sábado, 24 de novembro de 2012

Tutela Cautelar. Em especial, o periculum in mora.


A tutela cautelar constitui uma das principais inovações do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) e da reforma do contencioso administrativo.

Antes da reforma podia fazer-se uso das providências cautelares não especificadas do Código de Processo Civil, já que o CPTA no seu art. 1º dispõe que o direito processual civil tem natureza supletiva. No entanto, não se fez total uso dessa possibilidade, assim FREITAS DO AMARAL: “para todos os efeitos, pode dizer-se que no nosso direito processual administrativo anterior não existia a figura genérica das providências cautelares, havendo apenas a figura específica a que inicialmente se chamava “suspensão de executoriedade do ato administrativo”, e depois; (...) “suspensão da eficácia do ato administrativo[1].

Atualmente existe um maior número de providências cautelares administrativas, desde logo o legislador no art. 112º/2 do CPTA permite que se recorra, mutatis mutandis, às providências constantes no CPC, como por exemplo, a suspensão das deliberações sociais, o arresto, o arrolamento e o embargo de obra nova. Além destas, o artigo elenca ainda providências tipicamente administrativas, algumas referenciadas nos arts. 128º e seguintes.

As providências cautelares são procedimentos especiais e urgentes. Especiais porque não se reconduzem nem à ação administrativa comum, nem à especial. E urgentes porque tanto o art. 35º, como o 36º/1e) CPTA o estabelecem, correndo os prazos mesmo em férias. No entender de VIEIRA DE ANDRADE “os processos cautelares visam especificamente garantir o tempo necessário para fazer Justiça”, dividindo-se, segundo alguns autores, em providências antecipatórias “são aquelas que visam obter, antes que o dano aconteça, um bem a que o particular tenha direito” e providências conservatórias “são aquelas que se destinam a reter, na posse ou na titularidade do particular, um direito a um bem de que ele já disponha, mas que está ameaçado de perder”[2].

Pressupostos para decretar as providências cautelares:

  • Legitimidade, art. 112º CPTA.
  • Fumus boni iuris, ou a “aparência de bom direito”, funciona como base determinante da concessão da providência cautelar. Assume grande relevância nos casos em que seja manifesta a procedência da lide principal, assim o juiz pode decretar a providência independentemente do receio do facto consumado, art. 120º/1a) CPTA. Já nos casos de incerteza quanto à ilegalidade do ato ou ao direito do particular, o legislador optou por uma graduação, não se bastando com a aparência do direito e exigindo também os restantes requisitos, desde logo o periculum in mora.
  • Summaria cognitio, ou o carácter sumário do conhecimento da questão pelo juiz. É um pressuposto que se justifica pelo carácter urgente da medida. Assim, por definição há lugar a contraditório, art. 117º CPTA, no entanto, em casos “de especial urgência” admite-se um decretamento provisório imediato nos termos no art. 131º, CPTA.
  • Periculum in mora, ou o receio da constituição de facto consumado.
  • Ponderação de todos os interesses, confere ao juiz a possibilidade de, ainda que se encontrem preenchidos todos os restantes pressupostos, não dar provimento à medida cautelar requerida. Cabe neste caso a situação em que o prejuízo para o requerido seja superior ao que a providência pretende evitar.
  • Necessidade, nos termos do art. 120º/3 CPTA, existe uma derrogação expressa do princípio fundamental do pedido. Esta derrogação tem como objetivo assegurar que a medida decretada é a mais adequada ao caso. Ainda o nº 3 do art. 120º estabelece que as providências se devem consignar ao indispensável para evitar a lesão dos interesses em causa.

O presente trabalho irá visar apenas a análise do pressuposto periculum in mora.

