Considerações
Preliminares
O recurso hierárquico consiste no pedido de reapreciação do acto administrativo dirigido ao superior hierárquico do seu autor (art. 166º CPA). O recurso hierárquico pode fundar tanto na ilegalidade como no mérito do comportamento administrativo (art. 159º e 167º nº2 CPA). O recurso hierárquico necessário é assim designado quando o acto administrativo impugnado por via administrativa o não podia ser previamente por via jurisdicional.
O
recurso hierárquico necessário no direito comparado
Direito
Francês
Falar de recurso hierárquico necessário, enquanto
via preliminar indispensável de acesso ao recurso contencioso, implica
distinguir no direito francês recursos contenciosos, entre o recurso por excesso de poder do recurso de plena jurisdição.
No direito francês existe sempre possibilidade de
recurso das decisões lesivas dos direitos dos particulares, quer sejam do órgão
superior hierárquico, quer do subalterno. Corresponde contenciosamente ao
recurso por excesso de poder.
No entanto, no que toca ao recurso de plena jurisdição
existe o princípio da decisão prévia da administração para existir uma
impugnação contenciosa. Tendo o acto sido praticado pelo órgão por
sua iniciativa própria pode o particular impugnar de imediato contenciosamente,
caso contrário tem de reclamar administrativamente para definir a sua
situação jurídica perante a administração. [1]
Direito
Espanhol
No direito espanhol prevê-se dois tipos de recurso
administrativo ordinário: o recurso de
alzada e o recurso de reposición
potestativo. O recurso de alzada
é admissível contra “las resoluciones cuando non pongan fin a la via
administrativa”, interposto perante o órgão hierárquico superior daquele que
ditou a resolução (art. 114º, nº1, da LRJ-PAC). O recurso de alzada é um pressuposto processual quando emanado de um
subalterno. Corresponde ao recurso hierárquico necessário português.
O recurso
potestativo de reposición esta prevista para os actos que terminem com a
via administrativa (art.116º da LRJ-PAC), é um recurso facultativo porque estes
actos não são susceptíveis de impugnação contenciosa directa. É o correspondente à
reclamação administrativa no direito português.
Nos casos de recurso
de alzada, se não houver decisão o particular pode subentender o
indeferimento (art. 43º, nº2, primeiro parágrafo, e 4, al.b)), para o efeito de
permitir a interposição de recurso contencioso-administrativo (art.43º,nº3,
parágrafo segundo), salvo se o recurso de
alzada houver sido interposto de um acto de indeferimento tácito (art.43º,
nº2, parágrafo segundo). Nos termos do nº2 do art. 116º da LRJ-PAC, não haverá
recurso contencioso sem uma decisão do recurso
de reposición ou da formação do acto de indeferimento tácito na ausência
daquela. O prazo para recorrer contenciosamente interrompe-se com a impugnação
administrativa. [2]
No
Direito Italiano
A doutrina Italiana sempre questionou a
existência do recurso hierárquico, invocando essencialmente dois argumentos:
primeiro, a desconformidade com a descentralização da organização
público-administrativa italiana, originada pela criação de regiões
administrativas. Segundo, a inconstitucionalidade do recurso hierárquico
necessário como sendo uma condição de tutela contenciosa, rejeitado pela Adunanza Plenaria. O recurso hierárquico
é assim, desde 2 de Fevereiro de 1978, facultativo. Da referida sentença
resultou também que o recurso contencioso preclude a possibilidade recurso
hierárquico. [3]
O
estado da arte no Direito Português
Com a revisão constitucional de 1989 alterou-se o art.
268º que deixou de fazer referência à necessidade de o recurso contencioso ser
interposto contra actos definitivos e executórios e passam a ser recorríveis
“quaisquer actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente
protegidos dos particulares.” Esta retirada da constituição trouxe logo um
acesso debate acerca da constitucionalidade do recurso hierárquico necessário
em direito administrativo.
