A concretização do princípio da prossecução do interesse público pela Administração Pública[1]-[2], torna-o num verdadeiro leitmotiv
de toda a atuação administrativa. Tendo em conta o âmbito limitado deste texto, ele será abordado apenas no âmbito dos poderes do contraente público, nomeadamente como fundamento da resolução
unilateral do contrato; tratando-se, de seguida, das consequências que o exercício
que tal poder comporta, nomeadamente sobre o sujeito cocontratante.
A resolução do
contrato por motivo de interesse público aparece no art. 334º do Código dos
Contratos Públicos (adiante CCP), pressupondo uma reformulação do interesse
coletivo, em divergência com o mesmo motivo de interesse público em que se fundou a decisão de contratar da
Administração.
Antes de prosseguirmos, note-se que à
luz do CCP, tal exigência se aplica somente aos contratos sujeitos ao âmbito de
aplicação da parte II desse código, onde se regula a execução do contrato
administrativo – pois que nem todo o contrato público é um contrato
administrativo –, sendo que apenas no quadro desse regime terá a Administração a disponibilidade permanente do
contrato; sem prejuízo de as partes convencionarem a aplicação do regime
dos contratos administrativos, a contratos que não tenham por objeto as
prestações típicas elencadas no art. 6º, n.º 1, do CCP[4].
O poder de resolução unilateral é um
verdadeiro poder exorbitante do contraente público, na medida em que constitui
uma especificidade da relação jurídica fundada em contrato administrativo. Assume assim uma natureza diferente do poder de modificação unilateral, em que se apresenta
controvertida a sua condição especial face ao Direito Civil[5].
Tal afirma o «caráter misto» da
relação jurídica contratual, que, recorrendo ao contrato, se vincula num acordo
de vontades, sem deixar de abdicar do seu ius
imperii[6].
Contrapõe a consensualidade comum a todos os contratos, com a permanência do
poder de autoridade do contraente público, que se revela como «marca
verdadeiramente distintiva da relação contratual»[7].
É que a prossecução do interesse público, que é um conceito mutável, não se
compadece com a rigidez do princípio pacta
sunt servanta, donde a insusceptibilidade da Administração ficar refém do
contrato. Desse modo, é-lhe permitido que a invocação do interesse público – numa
configuração divergente daquela que presidiu ao momento da celebração do
contrato – lhe permita tanto alterar como extinguir um contrato, sem
consentimento do particular, nem a intervenção do juiz[8].
Sem necessidade de intervenção
judicial, o contraente público resolve o contrato mediante ato administrativo,
como se retira do art. 307º do CCP; ato típico do contraente público, cuja
prática, no âmbito do seu poder de conformação, coincide com a «competência
material de resolução»[9].
Não era assim no Direito anterior ao CCP, no qual se admitia que o exercício de
modificação revestisse a forma de ato ou de regulamento[10],
com consequências a nível de garantias contenciosas do cocontratante.
Impõe o art.
324º, n.º1, do CCP, que o ato de resolução por motivo de interesse público seja
devidamente fundamentado, o que replica
as exigências de forma do CPA na formação do ato administrativo. Mas o CCP não
prevê a audiência prévia do cocontratante, vigorando a regra geral do art.
308º, n.º1, do CCP, segundo o qual a formação dos atos emitidos no exercício
dos poderes do contraente público, não se sujeita ao regime da marcha do procedimento do CPA.[11]
Necessário será
que o espaço de conformação de conformação do contraente público não coloque o
objeto do contrato na sua inteira disponibilidade, em que haja só autoridade e
nenhuma contratualidade[12].
É da permanência de uma nota de consensualidade que nos permite autonomizar o contrato
administrativo, relativamente a outras formas de atividade administrativa. Relembre-se
que, embora o modo de exercício dos poderes do contraente público possam – de
acordo com a redação do art. 280º do CCP – ser regulados pelo contrato, eles
não se encontram na sua livre disponibilidade, pelo que a eles não poderá
renunciar a Administração[13]. Tal solução carregaria o risco de deixar em mãos alheias a prossecução do interesse
público.
