1. Os processos urgentes
O
Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), no seu Título IV,
regula os denominados Processos Urgentes. Resulta isto de uma imposição da
europeização do Contencioso Administrativo na medida em que a União Europeia obriga
a que os juízes nacionais tenham meios de tutela próprios para cada caso, sendo
que os processos de urgência era uma prática inexistente em todos os países
europeus.
Os
processos urgentes, que podem ser definidos como uma figura que se encontra a
meio caminho entre as providências cautelares e os processos principais,
abrangem quatro tipos de situações: contencioso eleitoral, contencioso
pré-contratual, intimação para prestação de informações, consulta de documentos
e passagem de certidões e intimação para protecção de direitos, liberdades e
garantias. Para VASCO PEREIRA DA SILVA o legislador procedeu da melhor maneira
ao ter agrupado estes processos numa categoria especial, contudo pensa que esse
poderia ter sido mais arrojado na sua regulação. Não se pode deixar de
assinalar que esta caracterização como processos urgentes é original do Direito
Português.
Neste
trabalho vamos incidir sobre a intimação para protecção de direitos, liberdades
e garantias e analisar a sua subsidiariedade relativamente aos processos
cautelares.
2. Intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias
A
intimação é um dos processos urgentes que impõe à Administração a realização ou
abstenção de operações materiais ou mesmo de actos administrativos, podendo ser
oposto também a particulares.
Do
Artigo 4º/nº1 alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(ETAF) resulta a competência dos tribunais administrativos para apreciação dos
litígios que tenham por objecto a tutela de direitos fundamentais.
Já
o artigo 20º/nº5 da Constituição da República Portuguesa impõe a existência de
um meio de defesa de direitos, liberdades a garantias. Esta intimação veio
concretizar essa garantia constitucional, reconhecendo-se a importância de uma
protecção acrescida dos direitos, liberdades e garantias.
Chegados
a este ponto, pergunta-se a que direitos se podem aplicar esta intimação. A
Doutrina tende a divergir. CARLA AMADO GOMES entende que em face da cláusula de
extensão de regime constante do art.17º CRP, estão também abrangidos os
direitos fundamentais de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias
mas apenas os inseridos no texto constitucional[1].
Já para VASCO PEREIRA DA SILVA, e concordando com este, para além dos direitos,
liberdades e garantias previstos na Constituição, estão também abrangidos por
este processo os direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias, como, por exemplo, o direito de propriedade.
Assim,
poder-se-ia pensar que esta intimação funciona, na prática, como um recurso de
amparo visível no direito espanhol e brasileiro e que não existe no direito
português[2].
Mas a resposta é negativa. Em primeiro lugar, o recurso de amparo, que é a
possibilidade do particular recorrer directamente para o Tribunal
Constitucional, aplica-se a todos e quaisquer processos e, por isso, não tem as
limitações que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias
contém.
A
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, que está regulada
nos artigos 109º a 111º do CPTA, é um processo principal, urgente, que faz uma apreciação
imediata de mérito definitiva, não se compadecendo com uma mera apreciação
provisória.
O processo de intimação para a protecção de
direitos, liberdades e garantias tem como objectivo tutelar a urgência. A urgência
que está na essência da providências cautelares é de natureza do periculum in
mora, enquanto que na intimação para a protecção de Direitos, Liberdades e
Garantias, está em causa uma urgência intimamente ligada a um dano autónomo
sobre posições jurídicas subjectivas[3].
Tem
legitimidade activa para esta intimação quem alegar e provar que é titular de
um direito, liberdade ou garantia que possa ser afectado.
Já
quanto à tramitação: esta é bastante célere e simples, apesar de se pretender
uma decisão de fundo. Há um procedimento para processo simples e de urgência
normal no artigo 110º/ nº1 e 2, outro para processos complexos de urgência
normal no nº3 e um terceiro no artigo 111º para situações de especial urgência.
