terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Condenação à prática de acto devido




Condenação à prática de acto devido.


Pergunta-se e o que é um “acto devido”?
Nas palavras do Prof. Vieira de Andrade um acto devido é aquele acto administrativo que na perspectiva do autor, deveria ter sido emitido e não foi quer tenha havido uma pura omissão, quer tenha sido praticado um acto que não satisfaça a sua pretensão.

Uma viagem pelo passado

Tradicionalmente, vigorava entre nós o recurso directo de anulação, inspirado no “figurino” francês, onde a Administração só era condenada através da ficção do “acto tácito de indeferimento”. Nas palavras do Prof. Vasco Pereira da Silva tal construção de um acto que se “finge” existir, para se “fingir” que se anula, para se continuar a “fingir” que daí resulta uma obrigação de praticar o acto contrario, representava um instrumento muito pouco eficaz de tutela dos direitos dos particulares. E isto era assim porque, em razão do principio da separação de poderes o juiz só podia anular actos administrativos e nunca dar ordens às autoridades administrativas.

Em alternativa ao modelo francês do “acto fingido” vai surgir na Alemanha, a acção de condenação da Administração (“Vornahmeklage” ou “Verpflichtungsklage”), como resultado, por um lado da europeização do Contencioso Administrativo que levou  ao restabelecimento da justiça administrativa, depois do interregno hitleriano que consequentemente conduziu ao aparecimento de meios processuais de natureza condenatória inspirados na tradição anglo-americana; por outro lado, por influencia de Jellinek que no inicio do século XX já tinha chamado a atenção para a completa inutilidade da anulação dos actos negativos.

Em Portugal, é com a constituição de 1976 que se vai introduzir um contencioso administrativo de plena jurisdição, através das várias revisões constitucionais, ultrapassando-se assim alguns problemas “velhos” que o Contencioso Administrativo enfrentava.
Com a revisão constitucional de 1982 o legislador da reforma do Contencioso Administrativo de 1984-1985 vai adoptar um novo meio processual: a acção para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos (artigo 69º do Decreto-Lei nº 267/85 de 16 de Julho, ora designado LEPTA), que se destinava a assegurar a tutela efectiva dos direitos dos particulares nas relações jurídicas administrativas, colocando-se numa relação de complementaridade com os demais meios processuais. Ora isto, possibilitava a condenação da Administração na pratica de actos administrativos devidos, nomeadamente em caso de omissão ilegal, visto que o particular podia escolher entre intentar a acção para o reconhecimento de direitos ou utilizar antes a via tradicional do recurso de anulação do indeferimento tácito.
Mas, é com a revisão de 1997 que se consagra expressamente a “determinação da pratica de actos administrativos legalmente devidos” (vide artigo 268º/4 CRP), componente essencial do principio de tutela jurisdicional plena e efectiva dos direitos dos particulares em face da Administração. Sendo um meio imediatamente aplicável à luz do artigo 18º/1 CRP, uma vez que possuía natureza de direito fundamental.
            É através deste percurso que o Contencioso Administrativo vai superar mais uma vez os “traumas da infância” (nas palavras do Prof. Vasco Pereira da Silva) no quadro de um contencioso de plena jurisdição, levando mesmo à consagração de um novo mecanismo processual - de inspiração alemã – tanto permite a condenação da Administração nos casos de omissão de actuação, como nos casos em que pratica um acto de conteúdo negativo ilegal.

Objecto


            Atendendo ao disposto no artigo 66º/1 CPTA e passo a citar “A acção administrativa especial pode ser utilizada para obter a condenação da entidade competente à pratica, dentro de determinado prazo, de um acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado”, podemos verificar que existem duas modalidades de acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido; a condenação na emissão de acto administrativo omitido e a condenação na produção de acto administrativo de conteúdo favorável ao particular, em substituição do acto desfavorável anteriormente praticado.
O Prof. Mário Aroso de Almeida entende que aqui não está apenas a condenação da Administração a praticar um acto, mas também a fixação de um prazo dentro do qual estes actos devem ser praticados.
Quanto ao “objecto do processo”, o Prof. Vasco Pereira da Silva, entende que não se deve ter em conta apenas o pedido imediato (o efeito pretendido pelo autor),  esquecendo o mediato (o direito subjectivo que se pretende tutelar com através desse efeito), e a causa de pedir (o acto ou o facto que constitui a razão jurídica da actuação em juízo), visto que “uma noção adequada de objecto de processo deve proceder a uma ligação do pedido e da causa de pedir, considerando-os como dois aspectos do direito substantivo invocado. Pedido e causa de pedir apresentam-se como verso e reverso da mesma medalha”, neste termos, o Prof. defende que a sobrevalorização do pedido imediato relativamente ao mediato e à causa de pedir, não é susceptível de abranger a integralidade do objecto da acção de condenação à prática do acto devido, afirmando ainda que esta solução se mostra desconforme com as soluções legais, em especial, artigo 66º/2 CPTA, que valoriza o pedido mediato sobre o imediato, adoptando uma noção ampla de objecto de processo. E isto porque, como se lê no artigo supra referido “o objecto do processo é a pretensão do interessado e não o acto de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia condenatória”, isto significa duas coisas:

  • Que o objecto do processo é o direito do particular a uma conduta da Administração, que corresponde a uma vinculação legal de agir ou de actuar de uma determinada maneira, sendo irrelevante a existência de um acto administrativo prévio, mesmo que ele exista, a apreciação jurisdicional não incide sobre o acto, tal como refere o Prof. Mário Aroso de Almeida “o processo de condenação não é configurado como um processo impugnatório, no sentido em que, mesmo que tenha havido lugar à prática de um acto de indeferimento, o objecto do processo não se define por referência a este acto”.
  •  E que o objecto do processo corresponde à pretensão do interessado, ou seja, ao direito subjectivo do particular. Apesar do código utilizar a expressão “pretensão” o que pode ser um pouco equivoca do ponto de vista substantivo, o Prof. Vasco Pereira da Silva entende que o que está em causa no processo administrativo é de facto o direito subjectivo do particular e não uma qualquer pretensão; já o Prof. Mário Aroso de Almeida defende a ideia da pretensão considerando que “o processo de condenação é um processo em que o autor faz valer a posição subjectiva de conteúdo pretensivo de que é titular, pedindo o seu cabal reconhecimento e dela fazendo o objecto do processo”.