O poder de
resolução unilateral, inserido no âmbito dos poderes de conformação do
contraente público[14],
coloca-se no limite desse espaço, tratando-se de uma manifestação mais grave do poder público, desequilibrando
a própria relação jurídica – em derrogação do princípio pacta sunt servanta –, o que, pelas consequências que acarreta para
o cocontratante, também fundamenta a sua condição subsidiária, face ao
exercício da modificação unilateral[15].
Em defesa dessa
subsidiariedade figuram Marcelo Rebelo de
Sousa e André Salgado de Matos,
afirmando que resolução terá lugar, sempre que se entender que um determinado
contrato deixou de ser necessário ou passou a ser pernicioso para o interesse público e a adequação do
contrato à mutação ocorrida no interesse público, não pode ser obtida através
de simples modificação unilateral[16].
Luís Cabral de Moncada[17]
e, também, Carla Amado Gomes[18], apelam ao princípio da
proporcionalidade, que reclama que a resolução obedeça a critérios de necessidade,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Isto, além da obrigação de
instaurar o procedimento prévio à resolução, bem como do dever de fundamentação
dos motivos de interesse público.
Respondemos afirmativamente à questão
de saber se a crise económica é fundamento bastante para resolução por
interesse público, desde que tal afete, diretamente, a prestação do contrato em
causa, como deverá ser devidamente fundamentado no ato administrativo de resolução. Assim,
na medida em que contratar (ou executar um contrato) em tempos de crise convoca um esforço de management of contract relationship, e que tal será um atributo
fundamental da Administração perante os riscos que se atravessam na atividade
contratual. Tal conceito, que se ligará ao dever de boa administração, compreenderá um conjunto de poderes de fiscalização e
de «profilaxia» do incumprimento do contrato[19], pelo que, dizíamos nós, neste quadro da gestão
de riscos que fica incumbida à Administração, ser-lhe-á legítimo sacrificar os seus
compromissos contratuais, invocando o combate à crise como motivo de interesse
público.
A nosso ver, tal fundamento pode até buscar-se no espírito do legislador constituinte. Da Constituição[20]
se retira um dever de o Estado realizar uma atividade de efetiva regulação económica,
de incentivar a poupança, de prover pela defesa dos interesses dos consumidores
e de salvaguardar a independência nacional nas relações económicas. De resto, indo além da Constituição instrumental[22], é possível considerar a vinculação do Estado ao princípio da equidade
intergeracional, que visa evitar o fenómeno do agravamento da dívida
pública e uma transferência de riscos incomportável para as gerações futuras[21]; vejam-se ainda as obrigações do Direito
da União Europeia, designadamente do art. 126º do TFUE e no Protocolo sobre o procedimento
relativo aos défices excessivos.
Claro está que, mesmo que não se considerasse
ser motivo de interesse público, seria procedente, como uma alteração das
circunstâncias em que a Administração fundou sua decisão de contratar[23], matéria que não caberá aqui desenvolver.
O CCP prevê a reposição do equilíbrio
económico-financeiro do contrato quando este seja resolvido por motivo de
interesse público. Uma manifestação de paridade entre contraentes, que se
alicerça no princípio da equitativa repartição dos encargos públicos.
Note-se que esta indemnização para reposição do equilíbrio financeiro
do contrato, nada tem que ver com a responsabilidade do contraente público que
se estabelece noutras normas, designadamente no art. 7º, n.º2, do Regime de
responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais entidades
públicas (Lei n.º 67/2007, de 31/12), o qual prevê a concessão de indemnização
às pessoas lesadas por violação de norma
ocorrida no âmbito de procedimento de formação dos contratos referidos no
artigo 100º do CPTA, pois que aí está em causa a indemnização de danos
decorrentes da celebração de um contrato inválido ou de comportamentos lesivos
no procedimento pré-contratual, que se repercutam (ou não) no exercício das
prestações, como seja a violação de deveres decorrentes da boa-fé (de
segurança, esclarecimento, lealdade, sigilo, etc.) ou ainda a «tentativa
ilícita de imposição de obrigações novas ou de diminuição de direitos», que
levem ao afastamento à desistência do adjudicatário, destruindo expetativas já consolidadas[24].