No
artigo 109º é possível detectar os requisitos de procedência de um processo de
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
Artigo 109.º
Pressupostos
1 - A intimação
para protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a
célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção
de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o
exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas
circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar,
segundo o disposto no artigo 131º[4].
Assim,
ao analisar este artigo, deparamo-nos logo com a exigência de celeridade, da indispensabilidade de uma decisão
definitiva proferida em tempo útil,
não sendo possível recorrer-se ao
decretamento de uma providência cautelar.
3. Subsidariedade da intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias
O
artigo 109º consagra expressamente a subsidiariedade da intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias relativamente às providências
cautelares do artigo 131º.
Como
articular, então, estes dois processos que respeitam ao mesmo objecto?
Tal
como o artigo 109º dispõe, este mecanismo só pode ser utilizado quando a
emissão urgente de uma decisão de fundo do processo é indispensável para a
protecção de um direito, liberdade e garantia e não é possível ou suficiente o decretamento
de uma providência cautelar.
Pergunta-se, desde logo, qual a extensão desta
subsidiariedade, isto é, se a subsidiariedade é relativa apenas às providências
cautelares enunciadas no artigo 131º ou se é também subsidiária relativamente a
todas as providências cautelares específica de protecção sumária de direitos,
liberdades e garantias. CARLA AMADO GOMES e a maioria da Doutrina entendem que
o legislador pretendeu abranger qualquer providência cautelar de natureza
genérica e também as específicas de protecção de direitos, liberdades e
garantias, consagrando, assim, uma subsidiariedade mais ampla do que a que a
norma estipula.
Para
ser possível usar-se desta intimação, diz-nos o artigo 109º CPTA que a
providência cautelar seja impossível ou insuficiente para proteger eficazmente
os direitos, as liberdades e as garantias. Não releva aqui o prazo da demora de
cada uma já que é o mesmo: 48 horas[5].
A
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é um processo
principal e, ao contrário das providências, decide o litígio. É requisito deste
mecanismo que haja uma situação de urgência que não seja compatível com a demora
associada a um processo principal.
Já
as providências cautelares são um meio para defesa de um direito que se
pretende que seja tutelado em tempo útil mas não há uma decisão definitiva.
Quando o autor dá início ao processo principal, pode requerer conjuntamente que
o tribunal decrete uma providência para evitar que se constitua uma situação
irreversível durante a pendência da acção principal que inutilizaria esta
última. É o requisito do periculum in
mora. Pode dizer-se que a providência cautelar pretende assegurar a
utilidade da sentença a proferir num processo declarativo[6]. A
providência cautelar é instrumental ao
processo principal pois para ser decretada uma providência cautelar, tem de
haver um processo principal a correr simultaneamente. Daqui se retira que a
providência cautelar não tem autonomia.
As
providências cautelares poderão ser conservatórias, ou seja, o autor quer
conservar um direito em perigo ou manter a situação tal como ela está ou
poderão ser antecipatórias, o interessado pretende a adopção de uma medida que
pode ser um acto administrativo ou não. É notório o carácter de urgência das
medidas cautelares, no entanto, estas não regulam o litígio de modo definitivo
podendo a acção principal alterar e substituir a decisão tomada na providência
cautelar. Está aqui subjacente o carácter provisório
destas.
O
juiz para decidir se concede a providência, procede a um juízo sumário da situação, pois o carácter de
urgência não permite uma avaliação demorada já que isso obstaria ao efeito útil
subjacente à providência.
O
artigo 131º, que o presente artigo em análise refere, tem em vista situações
que requeiram uma concessão imediata de uma providência cautelar, sem prejuízo
da decisão que venha a ser tomada no processo principal após a apresentação do
requerimento. O tribunal concede imediatamente a providência imediatamente após
a apresentação do pedido. Destina-se, nas palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, a
evitar o periculum in mora do próprio
processo cautelar. O direito do particular fica protegido com a providência até
que se decida sobre a questão no processo principal, pretendendo-se apenas que
a providência seja decretada com a maior brevidade. Tal como todas as
providências, não decide o conflito.