O conceito de providência cautelar engloba em si a utilidade da sentença, ist. é, pressupõe a existência de um perigo de inutilidade, absoluta ou relativa, resultante do decurso do tempo  e da adoção ou abstenção de uma decisão administrativa, a este perigo de inutilidade dá-se o nome de periculum in mora. Que constitui assim, a origem da existência da tutela cautelar, e traduz-se “no fundado receio de que, quando o processo principal chegue ao fim e sobre ele venha a ser proferida uma decisão, essa decisão já não venha a tempo de dar a resposta adequada às situações jurídicas envolvidas no litígio, seja porque (a) a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão totalmente inútil; seja, pelo menos, porque (b) essa evolução conduziu à produção de danos dificilmente reparáveis[3].
O juiz deve fazer um juízo de prognose, colocando-se na posição de uma hipotética sentença, para se assegurar se há ou não razões para a sentença em questão ser considerada inútil. Nas palavras de ISABEL FONSECA, será um “juízo próximo da certeza”, para averiguar se tal sentença vê os seus efeitos desprovidos de utilidade, por se ter verificado uma situação de fato incompatível com ela ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para o particular.
O periculum in mora pode traduzir-se em dois tipos de prejuízos, o de infrutuosidade e o de retardamento das sentenças a proferir nos processos principais. E é em função destes dois tipos, que são configuradas as pretensões-urgentes.
O art. 120º do CPTA estabelece este requisito ao prever que “quando haja fundado receio da constituição de uma situação de fato consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal”. Fazendo uma interpretação literal do preceito (recorrendo ao disjuntivo ou) resulta claramente que a relação entre estas duas situações é alternativa.

Porém coloca-se a questão de saber qual a teleologia da norma, se haverá aqui uma “independência recíproca destes dois conceitos”[4]. Basta para a admissibilidade da providência cautelar, uma eventual constituição de uma situação de facto consumado, sem que haja produção de prejuízos de difícil reparação? E o oposto, é possível considerar que a existência de prejuízos de difícil reparação prescinde da constituição de uma situação de facto consumado?

Relativamente à primeira questão, não parece fácil sustentar que o perigo de constituição de uma situação de facto seja suficiente, necessitando este elemento, de prejuízos de difícil reparação para o requerente. Concluindo assim, quanto à segunda questão, que para se verificar o requisito de periculum in mora, basta o fundado receio de produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses[5] que o requerente visa prosseguir, sem necessidade de facto consumado.

O que serão, então, “prejuízos de difícil reparação”? Tradicionalmente consagrado no CPC (art. 381º), não é um elemento constitutivo da tutela cautelar, mas um juízo para o legislador positivar o periculum in mora.
Numa aceção corrente, tem-se por reparação, repor a situação prévia ao dano. Numa situação de tutela cautelar, importa repor os interesses do lesado, ou seja, este deve ser colocado na mesma situação (ou equivalente) à que teria se não tivesse ocorrido a lesão na sua esfera jurídica. Para tanto, deve o julgador proceder a um juízo de prognose ou de probabilidade das razões que determinam o receio de inutilidade da sentença a proferir na lide principal, pelo perigo da constituição de uma situação de facto consumado ou de se produzirem prejuízos de difícil reparação. Por exemplo, sendo a providência recusada, tornar-se impossível ou difícil, proceder à reintegração da situação conforme à legalidade. VIEIRA DE ANDRADE esvazia o sentido da “ideia antiga[6] e, defende que não se reconduz esta dificuldade de reparação à possibilidade de avaliação ou quantificação pecuniária dos danos, mas antes à dificuldade de reintegração da situação que deveria existir caso o ato administrativo não tivesse sido praticado ou executado.
Assim, contrariamente ao entendimento anterior à reforma do contencioso administrativo, não procede à luz do atual regime, para afastar a dificuldade de reparação desses prejuízos, a exigência da irreparabilidade dos danos ou o argumento de os prejuízos serem suscetíveis de avaliação pecuniária ou passíveis de indemnização. Quando seja possível uma reconstituição da situação de facto, in natura, essa deve operar. Nem sempre tal é possível, e aí surge a tutela indemnizatória pelos danos causados.

Em sede de providências cautelares o juízo de prognose de averiguação de um possível prejuízo irreparável é feito a priori (lógica de prevenção), pelo que se exige uma reparação integral, pois como defende RITA LYNCE DE FARIA[7], não é “razoável impor a alguém, que é titular de um direito que se encontra na iminência de ser violado, que suporte essa lesão, sendo depois indemnizado por ela, já que o requerido tem possibilidades económicas de custear tal indemnização”.

Relativamente ao “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado”, seria forçoso formular um juízo no sentido de a demora do processo principal acarretar na esfera jurídica da requerente uma situação de irreparabilidade dos danos, na ótica de uma reintegração específica, ou por se ter consumado, com a demora da decisão, uma situação de facto incompatível com a sentença a proferir na lide principal, por forma a torná-la inútil, em caso de procedência. Ou seja, verifica-se o pressuposto do fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado quando, à data em que a sentença da causa principal é prolatada, não seja mais possível a reintegração no plano dos factos, da situação conforme à legalidade que deveria existir se não fosse praticado tal decisão ilegal.