Está consagrada hoje uma impugnabilidade contenciosa genérica de qualquer
acto administrativo que seja susceptível de lesar direitos ou interesses
legalmente protegidos dos particulares ou que seja dotado de eficácia externa
(art. 51º, nº1 CPTA). Poranto quaisquer actos do subalterno ou do superior hierárquico estão habilitados preencher estes requisitos, sendo que qualquer referência à necessidade
de prévia interposição de uma garantia administrativa no código do procedimento
deve considerar-se afastada pelo código do processo.
De um lado, um sector da doutrina continua a
defender que apesar de ter sido eliminada a referência à definitividade do acto
administrativo, continua o legislador ordinário a poder, através de previsão
legal avulsa, exigir a definitividade vertical para a impugnação contenciosa do
acto. Entende que ainda depois da revisão constitucional continua a ser
relevante na dogmática jurídica continuar a distinguir entre recursos
hierárquicos necessários e recursos hierárquicos facultativos. [4] [5]
Esta doutrina defende que é tarefa do legislador
ordinário regular o processo administrativo, podendo estabelecer, se entender
razoável, a necessidade de impugnação administrativa prévia. Não constitui assim
um condicionamento ilegítimo a imposição do recurso hierárquico necessário
desde que respeitadas “exigências de proporcionalidade e de adequação.” [6] [7]
Do outro lado da discórdia, situam-se aqueles que
como Vasco Pereira da Silva defendem que a alteração constitucional de 1989, ao
substituir requisito da definitividade vertical pela lesividade do acto
determinou a sua inconstitucionalidade. Argumenta o professor que aqui seriam violados os
preceitos constitucionais da plenitude e efectividade da tutela dos direitos
dos particulares (268º nº4), da separação administração e justiça (114º,205º e
ss., 266 e ss. CRP) e o da desconcentração administrativa (267º nº2 CRP). [8]
Vasco Pereira da Silva sempre havia defendido a
inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, por violação do
princípio da plenitude da tutela dos particulares (art.268º nº4 CRP), do
princípio da separação entre administração e a justiça (art. 114º, 205º e ss.,
266º e ss. da CRP), por fazer precludir o acesso ao tribunal por não ter sido
utilizada uma garantia administrativa, por violação do princípio constitucional
da desconcentração administrativa (267º, nº2 da CRP) que implica a imediata
recorribilidade dos actos do subalterno, pois o superior continua a dispor de
competência revogatória (art. 142º do CPA), por violação do princípio da
efectividade da tutela (art. 268º, nº4 CRP) em razão do efeito preclusivo da
impugnabilidade da decisão administrativa, no caso de não ter havido
interposição prévia de recurso hierárquico, no prazo de trinta dias (art. 168º,
nº2 do CPA), sendo o prazo para o professor excessivamente curto. Depois da
reforma o legislador veio assim afastar de modo expresso a necessidade do
recurso hierárquico. [9]
Questionamo-nos no entanto se mesmo na concessão de uma
segunda oportunidade à administração que representa actualmente o papel da figura do recurso hierárquico, seja uma oportunidade de
proceder à reapreciação da questão. E a dúvida colocasse pelo facto de, na
prática quotidiana, o superior hierárquico tender a confirmar a decisão do
subalterno. Se, como reconhece o ilustre professor, existe aqui uma função de
composição preventiva dos litígios contenciosos, a verdade é que ela é tanto
mais posta em causa por esta lógica de incorrigibilidade prática para administração, que
leva o particular a não perder tempo em recursos que se revelam verdadeiramente dilatórios. É questionável a utilidade ou
recomendabilidade do recurso hierárquico de que nos falam alguns administrativistas. [10] [11]
A jurisprudência tem entendido, numa posição a meio
caminho, que é admissível a via contenciosa imediata quando esta implique uma
restrição intolerável ou desrazoável do direito acesso tribunais. Os tribunais
administrativos assim como o Tribunal Constitucional têm entendido que a
exigência de recurso hierárquico tem como efeito diferir o início do prazo para
a interposição de impugnação contenciosa, sem a restringir, nem acarretar a sua
inutilidade, implicando simplesmente uma ordenação do processo jurisdicional.