Apesar
de ambos os processos serem simplificados em termos de tramitação processual, foi
a impossibilidade de decidir a título definitivo a questão de fundo que
conduziu o legislador a prever processos principais urgentes que pudessem
colmatar as limitações inerentes à tutela cautelar.
O
particular pode estar numa situação em que, apesar de preencher os requisitos
inerentes à proclamação de uma providência cautelar, essa não é suficiente para
a tutela do seu direito. Os prejuízos decorrentes de uma demora processual que
a providência cautelar pretende evitar, continuariam a afectar o autor mesmo
que fosse decretada a providência.
Pode
dizer-se que a tutela cautelar é insuficiente sempre que o interessado vise a
obtenção de efeitos que só poderão advir da sentença final. Para ISABEL FONSECA
a insuficiência ou impossibilidade está nas situações em que o juiz cautelar é
forçado a intrometer-se na questão controvertida alvo do processo principal já
que isso originaria uma situação de ilegitimidade por parte do juiz que em sede
de concessão de uma providência não tem competência para decidir a título
definitivo[7].
Quanto
à impossibilidade do decretamento da providência cautelar, esta prende-se com a
falta de preenchimento dos requisitos por o autor não conseguir provar a lesão
eminente e irreversível do direito, como por exemplo no caso de não ter ao seu
dispor um documento que necessite.
Exige-se
ainda que, para além de não ser suficiente a providência, o requerente não tenha
ao seu dispor qualquer outro meio processual que permita a defesa dos seus direitos
como o habeas corpus, intimação para prestação de informações, consulta de
processos ou passagem de certidões.
Ou
seja, a controversa incide em saber se a solução para a questão basta-se com um
juízo provisório ou se é necessário uma análise do fundo da questão e
subsequentemente uma decisão definitiva.
A
resposta a esta questão prende-se com a importância do factor tempo na
protecção do direito: quando o particular não tem tempo para aguardar que o
juiz principal se pronuncie sob pena de perder o direito.
A
intimação só se pode aplicar para casos em que a tutela jurisdicional efectiva
reclame uma actuação mais rápida, casos de tutela muito urgente que têm de ser
tutelados na hora sob pena de se perder o direito. Não basta dizer que as
providências cautelares do art.112º não são suficientes para a tutela dos
direitos, é preciso mostrar que não pode tutelar em tempo útil os direitos dos
cidadãos. Só se pode recorrer à intimação se o requerente provar que não
consegue, com o decretamento de uma providência, um efeito útil, demonstrando
assim a indispensabilidade da intimação.
Se
o direito possa ser repetido por não estar sujeito a nenhum prazo, deve-se
também preferir a tutela cautelar.
Por
exemplo: o caso de uma manifestação por ocasião da deslocação de uma
personalidade estrangeira a Portugal que foi ilegalmente proibida. Se for
concedida uma providência cautelar que permita a manifestação, o processo
principal será supervenientemente inútil pois quando fosse decidir o fundo da
questão já a manifestação teria passado.
Passa-se
o mesmo nos casos, muito frequentes na nossa Jurisprudência, de alunos a quem
foi negado o acesso ao ensino superior e que intentam uma acção Se for
decretada uma providência cautelar que permita que o aluno se inscreva no curso
que quer mas depois o processo principal revogar a decisão, tal causará danos
ao aluno que já se encontra a frequentar as aulas[8].
Por
isso, como se percebe por estes exemplos, é inquestionavelmente necessário uma
tutela que avalie de imediato a situação, que pondere os interesses em jogo e
decida definitivamente.
Não
se verificando os pressupostos da intimação porque o requerente não conseguiu
provar a indispensabilidade da intimação ou porque o direito pode ser repetido
não ficando por isso prejudicado com uma simples providência cautelar, defende
CARLA AMADO GOMES E MÁRIO AROSO DE ALMEIDA que o juiz deve, não absolver da
instância, mas sim proceder à convolação do processo de intimação para
providência decretando-se provisoriamente uma providência cautelar adequada[9]. A
autora citada também não vê motivo para não ser possível o contrário, isto é,
transformar um procedimento cautelar em intimação.
