terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Subsidariedade da Intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias



1. Os processos urgentes

O Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), no seu Título IV, regula os denominados Processos Urgentes. Resulta isto de uma imposição da europeização do Contencioso Administrativo na medida em que a União Europeia obriga a que os juízes nacionais tenham meios de tutela próprios para cada caso, sendo que os processos de urgência era uma prática inexistente em todos os países europeus.

Os processos urgentes, que podem ser definidos como uma figura que se encontra a meio caminho entre as providências cautelares e os processos principais, abrangem quatro tipos de situações: contencioso eleitoral, contencioso pré-contratual, intimação para prestação de informações, consulta de documentos e passagem de certidões e intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Para VASCO PEREIRA DA SILVA o legislador procedeu da melhor maneira ao ter agrupado estes processos numa categoria especial, contudo pensa que esse poderia ter sido mais arrojado na sua regulação. Não se pode deixar de assinalar que esta caracterização como processos urgentes é original do Direito Português.
Neste trabalho vamos incidir sobre a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias e analisar a sua subsidiariedade relativamente aos processos cautelares.


2. Intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias

A intimação é um dos processos urgentes que impõe à Administração a realização ou abstenção de operações materiais ou mesmo de actos administrativos, podendo ser oposto também a particulares.
Do Artigo 4º/nº1 alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) resulta a competência dos tribunais administrativos para apreciação dos litígios que tenham por objecto a tutela de direitos fundamentais.

Já o artigo 20º/nº5 da Constituição da República Portuguesa impõe a existência de um meio de defesa de direitos, liberdades a garantias. Esta intimação veio concretizar essa garantia constitucional, reconhecendo-se a importância de uma protecção acrescida dos direitos, liberdades e garantias.

Chegados a este ponto, pergunta-se a que direitos se podem aplicar esta intimação. A Doutrina tende a divergir. CARLA AMADO GOMES entende que em face da cláusula de extensão de regime constante do art.17º CRP, estão também abrangidos os direitos fundamentais de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias mas apenas os inseridos no texto constitucional[1]. Já para VASCO PEREIRA DA SILVA, e concordando com este, para além dos direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, estão também abrangidos por este processo os direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, como, por exemplo, o direito de propriedade.

Assim, poder-se-ia pensar que esta intimação funciona, na prática, como um recurso de amparo visível no direito espanhol e brasileiro e que não existe no direito português[2]. Mas a resposta é negativa. Em primeiro lugar, o recurso de amparo, que é a possibilidade do particular recorrer directamente para o Tribunal Constitucional, aplica-se a todos e quaisquer processos e, por isso, não tem as limitações que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contém.

A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, que está regulada nos artigos 109º a 111º do CPTA, é um processo principal, urgente, que faz uma apreciação imediata de mérito definitiva, não se compadecendo com uma mera apreciação provisória.

O processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias tem como objectivo tutelar a urgência. A urgência que está na essência da providências cautelares é de natureza do periculum in mora, enquanto que na intimação para a protecção de Direitos, Liberdades e Garantias, está em causa uma urgência intimamente ligada a um dano autónomo sobre posições jurídicas subjectivas[3].

Tem legitimidade activa para esta intimação quem alegar e provar que é titular de um direito, liberdade ou garantia que possa ser afectado.

Já quanto à tramitação: esta é bastante célere e simples, apesar de se pretender uma decisão de fundo. Há um procedimento para processo simples e de urgência normal no artigo 110º/ nº1 e 2, outro para processos complexos de urgência normal no nº3 e um terceiro no artigo 111º para situações de especial urgência.

No artigo 109º é possível detectar os requisitos de procedência de um processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.

Artigo 109.º
Pressupostos
1 - A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131º[4].

Assim, ao analisar este artigo, deparamo-nos logo com a exigência de celeridade, da indispensabilidade de uma decisão definitiva proferida em tempo útil, não sendo possível recorrer-se ao decretamento de uma providência cautelar.


3. Subsidariedade da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias

O artigo 109º consagra expressamente a subsidiariedade da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias relativamente às providências cautelares do artigo 131º.
Como articular, então, estes dois processos que respeitam ao mesmo objecto?
Tal como o artigo 109º dispõe, este mecanismo só pode ser utilizado quando a emissão urgente de uma decisão de fundo do processo é indispensável para a protecção de um direito, liberdade e garantia e não é possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar.

Pergunta-se, desde logo, qual a extensão desta subsidiariedade, isto é, se a subsidiariedade é relativa apenas às providências cautelares enunciadas no artigo 131º ou se é também subsidiária relativamente a todas as providências cautelares específica de protecção sumária de direitos, liberdades e garantias. CARLA AMADO GOMES e a maioria da Doutrina entendem que o legislador pretendeu abranger qualquer providência cautelar de natureza genérica e também as específicas de protecção de direitos, liberdades e garantias, consagrando, assim, uma subsidiariedade mais ampla do que a que a norma estipula.