[12]
Apesar da revisão constitucional, o professor Paulo Otero continua a sublinhar que a dicotomia entre actos definitivos e actos
não definitivos não perdeu utilidade, uma vez que o tipo de acto expressa a
natureza da competência e o maior ou menor grau de dependência decisória do seu
autor. [13] Pensamos no entanto que continuar a exigir a distinção, como
faz o ilustre professor, entre definitividade ou não do acto, ou seja, se este constitui
ou não o último veredicto da administração, é fazer recair sobre o particular
um ónus que cabe directamente à administração. Não há qualquer preceito
constitucional que o imponha nem razões do processo administrativo que o
obriguem.
Os que assumem uma posição contrária à necessidade do recurso defendem sempre ter cabido ao legislador regular o processo administrativo, estabelecendo os seus pressupostos, o exercício de uma função organizativa que não pode ser posta em causa, desde que salvaguardando o princípio da proporcionalidade nos condicionamentos impostos ao acesso à justiça. [14] Vasco Pereira da Silva argumenta contrariamente dizendo que constituindo a impugnabilidade de quaisquer actos administrativos lesivos de direitos dos particulares um direito fundamental de acesso à justiça de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias tal direito não pode ser restringindo pelo legislador à luz do art. 18º, nº2 da CRP. São assim sindicáveis os actos intermédios assim como os do termo do procedimento, os actos do superior hierárquico como os do subalterno, os actos reguladores de uma situação jurídica como os de natureza prestadora.
A exigência de impugnação administrativa prévia
podia fazer o particular perder a sua pretensão por ter deixado passar o prazo
para fazê-lo, ao ponto de se deparar com um facto consumado no momento em que
recebe a decisão judicial de rejeição da impugnação.
Os autores favoráveis à manutenção da
existência do recurso hierárquico necessário objectam dizendo que em legislação especial é legitimia a existência da necessidade do recurso uma que precisamente esta é especial em relação à regra geral do CPA.Vasco Pereira das Silva discordando frontalmente replica chamando à atenção que as regras ditas especiais são apenas uma
confirmação da “regra geral” da impugnação hierárquica necessária. Defende por
isso uma caducidade das normas previstas em legislação especial, pelo
desaparecimento das circunstâncias de direito que as justificavam. Estas previsões em lei especial seriam desprovidas de consequências
contenciosas uma vez a alteração do regime previsto do CPTA.
A voz mais sonante na defesa do recurso hierárquico
necessário tem sido a de Mário Aroso de Almeida dizendo que apesar
de a regra geral do CPA ter sido revogada, a eventual existência de regras
especiais ou regime similares em lei especial não era afectada. Para afastar
estas disposições avulsas teria que haver disposição expressa do legislador. [15] [16]
Para Vasco Pereira da Silva há, nesta linha de
pensamento, a criação de uma nova categoria: o “recurso hierárquico
desnecessário necessário”, opondo-se veemente à manutenção da figura em
legislação avulsa. Seria para o professor uma violação do princípio da
igualdade de tratamento dos particulares perante a Administração e perante a
justiça administrativa criarem-se “privilégios do foro” para certas categorias
de actos administrativos. Aduz ainda que o CPTA estabelece um princípio de
“promoção do acesso à justiça” (art.7º do código), segundo o qual o mérito deve
prevalecer sobre as formalidades, o que implica que devam ser evitadas
“diligências inúteis” (art.8º, nº2 do Código). [17]
No entanto é questionável se o bom funcionamento do
sistema de justiça administrativa não é afectado. Pensamos pois que o eficaz
funcionamento das garantias administrativas poderia servir de “filtro” a
litígios susceptível de ser preventivamente resolvidos. A menos que se consagre
a proposta do professor, de iure condendo, o legislador determinar que “não
apenas tem efeito suspensivo o prazo de impugnação contenciosa, mas também
efeito suspensivo a própria execução da decisão administrativa, generalizando
assim a todas as garantias administrativas o regime jurídico que se encontra
estabelecido para os casos de recurso hierárquico necessário” concretamente o
que consta do artigo 170º do CPA que dispõe que “o recurso hierárquico
necessário suspende a eficácia do acto recorrido, salvo quando a lei disponha
em contrário ou quando o autor do acto considere que a sua não execução
imediata crie grave prejuízo para o interesse público”. [17] [18]
A inaplicabilidade do art. 59º, nº 4
e 5 do CPTA
Em relação às impugnações administrativas
necessárias instituídas em legislação avulsa coloca-se a questão da
inaplicabilidade do art. 59º nº 4 e 5. A utilização dos mecanismos de
impugnação administrativa necessária, exigida em procedimentos especiais, não
suspende o prazo contencioso, ao contrário do que dita o nº4 do art.59º, dado
que este prazo ainda não teve inicio, e só o terá após o esgotamento da via
procedimental.[19]
O
recurso hierárquico necessário e os direitos dos militares
A defesa nacional é uma obrigação do Estado, no
âmbito de uma tarefa fundamental de garantir a independência nacional que o
artigo 9º, alínea a) da CRP lhe comete. De acordo com o artigo 273º da CRP, é
obrigação do Estado assegurar a defesa nacional, a qual têm por objectivos
garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e
das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do
território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão
ou ameaça externa.
