Processo n.º 7081/03.6TBVFR.P1
I. Ao abrigo do arts. 219º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa, e 85º, n.º 2, do Código de Processo dos
Tribunais Administrativos (doravante, CPTA), vem o Ministério Público
pronunciar-se sobre o mérito da presente causa.
II. As partes celebraram, no dia 1
de Setembro de 2011, um contrato de aquisição de duzentas e sessenta viaturas Pão Duro, convencionando a entrega das mesmas em cinco parcelas. A
contraprestação consistia no pagamento de duzentos e sessenta milhões de euros
(um milhão e quinhentos mil euros por unidade).
Durante a execução do contrato, houve
atrasos no cumprimento da primeira e segunda parcela, sendo que as partes
apresentam motivos discordantes para os mesmos, culpando, cada uma delas, a contraparte do contrato.
A situação de cumprimento da primeira parcela é controversa, visto que embora no contrato firmado entre ambas as partes a data acordada seja a de 30 de Setembro de 2011, afirma a Autora (na sua petição inicial) que o Réu incorreu em mora, visto que não se encontrar disponível para receber as mesmas, em data diferente da acordada; pelo que não poderá proceder a responsabilidade do credor por mora, nessa situação.
No dia 1 de
Outubro de 2012, foi a Autora notificada da resolução do contrato pelo
Ministério da Defesa, através do referido ato de resolução. Alega o Réu que, a
juntar ao incumprimento definitivo do contrato por facto imputável ao cocontratante,
observa-se na conjuntura internacional uma maior necessidade de armamento
marítimo nas Forças Armadas nacionais, justificando assim um redireccionamento
de capital devido a excecional interesse publico.
III. O respeito pelas normas constantes de convenções internacionais ratificadas pelo Estado Português resulta da própria Constituição da República, decorrendo do seu art. 8º. Ora, o pedido formulado pela Organização das Nações Unidas corresponde a uma solicitação de apoio prevista no artigo 43º, n.º 1, da Carta das Nações Unidas.
Assim
sendo,
o vício no cumprimento das obrigações previstas no contrato, feita por
qualquer
das partes, corresponde a uma violação de um compromisso do Estado
Português
para com uma organização internacional. Tal situação, cuja consequência é
uma
possível sanção ao Estado Português (a que este dificilmente conseguiria
responder, tendo em conta a sua difícil situação financeira), torna
premente a intervenção do Ministério Público (cf. arts. 9º, n.º 2, e 85º, n.º 2, do CPTA).
IV. Ao praticar um ato no qual se decide a contratar, o Estado Português constitui-se no dever de adjudicar a proposta que melhor sirva o interesse público, ao qual corresponde, "simetricamente", um "direito à adjudicação e à celebração do contrato" (cf. FERREIRA, Rui Cardona (2011), Indemnização do interesse contratual positivo e perda de chance (em especial, na contratação pública), p. 91) da parte do cocontratante.
De acordo com o Código dos Contratos Públicos (adiante CCP), o contrato celebrado entre o Estado português e a sociedade Estamos nas lonas, S.A. é um contrato público, no qual é parte o Ministro da Defesa Nacional, regulando-se o seu procedimento de formação por normas de direito público; e sendo que a prestação do cocontratante pode condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público. Do ponto de vista do regime aplicável à sua execução, estamos perante um contrato administrativo, qualificação que decorre, desde logo, da submissão dos contratos de aquisição de bens móveis ao regime de contratos administrativos, pelo mesmo CCP.
V. Daqui se conclui pela aplicação do regime substantivo da Parte III do CCP, o que releva para o efeito de tomar como procedente a resolução operada mediante ato praticado pelo Ministro da Defesa Nacional, enquanto poder do contraente público. Assim, o efeito gerado com o ato administrativo de resolução do contrato é legítimo, à luz do regime do contrato administrativo e dos poderes de autoridade da Administração, que se deverão harmonizar com a garantia do respeito pelos direitos e interesses legítimos do cocontrantante.