Mas
para a convolação de intimação em providência cautelar ser possível, é
necessário que os requisitos da providência estejam preenchidos. No Acórdão do
STA[10],
o tribunal declarou que o caso do requerente pretender que não lhe sejam
atribuídas funções ao Sábado para poder cumprir obrigações religiosas não é um
caso em que seja necessário uma intimação para protecção de direitos,
liberdades e garantias e aconselhou a autora a adoptar uma acção administrativa
especial de condenação à prática do acto devido. A autora pediu
subsidiariamente que, caso a intimação não fosse aceite, se convertesse em
providência cautelar. Quanto a este pedido, o tribunal afirma a possibilidade
de convolação mas não a admite no caso concreto por não estar verificada a
alínea a) do art.120º CPTA e por não ficar a recorrente com prejuízos pelo
facto de não poder cumprir as suas obrigações religiosas ao sabádo.
Apesar de serem um contributo de peso para a
complementação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, os processos
urgentes devem ser vistos como uma excepção, tendo sempre que possível de se
dar primazia aos processos urgentes. As formas de acção administrativa comum e
especial correspondem ao modelo processual que deve ser aplicado na
generalidade dos casos pois na tramitação célere que caracteriza os processos
urgentes acaba-se sempre por sacrificar interesses relevantes num processo como
o contraditório e a prova.
Carla
Silva, nº 19532
Bibliografia:
ALMEIDA,
Mário Aroso, Manual de Processo
Administrativo, Almedina, 2012; O
Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2007;
ANDRADE,
José Vieira, A justiça administrativa :
lições, Coimbra: Almedina, 2009
CLAUDINO,
Marco Henriques, O regime jurídico dos
direitos sociais : as providências cautelares administrativas e a garantia dos
direitos sociais, Lisboa 2009
FIRMINO,
Ana Sofia de Sousa, A intimação para a
protecção de direitos, liberdades e garantias, Lisboa, 2004
FONSECA,
Isabel Celeste, Dos novos processos
urgentes no contencioso administrativo : função e estrutura,
Lisboa: Lex 2004.
GOMES,
Carla Amado, “Pretexto, contexto e texto
da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias” in Estudos
em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. V, Almedina,
Coimbra, 2003
SILVA,
Liliana Cunha, Intimação para a protecção
de direitos, liberdades e garantias : da inovação à aplicabilidade, Lisboa,
2007
[1] GOMES,
Carla Amado, “Pretexto, contexto e texto
da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias” in Estudos
em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. V, Almedina,
Coimbra, 2003
[2][2][2]
CARLA AMADO GOMES vê a intimação para protecção de direitos, liberdades e
garantias como a forma escolhida pelo legislador para colmatar a
recorrentemente denunciada ausência no ordenamento português de uma acção de
amparo. Ob. Cit.
[3] SILVA,
Liliana Cunha, Intimação para a protecção
de direitos, liberdades e garantias : da inovação à aplicabilidade,
Lisboa, 2007
[4][4]
Itálicos e negrito nossos.
[5][5]
Artigo 131º/nº3 e 111º/nº1 CPTA
[6] ALMEIDA,
Mário Aroso, “Manual de Processo
Administrativo”, Almedina, 2012
[7] FONSECA,
Isabel Celeste, Dos novos processos
urgentes no contencioso administrativo : função e estrutura,
Lisboa: Lex 2004.
[9]
Recorde-se aqui o famoso caso “Barco do Aborto” a propósito de uma intimação
para permitir que um Barco que procedia à interrupção voluntária da gravidez
entrasse em águas portuguesas. O tribunal indeferiu a intimação por considerar
não ser indispensável a autorização da entrada do barco no porto da Figueira da
Foz para assegurar os direitos fundamentais alegados pelos autores.
[10] Acórdão
STA de 14-12-2011
Sem comentários:
Enviar um comentário