Em suma, do ponto de vista do periculum in mora, as providências cautelares devem ser, portanto, atribuídas em dois tipos de situações que a lei apresenta, em alternativa:

1.                  O primeiro existe quando os factos con­cre­­tos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio de que, se a providência for re­cu­sada, se tornará depois impossível, no ca­so de o processo prin­ci­pal vir a ser jul­gado procedente, proceder à rein­te­gra­ção, no pla­no dos factos, da situa­ção con­forme à legalidade. É este o único sentido a atribuir à expressão “facto con­su­mado”. À situação tradicional do “prejuízo de difícil reparação”, é, assim, acrescentada, uma ou­tra, que surge colocada em alternativa e faz menção ao “fundado receio da constituição de uma si­tua­ção de facto consumado”.
Da previsão expressa deste primeiro tipo de situação re­sulta a clara rejeição, a critérios fundados na sus­ceptibilidade ou insuscep­tibilidade da avaliação pecuniária dos danos, pelo seu carácter variável, aleatório ou difuso, em favor do entendimento se­gun­do o qual existe periculum in mora sempre que os factos con­­cre­tos alegados pelo requerente per­­­mi­tam perspetivar a cria­ção de uma si­tua­­­­ção de im­pos­si­bi­li­da­de da rein­te­gra­ção da sua esfera jurídica, no ca­so da lide prin­cipal vir a ser julgado procedente.

2.                  As providências devem também ser concedidas, sempre pressupondo que não falhem os demais requisitos de que depende a respetiva concessão, quando, embora não seja de prever que a rein­te­gra­ção, no plano dos factos, da situa­ção conforme à legalidade se tornará impossível, os factos con­cre­­tos alegados pelo re­querente inspirem o fundado receio de que, se a providência for re­cu­sada, essa rein­te­gra­ção no plano dos factos será difícil, por já não ser possível evitar a ocorrência de danos  gravosos para o particular.

Cumpre agora analisar a aferição do periculum in mora por parte do juiz. O CPTA limita-se a exigir que haja “fundado receio” da constituição de situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação, não apontando na direção da certeza ou não por parte do julgador.

Para ABRANTES GERALDES, releva o receio “apoiado em factos que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Não bastam, pois, simples dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ou precipitados assentes numa apreciação ligeira da realidade (…) ”.[8] Autores como MARIA FERNANDA MAÇAS, ISABEL FONSECA[9] e ANTUNES VARELA, bem como jurisprudência de tribunais administrativos, sustentam que o grau de convicção do juiz deve ser de certeza quanto ao conhecimento do periculum in mora.

Parece mais acertado um juízo de “ mera probabilidade ou verosimilhança”, como sustenta ALBERTO DOS REIS[10], na esteira do autor italiano, CALAMANDREI, que escreve: «Todavia, porque um conhecimento completo e profundo sobre o requisito do perigo poderia demandar uma investigação incompatível com a urgência da providência, a apreciação do perigo pode realizar-se de maneiras diversas, consoante os fins especiais a que cada tipo de medida cautelar se destina». Em minha opinião, correto, e tendo como base o argumento da summaria cognitio relativamente ao direito, uma vez que o conhecimento exaustivo traria entraves, tornando o processo tão moroso como a lide principal, algo que parece uma incongruência face à urgência que caracteriza a ação cautelar.

 

Um caso de jurisprudência

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, processo 09143/12 de 18/10/2012

Cabia recurso de uma decisão anteriormente julgada pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, sentença, essa que deu como não verificado o requisito do periculum in mora. O argumento invocado prendeu-se com o facto do indeferimento do processo cautelar não criar uma situação de facto consumado e que os danos invocados pela Recorrente não se enquadravam no disposto no artigo 120° do CPTA.

A sentença sob recurso aborda a questão do ónus probatório, que “recai sobre o requerente, cabendo-lhe alegar e provar factos, donde resulte a verificação do “fundado receio” e da verificação de prejuízos de difícil reparação”.