Para ser possível usar-se desta intimação, diz-nos o artigo 109º CPTA que a providência cautelar seja impossível ou insuficiente para proteger eficazmente os direitos, as liberdades e as garantias. Não releva aqui o prazo da demora de cada uma já que é o mesmo: 48 horas[5].
A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é um processo principal e, ao contrário das providências, decide o litígio. É requisito deste mecanismo que haja uma situação de urgência que não seja compatível com a demora associada a um processo principal.

Já as providências cautelares são um meio para defesa de um direito que se pretende que seja tutelado em tempo útil mas não há uma decisão definitiva. Quando o autor dá início ao processo principal, pode requerer conjuntamente que o tribunal decrete uma providência para evitar que se constitua uma situação irreversível durante a pendência da acção principal que inutilizaria esta última. É o requisito do periculum in mora. Pode dizer-se que a providência cautelar pretende assegurar a utilidade da sentença a proferir num processo declarativo[6]. A providência cautelar é instrumental ao processo principal pois para ser decretada uma providência cautelar, tem de haver um processo principal a correr simultaneamente. Daqui se retira que a providência cautelar não tem autonomia.

As providências cautelares poderão ser conservatórias, ou seja, o autor quer conservar um direito em perigo ou manter a situação tal como ela está ou poderão ser antecipatórias, o interessado pretende a adopção de uma medida que pode ser um acto administrativo ou não. É notório o carácter de urgência das medidas cautelares, no entanto, estas não regulam o litígio de modo definitivo podendo a acção principal alterar e substituir a decisão tomada na providência cautelar. Está aqui subjacente o carácter provisório destas.

O juiz para decidir se concede a providência, procede a um juízo sumário da situação, pois o carácter de urgência não permite uma avaliação demorada já que isso obstaria ao efeito útil subjacente à providência.

O artigo 131º, que o presente artigo em análise refere, tem em vista situações que requeiram uma concessão imediata de uma providência cautelar, sem prejuízo da decisão que venha a ser tomada no processo principal após a apresentação do requerimento. O tribunal concede imediatamente a providência imediatamente após a apresentação do pedido. Destina-se, nas palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, a evitar o periculum in mora do próprio processo cautelar. O direito do particular fica protegido com a providência até que se decida sobre a questão no processo principal, pretendendo-se apenas que a providência seja decretada com a maior brevidade. Tal como todas as providências, não decide o conflito.

Apesar de ambos os processos serem simplificados em termos de tramitação processual, foi a impossibilidade de decidir a título definitivo a questão de fundo que conduziu o legislador a prever processos principais urgentes que pudessem colmatar as limitações inerentes à tutela cautelar. 
O particular pode estar numa situação em que, apesar de preencher os requisitos inerentes à proclamação de uma providência cautelar, essa não é suficiente para a tutela do seu direito. Os prejuízos decorrentes de uma demora processual que a providência cautelar pretende evitar, continuariam a afectar o autor mesmo que fosse decretada a providência.

Pode dizer-se que a tutela cautelar é insuficiente sempre que o interessado vise a obtenção de efeitos que só poderão advir da sentença final. Para ISABEL FONSECA a insuficiência ou impossibilidade está nas situações em que o juiz cautelar é forçado a intrometer-se na questão controvertida alvo do processo principal já que isso originaria uma situação de ilegitimidade por parte do juiz que em sede de concessão de uma providência não tem competência para decidir a título definitivo[7].

Quanto à impossibilidade do decretamento da providência cautelar, esta prende-se com a falta de preenchimento dos requisitos por o autor não conseguir provar a lesão eminente e irreversível do direito, como por exemplo no caso de não ter ao seu dispor um documento que necessite.
Exige-se ainda que, para além de não ser suficiente a providência, o requerente não tenha ao seu dispor qualquer outro meio processual que permita a defesa dos seus direitos como o habeas corpus, intimação para prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões.

Ou seja, a controversa incide em saber se a solução para a questão basta-se com um juízo provisório ou se é necessário uma análise do fundo da questão e subsequentemente uma decisão definitiva.
A resposta a esta questão prende-se com a importância do factor tempo na protecção do direito: quando o particular não tem tempo para aguardar que o juiz principal se pronuncie sob pena de perder o direito.

A intimação só se pode aplicar para casos em que a tutela jurisdicional efectiva reclame uma actuação mais rápida, casos de tutela muito urgente que têm de ser tutelados na hora sob pena de se perder o direito. Não basta dizer que as providências cautelares do art.112º não são suficientes para a tutela dos direitos, é preciso mostrar que não pode tutelar em tempo útil os direitos dos cidadãos. Só se pode recorrer à intimação se o requerente provar que não consegue, com o decretamento de uma providência, um efeito útil, demonstrando assim a indispensabilidade da intimação.
Se o direito possa ser repetido por não estar sujeito a nenhum prazo, deve-se também preferir a tutela cautelar.