Na “constituição militar” há um conjunto
significativo de normas atinentes ao direito militar: umas, incidem
expressamente sobre a disciplina militar: das Forças Armadas (artigos 27º, nº3
alínea d), 164º, alínea d), e 274º, nº2); outras, reflectem-se,
inevitavelmente, no direito disciplinar militar (artigos 30º, nº4, 32º, 164º
alínea o), 165º alínea d), 199º alínea d), 266º, 268º, 269º, 270º e 271º).
Com a lei nº 1/82, de 30 de Setembro, foi
“ultrapassada a separação então existente entre a Administração Pública e as
Forças Armadas, que resultava da organização do poder politico estabelecido no
período de transição posterior a 1976”. Com a 1ª revisão constitucional, face à
inserção sistemática do artigo 270º e com a alteração da denominação do título
X da parte terceira da Constituição “Defesa Militar” – ficou sublinhada a
recusa de uma concepção das Forças Armadas como uma comunidade separada de
ordenamento interno autónomo.
Da conclusão de que “ forças armadas são parte
integrante da Administração Pública” decorre que o direito disciplinar militar
se enquadra no âmbito mais vasto do direito sancionatório público, valendo
quanto a ele o que prescreve o nº3 do artigo 269º da Constituição, quanto ao
regime da função pública – em processo disciplinar são garantidas ao arguido a
sua audiência e defesa. Como afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira “as Forças Armadas são ainda um elemento constitucionalmente endógeno à
constituição.” [20]
A lei constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, eliminou o preceito (artigo 215º, nº3), introduzido pela lei que fez a 1ª revisão constitucional, segundo o qual a lei pode atribuir aos tribunais militares competência para a aplicação de sanções disciplinares. Com esta eliminação ficou definitivamente prejudicada a discussão doutrinal e jurisprudencial sobre a admissibilidade constitucional de a lei ordinária estatuir os tribunais militares como jurisdição competente para julgar recursos de decisões disciplinares de certos órgãos da administração militar.
A lei constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, eliminou o preceito (artigo 215º, nº3), introduzido pela lei que fez a 1ª revisão constitucional, segundo o qual a lei pode atribuir aos tribunais militares competência para a aplicação de sanções disciplinares. Com esta eliminação ficou definitivamente prejudicada a discussão doutrinal e jurisprudencial sobre a admissibilidade constitucional de a lei ordinária estatuir os tribunais militares como jurisdição competente para julgar recursos de decisões disciplinares de certos órgãos da administração militar.
Apesar de toda as preocupação do legislador em
disciplinar o regime jurídico dos militares a verdade é que o poder executivo
tem nos últimos anos enfrentado um problema grave no que concerne na eficácia
das medidas disciplinares aplicadas. É que os militares não têm aceitado as
sanções aplicadas e recorrem a tribunal para as contestar e os tribunais
administrativos têm decidido a favor dos militares sempre que em contenda esteja
em causa uma sanção disciplinar prevista no Regulamento de Disciplinar Militar.