Trata-se, pois, de uma responsabilidade por ato lícito da
Administração, partindo antes do pressuposto de que a tutela efetiva dos
particulares exige o seu ressarcimento, sempre que estes vejam os seus direitos
afetados, seja o ato conforme ou não à legalidade. Afastar essa reposição seria,
por um lado violar o princípio da equitativa repartição dos encargos públicos
entre todos os cidadãos – reflexos dos arts. 5º e 6º do CPA –; e por outro, permitir o enriquecimento da Administração sem justa causa. Porque falamos de contratos, dever-se-á apelar também ao princípio da equivalência das prestações, sob pena de a prossecução do
interesse público ficar «a cargo do particular»[25].
Em última análise, a reposição do equilíbrio financeiro
também poderia ser atingida mediante o apelo aos direitos
subjetivos dos particulares, enquanto limite da atuação da prossecução do
interesse público pela Administração[26].
Em contexto de crise é necessário
ponderar os critérios de determinação da medida da indemnização, sem perder de
vista o princípio da equitativa repartição de encargos públicos. Se por um
lado, a generosidade para com os
concorrentes se afigura pouco recomendável num contexto de dificuldades
financeiras públicas, por outro lado, a tendência para a redução dessa
indemnização, pode acarretar uma espécie de efeito
de Édipo para a Administração. Isto, na medida em que facilitará a
resolução dos contratos, porque sai
barato à Administração fazê-lo; o
que, a tornar-se uma prática recorrente, fará jus ao popular ditado de que
(também) o barato sai caro.
Pelo contrário, em nome de uma contratação pública sustentável, dever-se-á procurar combater uma Administração que tem cantado, com Jorge Palma, uma «(…)República [que] sabe receber bem/ gasta milhões que o Estado não tem».
Pelo contrário, em nome de uma contratação pública sustentável, dever-se-á procurar combater uma Administração que tem cantado, com Jorge Palma, uma «(…)República [que] sabe receber bem/ gasta milhões que o Estado não tem».
[1] Art. 266º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa (adiante CRP);
[2] Art. 4º do Código do Procedimento Administrativo
(adiante CPA);
[4] Assim, Pedro
Gonçalves, O contrato
administrativo (uma instituição do Direito do nosso tempo), Coimbra:
Almedina, 2003, p. 104;
[5] É o caso de Maria
João Estorninho, Requiem pelo
contrato administrativo, Almedina: Coimbra, 2003, p. 136, que considera
existir no Direito Civil a faculdade de os contraentes pedirem em tribunal a
alteração das cláusulas de um contro, quando se verificar uma alteração das
circunstâncias em que as partes tenham fundado a sua decisão de contratar, nos
termos do art. 437º do CC; contra, Alexandra
Leitão, O enriquecimento…cit.,
p. 55, argumentando que a Administração não só «não precisa de requerer aos
tribunais essa modificação», que decorre do seu poder unilateral – fá-lo
através da prática de ato administrativo, como decorre do 307º CCP –, como «não
está sujeita aos critérios exigentes» do referido artigo.
[6] Assim, Pedro
Gonçalves, O contrato…cit., p.
102
[7] Citamos Pedro
Matias Pereira, Os poderes do
contraente público no Código dos contratos públicos, p. 55
[8] Ao contrário da cláusula de rebus sic stantibus do art. 437º do CC – em que se pressupõe a
alteração das circunstâncias que motivaram a decisão de contratar –
tratar-se-á, antes, «de uma verdadeira cláusula
de sujeição, segundo a qual o cocontratante se submete aos poderes públicos
de autoridade», como afirma Pedro Matias
Pereira, Os poderes…, p. 56
[9] Como nota Pedro
Gonçalves, A relação jurídica
fundada em contrato administrativo, in Cadernos
de justiça administrativa, n.º 64, Julho-Agosto/2007, p. 43
[10] Hipótese em que a Lei de Processo dos Tribunais
Administrativos (LPTA) apontava um meio próprio para reagir a essa atuação: a
declaração de ilegalidade das normas, nos artigos 63º e ss., que, ao contrário
dos recursos de normas, cujos pedidos eram apenas admissíveis contra os
regulamentos emanados de órgãos da administração regional e local ou de
concessionários e pessoas coletivas de utilidade pública – artigo 51º/1, e) –,
os pedidos de declaração de ilegalidade podiam dirigir-se contra quaisquer
regulamentos, como afirma Lourenço
Vilhena de Freitas, O poder de
modificação unilateral do contrato administrativo pela Administração (e as
garantias contenciosas do seu cocontratante perante este exercício), Lisboa:
AAFDL, 2007,
p. 135;
[11] Sobre a não inclusão, de natureza análoga a direitos, liberdades e
garantias, Luís Cabral de Moncada,
Consenso e autoridade…cit., p. 93,
suscita a inconstitucionalidade da norma do art. 324º, n.º 1, do CCP.
