de vista processual. Se o réu decidir confiar ao tribunal
a resolução do litígio sem exercer o seu direito ao contraditório, isso não
impede o contra-interessado de defender a sua posição no processo. Isto é bastante
visível nas áreas de urbanismo, consumo e ambiente. Aliás, acrescente-se, que
foi com o desenvolvimento do Direito do Urbanismo e do Direito do Ambiente que
a posição dos tradicionais terceiros começou a ser vista de modo diverso[2].
Os dois artigos impõem ainda que esses “terceiros” “possam ser identificados em função da
relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”.
É um critério objectivo com intenção de delimitar os contra-interessados.
PAULO OTERO ensina três critérios para se considerar
um sujeito como contra interessado[3]:
1- O sujeito seja fonte de situações jurídicas
activas provenientes do acto que está a recorrer;
2- A sentença de provimento do recurso tenha efeitos
directos na esfera desse;
3- O autor configure a petição inicial em termos que
se mostram susceptíveis de um eventual provimento do recurso prejudicar
terceiros.
O contra-interessado tem os poderes processuais
próprios de uma parte, pois pode contestar (art.83º CPTA), apresentar alegações
escritas (art.91º/nº4 CPTA), recorrer e tem de proceder de boa fé.
É obrigatório demandar o contra-interessado e é ao
autor que cabe o ónus de alegar os “terceiros” que conhece (art.78º/nº2 alínea
f) CPTA)[4]. A
ausência de identificação dos contra-interessados constitui fundamento da
recusa da petição inicial nos termos do artigo 80º/nº1 b) do CPTA por
ilegitimidade passiva. Salvo quando o número de contra-interessados for
superior a vinte, competindo nesse caso a citação desses ao Tribunal mediante
publicação de anúncio (art.82º/1º CPTA). O Tribunal Central Administrativo
Norte já se pronunciou sobre este assunto justificando esta regra com base num
argumento totalmente correcto: “não se vê como um cidadão comum, sem
colaboração da entidade administrativa, poderia indicar nomes e moradas de
dezenas de milhares de pessoas”[5].
O que legitima que os interessados estejam em juízo
é o artigo 20º e o artigo 268º da Constituição. É pelo facto de o
contra-interessados serem titulares de uma posição jurídica substantiva que
devem ter acesso a uma tutela jurisdicional efectiva e que se deve garantir o
acesso à justiça para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos
dos cidadãos. É um dos fundamentos subjectivos para esta necessidade de
intervenção de terceiros. Outro fundamento subjectivo consubstancia-se no
princípio do contraditório e da igualdade das partes próprios de um Estado de
Direito.
O fundamento objectivo relaciona-se com o efeito
útil da sentença na medida em que se pretende alargar o âmbito subjectivo do
caso julgado pois não poderá ser atingido por este quem não interveio no
processo.
VASCO PEREIRA DA SILVA considera que os
contra-interessados não podem ser vistos como terceiros à acção administrativa
pois têm um papel activo determinante, devendo, por isso, ter-se como uma parte
principal É um fenómeno novo do Contencioso Administrativo que consiste no
chamamento ao processo de todos aqueles que são titulares da relação material
controvertida[6].
Já VIERA DE ANDRADA vê os contra-interessados como
partes “quase principais” e, subsequentemente, defende que se trata de um
“litisconsórcio quase-necessário”.
Por tudo o que foi exposto, podemos afirmar que o
interesse directo e pessoal do contra-interessado é razão suficiente para se
ter consagrado estas regras obrigatórias. Sempre que um caso possa prejudicar
ou beneficiar um terceiro, deve este ser chamado ao processo para discutir a
acção controvertida ao lado do demandado e do demandante e apenas essa relação.
O contra-interessado terá, todavia, de ter um interesse que se exige que seja
contrário ao do autor. No caso em que a Administração concede uma licença de
construção de casa a alguém e o seu vizinho não concorda, pode este na acção
tentar impugnar essa decisão. Neste exemplo é fácil perceber que os interesses
de ambas as partes colidem. Os contra-interessados têm, portanto, intenção de
que o litígio seja resolvido a favor de uma das partes e defendem uma
verdadeira posição jurídica. Isto tudo mais o facto de terem os mesmos poderes
processuais que as partes consideradas “normais” têm, faz com que seja fácil
considerar os contra-interessados como verdadeiras partes processuais. O CPTA
até é bastante claro na distinção dos contra-interessados dos restantes
terceiros pois o artigo 10º/nº8 manda aplicar subsidiariamente as regras de
intervenção de Processo Civil à intervenção destes últimos.
MÁRIO AROSO ALMEIDA alerta para o facto de ser
preciso fazer uma interpretação mais ampla do conceito literal de contra-interessado
que decorre dos artigos 57º e 68º/nº2 CPTA “estendendo-se a todos aqueles que,
por terem visto ou poderem vir a ver a respectiva situação jurídica definida
pelo acto administrativo praticado ou a praticar, têm o direito de não serem deixados
à margem do processo”[7].
[1] Posição
do Professor Vasco Pereira da Silva e que se retomará no desenvolvimento deste
trabalho.
[2] Machete,
Rui Chancerelle de, «A legitimidade dos contra-interessados
nas acções administrativas comuns e especiais em Estudos em Homenagem ao Profº.
Dr. Marcello Caetano no centenário do seu nascimento», Volume II, Coimbra
Editora, 2006 págs. 611 e 630;
[3] Otero,
Paulo, «Os contra interessados em
contencioso administrativo: fundamento, função e determinação do universo em
recurso contencioso de acto final de procedimento concursal em Estudos em
Homenagem ao Profº. Dr. Rogério Soares», Coimbra, 2001
[4] Podendo
ser mais tarde no processo reformulado e controlado pelo réu, Ministério
Público e juiz.
[5] Acórdão
TCA Norte de 30-09-2004 a propósito da revogação de um acto de colocação de
educadores de infância.
[6] Silva,
Vasco Pereira, «O Contencioso Administrativo
no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Ações no Novo Processo
Administrativo», 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009
[7] Almeida,
Mário Aroso, «Manual de Processo
Administrativo», Almedina, 2012, pág.263.
Carla Silva, nº19532
Sem comentários:
Enviar um comentário