Fundamenta-o, desde logo, o disposto do art. 302º CCP, als. d), na qual se estabelece a faculdade do contraente público aplicar
as sanções previstas para a inexecução do contrato e e), prevendo a resolução unilateral do contrato; poder esse que
assume a natureza de ato administrativo, como resulta do disposto no art. 307º,
n.º 2, numa lógica de coincidência com a
competência material de resolução. Acrescente-se que a formação desse ato administrativo não se sujeita ao regime da
marcha do procedimento estabelecido pelo Código do Procedimento Administrativo, salvo no que respeita à audiência dos interessados (cf. GONÇALVES, Pedro (2007), A relação jurídica fundada em contrato
administrativo, in Cadernos de
justiça administrativa, n.º 64, p. 43).
VI. Tendo em conta as alegações do Réu
na contestação (v. ponto I), considera o Ministério Público que os motivos
invocados são fundamento para a resolução do contrato, tendo em conta a
situação de incumprimento infinitivo por parte da Autora.
Para esse entendimento, contribuiu o não cumprimento, de forma culposa, das obrigações às quais se vinculou a Autora, já que é convicção do Ministério Público, que tal foi feito por manifesta falta de diligência no cumprimento pontual das prestações.
Para esse entendimento, contribuiu o não cumprimento, de forma culposa, das obrigações às quais se vinculou a Autora, já que é convicção do Ministério Público, que tal foi feito por manifesta falta de diligência no cumprimento pontual das prestações.
Fundado no
incumprimento definitivo, entende o Ministério Público que o contraente público
tem legitimidade para aplicar as sanções previstas para a inexecução do
contrato, como resulta do ato de resolução praticado. Entende-se, pois, ser esse ato válido à luz do regime jurídico aplicável à
execução do contrato, subsumindo-se à figura da resolução sancionatória,
prevista no art. 333º CCP, als. a) e
b) .
IX. Mesmo que da matéria de facto não retire o Meritíssimo Juiz certeza suficiente do grau de culpa (ou mesmo intenção) do
co-contratante privado no incumprimento (pontual) das obrigações emergentes do
contrato ao qual se vinculou, o contrato será sempre resolúvel ao abrigo dos poderes do contraente público, fundado em razões de interesse público, o que não exclui o pagamento de justa
indemnização, como decorre do art. 334º do CCP.
O interesse público é fundamento de modificação das cláusulas contratuais – nesse sentido, os arts. 311º, n.º 2 e 312º, al. b)) CCP –, como da própria resolução do contrato – art. 334º CCP –, tendo por base uma nova ponderação das circunstâncias existentes e da reformulação do interesse coletivo.
Tal
resolução terá lugar, sempre que se entender que um determinado contrato deixou
de ser necessário ou passou a ser pernicioso para o interesse público e adequação do contrato à mutação ocorrida no
interesse público, não pode ser obtida através de simples modificação
unilateral (cf. SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de (2009), Direito administrativo geral, tomo III,
2ª edição, p. 149).
X. Ao concluir pela validade do ato resolutivo, praticado pelo Ministro da Defesa Nacional, entende o Ministério Público haver necessidade de reposição de equilíbrio financeiro do contrato, mesmo que não conste da petição da Autora referência a esse pedido. Contudo, tendo em conta que a Autora ficou com veículos em stock, o que indicia uma frustração de expetativas geradas com a celebração do contrato e a consequente construção das viaturas, considera o Ministério Público que da resolução advirá uma perturbação do equilíbrio financeiro do contrato. Tal reposição será atingida com indemnização a conceder pelo Réu, limitada ao interesse contratual negativo.
XI. Tem o Ministério
Público a convicção de que o interesse público não pode nunca ser visto como
que uma mera soma dos interesses dos particulares se tratasse, ainda que na sua
essência não deva ser diferente do interesse da coletividade. Uma vez definido pela lei o interesse público e
consequentemente atribuídas à Administração as prerrogativas de que se pode
fazer valer, deve o primeiro constituir motivo determinante de qualquer ato da
Administração. Tem ao abrigo dos poderes que lhe são constitucionalmente
conferidos.
O Ministério Público, perante ponderação do ora
vertido não julga procedente a pretensão da Estamos
nas lonas, S.A. Sobre o pedido de reconvenção formulado pelo Réu, os factos
apresentados indicam que a Autora incorreu em mora. Dessa forma,
o Ministério Público emite parecer no sentido de ser dado provimento ao pedido
reconvencional formulado pelo Réu.
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