O requisito do periculum encontrar-se-á preenchido sempre que exista fundado receio que quando o processo principal termine, a decisão que vier a ser proferida já não venha a tempo de dar resposta às situações jurídicas carecidas de tutela. In casu, importava ao julgador, através “de um juízo de prognose ou de probabilidade das razões”, aferir da existência de um perigo de inutilidade da decisão a proferir no processo principal, ainda que meramente parcial, pela constituição de uma situação de facto consumado ou pelo receio de se produzirem prejuízos de difícil reparação.

Adita ainda o acórdão, que não ser um perigo qualquer. Apenas se valoram “perigos qualificados e que derivem ou decorram da delonga processual”. Os prejuízos de difícil reparação serão os que “advirão do não decretamento da pretensão cautelar requerida e que, pela sua irreversibilidade, tornam difícil a reposição da situação anterior à lesão, gerando danos que, sendo suscetíveis de quantificação pecuniária, a sua compensação se revela insuficiente para repor ou reintegrar a esfera jurídica da requerente”. Na consideração dos prejuízos, devem ser atendidos todos os prejuízos relevantes para os interesses do requerente, independentemente de respeitarem, ou não, a interesses públicos ou individuais.

Também o Supremo Tribunal Administrativo se pronunciou sobre o que deve ser entendido como “facto consumado”, nomeadamente no Acórdão de 02/12/2009, processo 0438/09. Assim, “aceção lata, todo o facto acontecido consuma-se «qua tale», dada a irreversibilidade do tempo; mas não é obviamente esse, o sentido da expressão da lei. Na economia do preceito, o «facto» será havido como «consumado» por referência ao fim a que se inclina a lide principal, de que o meio cautelar depende; e isto significa que só ocorre uma «situação de facto consumado» quando, a não se deferir a providência, o estado de coisas que a ação quer influenciar ganhará entretanto a irreversível estabilidade inerente ao que já está terminado ou acabado – ficando tal ação inutilizada «ex ante» ”.


BIBLIOGRAFIA

Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2010

ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2004

Amaral, Diogo Freitas do, As providências cautelares no novo contencioso administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 43, 2004

AMORIM, TIAGO MEIRELES DE, Apontamentos sobre as condições de procedência das providências cautelares no novo processo administrativo, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 63 - Vol. I / II - Abr. 2003

Andrade, Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa: Lições, 11ª edição, Almedina, 2011

FARIA, RITA LYNCE DE, A função instrumental da tutela cautelar não especificada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2003

FONSECA, ISABEL CELESTE, Introdução ao Estudo Sistemático da Tutela Cautelar no Processo Administrativo, Almedina, 2002

GERALDES, ABRANTES, in: “Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 3.ª edição, Almedina, 1998

OLIVEIRA, MÁRIO ESTEVES DE; OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES DE, Código de Processo nos Tribunais Administrativos; Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotado, Volume I, Almedina, 2004

REIS, ALBERTO DOS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2012

Inês Vieira
nº 19640




[1] Diogo Freitas do Amaral, As providências cautelares no novo contencioso administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 43, 2004, p. 7
[2] José Carlos vieira de andrade, A Justiça Administrativa: Lições, 11ª edição, Coimbra, Almedina, 2011, p.315
[3] Cfr., neste sentido, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, inComentário ao CPTA”, 3ª edição revista, 2010, p. 804
[4] Para MÁRIO OROSO DE ALMEIDA, “não pode deixar de ser encarada como um acrescento que vem complementar” a segunda: “para além das situações em que, anteriormente, se poderia admitir o risco da “produção de prejuízos de difícil reparação”, as providências passam a poder ser também concedidas quando exista o “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado”, em O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, p. 258).
[5] De ressalvar que o processo administrativo jurisdicional, não tutela apenas os direitos e expectativas legítimas dos cidadãos, mas igualmente o interesse público.
[6] Como refere VIEIRA DE ANDRADE, inA Justiça Administrativa (Lições) ”, 5ª edição, p. 299.
[7] Cfr. RITA LYNCE DE FARIA, A função instrumental da tutela cautelar não especificada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2003, p. 55 e ss.).
[8] Cfr. ABRANTES GERALDES, in: “Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 3.ª ed., p. 103.
[9] ”, ISABEL CELESTE FONSECA, Introdução ao Estudo Sistemático da Tutela Cautelar no Processo Administrativo, p. 101.
[10] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 623.

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