Por exemplo: o caso de uma manifestação por ocasião da deslocação de uma personalidade estrangeira a Portugal que foi ilegalmente proibida. Se for concedida uma providência cautelar que permita a manifestação, o processo principal será supervenientemente inútil pois quando fosse decidir o fundo da questão já a manifestação teria passado.
Passa-se o mesmo nos casos, muito frequentes na nossa Jurisprudência, de alunos a quem foi negado o acesso ao ensino superior e que intentam uma acção Se for decretada uma providência cautelar que permita que o aluno se inscreva no curso que quer mas depois o processo principal revogar a decisão, tal causará danos ao aluno que já se encontra a frequentar as aulas[8].
Por isso, como se percebe por estes exemplos, é inquestionavelmente necessário uma tutela que avalie de imediato a situação, que pondere os interesses em jogo e decida definitivamente.

Não se verificando os pressupostos da intimação porque o requerente não conseguiu provar a indispensabilidade da intimação ou porque o direito pode ser repetido não ficando por isso prejudicado com uma simples providência cautelar, defende CARLA AMADO GOMES E MÁRIO AROSO DE ALMEIDA que o juiz deve, não absolver da instância, mas sim proceder à convolação do processo de intimação para providência decretando-se provisoriamente uma providência cautelar adequada[9]. A autora citada também não vê motivo para não ser possível o contrário, isto é, transformar um procedimento cautelar em intimação.

Mas para a convolação de intimação em providência cautelar ser possível, é necessário que os requisitos da providência estejam preenchidos. No Acórdão do STA[10], o tribunal declarou que o caso do requerente pretender que não lhe sejam atribuídas funções ao Sábado para poder cumprir obrigações religiosas não é um caso em que seja necessário uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias e aconselhou a autora a adoptar uma acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido. A autora pediu subsidiariamente que, caso a intimação não fosse aceite, se convertesse em providência cautelar. Quanto a este pedido, o tribunal afirma a possibilidade de convolação mas não a admite no caso concreto por não estar verificada a alínea a) do art.120º CPTA e por não ficar a recorrente com prejuízos pelo facto de não poder cumprir as suas obrigações religiosas ao sabádo.

Apesar de serem um contributo de peso para a complementação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, os processos urgentes devem ser vistos como uma excepção, tendo sempre que possível de se dar primazia aos processos urgentes. As formas de acção administrativa comum e especial correspondem ao modelo processual que deve ser aplicado na generalidade dos casos pois na tramitação célere que caracteriza os processos urgentes acaba-se sempre por sacrificar interesses relevantes num processo como o contraditório e a prova.

Carla Silva, nº 19532

Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2012; O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2007;
ANDRADE, José Vieira, A justiça administrativa : lições, Coimbra: Almedina, 2009
CLAUDINO, Marco Henriques, O regime jurídico dos direitos sociais : as providências cautelares administrativas e a garantia dos direitos sociais, Lisboa 2009
FIRMINO, Ana Sofia de Sousa, A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, Lisboa, 2004
FONSECA, Isabel Celeste, Dos novos processos urgentes no contencioso administrativo : função e estrutura, Lisboa: Lex 2004.
GOMES, Carla Amado, “Pretexto, contexto e texto da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias” in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. V, Almedina, Coimbra, 2003
SILVA, Liliana Cunha, Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias : da inovação à aplicabilidade, Lisboa, 2007


[1] GOMES, Carla Amado, “Pretexto, contexto e texto da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias” in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. V, Almedina, Coimbra, 2003
[2][2][2] CARLA AMADO GOMES vê a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias como a forma escolhida pelo legislador para colmatar a recorrentemente denunciada ausência no ordenamento português de uma acção de amparo. Ob. Cit.
[3] SILVA, Liliana Cunha, Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias : da inovação à aplicabilidade, Lisboa, 2007
[4][4] Itálicos e negrito nossos.
[5][5] Artigo 131º/nº3 e 111º/nº1 CPTA
[6] ALMEIDA, Mário Aroso, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2012
[7] FONSECA, Isabel Celeste, Dos novos processos urgentes no contencioso administrativo : função e estrutura, Lisboa: Lex 2004.
        [8] Acórdão TCA Norte de 21-01-2007, Acórdão TCA Norte de 01-03-2007, Acórdão TCA Norte de 12-03-2009
[9] Recorde-se aqui o famoso caso “Barco do Aborto” a propósito de uma intimação para permitir que um Barco que procedia à interrupção voluntária da gravidez entrasse em águas portuguesas. O tribunal indeferiu a intimação por considerar não ser indispensável a autorização da entrada do barco no porto da Figueira da Foz para assegurar os direitos fundamentais alegados pelos autores.
[10] Acórdão STA de 14-12-2011

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