           
Esta ideia resulta também do disposto no artigo 71º/1 CPTA, quando diz que “o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão competente, anulando ou declarando nulo ou inexistente o eventual acto de indeferimento, mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do acto devido”., daqui resulta que o tribunal vai para além do acto, porque deve proceder a um juízo material sobre o litigio, julgando a existência do direito do particular e consequentemente determinando o conteúdo do comportamento da Administração juridicamente devido.
Deve-se referir ainda que também é possível a condenação da Administração à prática de actos administrativos de conteúdo discricionário, desde que a emissão desses actos seja devida.

O alcance do artigo 70º CPTA
           
            Neste artigo, que tem como epigrafe “Alteração da instância”,  prevê-se a possibilidade de integrar no objecto do processo pedidos relativos não apenas a actos de indeferimento nos termos do seu nº1 que diz que “quando a pretensão do interessado seja indeferida pela Administração na pendência do processo, pode o autor alegar novos fundamentos e oferecer diferentes meios de prova em favor da sua pretensão”, mas também de deferimento parcial das pretensões dos particulares que sejam praticados pela Administração na pendência do processo, nos termos do seu nº3 (vide, “quando, na pendência do processo, seja proferido um acto administrativo que não satisfaça integralmente a pretensão do interessado, pode ser cumulado o pedido de anulação ou declaração de nulidade ou inexistência desse acto, devendo o novo articulado ser apresentado no prazo de 30 dias”).
Podemos ver pelo conteúdo do presente artigo que o legislador pretendeu que os poderes de pronúncia do juiz devem ir tão longe quanto o exigirem os direitos dos particulares necessitados de tutela, isto quer dizer que o objecto do processo não se limita apenas aos factos ou comportamentos anteriores à abertura do processo, mas também aos actos administrativos desfavoráveis, praticados na pendência da acção, uma vez que estes afectam os direitos e a relação jurídica trazida a juízo. Pretende-se assim que não haja um “divorcio” entre a relação jurídica processual e a substantiva, para não se pôr em causa o efeito útil da sentença (Prof. Vasco Pereira da Silva).

Os processos de condenação como processos de “geometria variável”

            As sentenças de condenação na prática do acto administrativo devido podem apresentar conteúdos muito diferenciados, é por isso que o Prof. Mário Aroso de Almeida utiliza a expressão “processos de geometria variável”, visto que não têm todos a mesma configuração, nem conduzem todos à emissão de pronúncias judiciais com idêntico alcance.  
            Existem então três situações diferentes (considera o Prof. Mário Aroso de Almeida), no que respeita à natureza dos poderes administrativos a exercer, que podem dar origem às modalidades de sentenças de condenação:

  •  As “situações em que a lei confere ao autor o direito a um acto administrativo com um determinado conteúdo ou, pelo menos, constitui a Administração no dever estreito de praticar um acto com um conteúdo determinado”, que dão origem a sentenças de condenação estreita;
  •  As situações – de redução da discricionariedade a zero - “em que embora a lei confira, em abstracto, à Administração certos poderes de conformação do conteúdo do acto, a verdade é que, no caso concreto se deve, objectivamente, reconhecer que só lhe resta praticar um acto com um determinado conteúdo”; 
  • As situações do acto devido, mas com conteúdo discricionário, que levam à “condenação da Administração a praticar um qualquer acto administrativo, sem conter quaisquer especificações quanto ao conteúdo do acto a praticar”.



O Prof. Vasco Pereira da Silva, prefere reconduzir a questão à clássica dualidade vinculação/ discricionariedade, entendendo que a discricionariedade tanto pode ser entendida em abstracto como em concreto, pelo que a, redução da discricionariedade a zero, representa uma situação de discricionariedade do ponto de vista abstracto, mas que de uma perspectiva concreta se pode assemelhar às situações de vinculação legal.

Em termos esquemáticos podemos então considerar a existência de duas modalidades de sentença, quanto ao conteúdo, resultantes do pedido de condenação à prática de acto devido:

  •   Aquelas que cominam à prática de um acto administrativo cujo conteúdo é, desde logo, determinado pela sentença, já que corresponde ao exercício de poderes vinculados tanto quanto à oportunidade como quanto ao modo de exercício;
  • Aquelas que cominam à prática de um acto administrativo, cujo conteúdo é relativamente indeterminado, na medida em que estão em causa as escolhas que são da responsabilidade da Administração, mas em que o tribunal deve indicar a forma correcta de exercício do poder discricionário, no caso concreto, estabelecendo o alcance e os limites das vinculações legais, assim como fornecendo orientações quanto aos parâmetros e critérios de decisão.





Vânia Ferreira
18448


Bibliografia:
-       Almeida, Mário Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, 2007 e Manual de Processo Administrativo, 2010
-       Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009
-       Legislação: CPTA; CRP

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