[12] Nesse sentido Rodrigo
Esteves de Oliveira, Autoridade e
consenso no contrato administrativo, p. 6, afirmando que nesse caso haveria
um não-contrato.
[14] O que o afasta, em última análise, de figuras como o fait du prince, na qual está em causa um
ato proveniente de um órgão administrativo estranho à relação contratual e que,
embora afetando-a – com a suscetibilidade de provocar a resolução do mesmo
contrato – não se dirige a ela em particular, como afirma Cláudia Saavedra Pinto, O facto do
príncipe e os contratos administrativos, Almedina: Coimbra, 2012, p. 76
[15] Solução para a qual também concorre o princípio favor negotii – art. 239º do Código
Civil (adiante CC);
[16] Marcelo Rebelo
de Sousa/André Salgado de Matos, Direito administrativo geral, tomo III, 2ª edição, Lisboa: Dom Quixote, 2009, p.
149;
[17] Luís Cabral de
Moncada, Consenso e…cit., p.
93;
[18] Carla Amado
Gomes, A conformação da relação
contratual no Código dos contratos públicos, in Estudos de contratação pública, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora,
2008, p. 555.
[19] Veja-se, por todos, Pedro
Gonçalves, Gestão de contratos
públicos em tempo de crise, in Estudos
de contratação pública, vol. III, Coimbra, 2010, pp. 5 e ss.
[20] Vejam-se os artigos 101º, onde se estabelece que o
sistema financeiro deve ser «estruturado por lei, de modo a garantir a
formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos
meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social», cit. por Afonso d’ Oliveira Martins, A Constituição e a crise económica, in Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, vol. I,
Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 86; e o art. 81º, al. g) defendendo a salvaguarda da «independência nacional» nas
«relações económicas».
[21] Tal princípio, correspondendo a um imperativo de
cooperação e de distribuição equitativa dos riscos e de cooperação entre
gerações, deveria ser tratado como efetivo parâmetro do controlo
de validade do endividamento público –
nomeadamente, pelo Tribunal de Contas –, fazendo ao mesmo tempo
com que a observância desse princípio fosse parâmetro de validade dos contratos
públicos, bem como um incentivo (reflexo)
à canalização do investimento público para áreas produtivas, baseadas no conhecimento e na inovação;
[22] Ainda com Afonso
d’ Oliveira Martins, A
Constituição…cit., p. 87;
[23] Atuação (lícita) da Administração, de acordo com o
art. 335º do CCP; pese embora «numa lógica preventiva» e atendendo a
«determinadas alterações de circunstâncias» faria sentido impor à entidade
adjudicante um dever de não outorga do contrato, pois que não será razoável, de
acordo com o princípio do interesse público, «amarrar» a Administração à
celebração do contrato; de resto, a resolução anterior à outorga do contrato constituirá
a Administração num dever de restituir, de acordo com o art. 134º, al. b) do CCP, o preço pago à entidade
adjudicante, pela disponibilização das peças concursais e, nos termos do art. 79º, n.º 4, do mesmo CCP, na
indemnização dos concorrentes cujas propostas não tenham sido excluídas, pelos
encargos resultantes da elaboração das suas propostas –, como afirma Maria João Estorninho, Responsabilidade…, pp. 40-41
[24] Assim, Maria
João Estorninho, Responsabilidade
das entidades públicas na formação dos contratos: tópicos de reflexão, em
tempos de crise…, in Cadernos de
justiça administrativa, n.º 88, Julho-Agosto/2011, pp. 38-40
[25] Citamos Alexandra
Leitão, O enriquecimento, p.
55
[26] Assim, de acordo com os já citados arts. 266º, n.º 1,
da CRP, e 4º do CPA.
Diogo N. Gaspar
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