É no meio deste périplo jurídico
que surgiu a lei 34/2007, alterando as regras de competência, em razão da
matéria, dos tribunais administrativos, impondo-lhes a presença de juízes
militares (solução que surge como alternativa à consagração de tribunais
militares fora do tempo de guerra, solução não aceitável atendendo à letra do
artigo 213º da constituição.)
A lei espelha as medidas que se
pretendeu adotar:
Em primeiro
lugar, no que toca às providência cautelar conservatória da
suspensão de eficácia, impedir a “proibição automática de executar acto administrativo,
prevista no artigo 128.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)”,
quando “seja requerida a suspensão de eficácia de um acto administrativo
praticado ao abrigo do Regulamento de Disciplina Militar”. Em Segundo, no mesmo âmbito dessa providência cautelar,
condicioná-la a determinados critérios especiais, como sejam, o “fundado receio
da constituição de uma situação de facto consumado” e a evidente “procedência da
pretensão, formulada ou a formular no processo principal”(artigo 3.º), com a
previsão ainda do modo processual de “decretamento provisório das providências
cautelares de suspensão de eficácia de actos administrativos que apliquem as
sanções disciplinares previstas no Regulamento de Disciplina Militar”, passando
pela obrigatoriedade da audição prévia da entidade requerida (artigo 4.º).
Fica assim pervertido o efeito
útil das providências cautelares.
Em
terceiro,
pretende o legislador fixar a competência da Secção de Contencioso
Administrativo de cada Tribunal Central Administrativo para “conhecer, em 1.ª
instância, dos processos relativos a actos administrativos de aplicação de
sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas”, fazendo intervir nos tribunais
juízes militares (artigos 6.º e 7.º). Existe uma alteração das regras
da distribuição da competência, em razão da matéria, pois segundo as regras
gerais de distribuição da competência do CPTA os Tribunais Centrais
Administrativos nunca são competentes em primeira instância. Perante o artigo 37.º do RDM pretende-se assim uma competência residual, em 1.º grau, para um aspecto
muito específico relativo a processos que têm a ver com a “aplicação de sanções
disciplinares de detenção ou mais gravosas”, só porque isso vai permitir à
intervenção de juízes militares (o julgamento em secção, face ao disposto no
artigo 35.º, “compete ao relator e a dois outros juízes” um deles militar).
Em
quarto,
e o que interessa directamente para o presente trabalho, o estabelecimento de
recurso hierárquico necessário. E é aqui que cabe uma crítica que não pode
deixar de ser, se nos é permitido, arrasadora. Um dos direitos fundamentais da Constituição
Administrativa é o da Tutela Jurisdicional efectiva, pois também os militares
têm direito acesso justiça, mesmo no âmbito de um processo cautelar. É o que
resulta da norma do artigo 268.º, n.º 4, conjugada com o principio geral do
acesso ao direito e aos Tribunais, consubstanciado na garantia da via
judiciária do artigo 20.º, cujo n.º 4 que assegura “aos cidadãos procedimentos
judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade”, de modo a obter tutela
efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos,
liberdades e garantias pessoais. Os artigos 1º a 7º da presente lei estão
enfermos de inconstitucionalidade material por contrariedade com os referidos
artigos da constituição.
O considerando de que “ as Forças Armadas são parte
integrante da Administração Pública” não significa que não devam ser devidamente
consideradas e ponderadas as especificidades da justiça disciplinar militar. Não é isso que estamos a tentar defender. Defendemos apenas que atendendo à natureza das sanções disciplinares militares deve existir um reforço das garantias do arguido em processo disciplinar ,ainda que as operações militares e a prevalência no foro militar do princípio
do comando levem a considerar as especificidades da situação. Tal não se nega.
Mas argumentar, como na sociedade portuguesa a certa altura se fez, de que estaria em causa
a disciplina militar é negar a imparcialidade, independência e a competência
dos tribunais para decidir segundo o direito. [21]
Concluimos assim que uma das implicações da inclusão das Forças Armadas
na administração pública é a susceptibilidade de recurso contencioso dos actos
administrativos que se traduzem na aplicação de sanções disciplinares a militares e que por isso devem poder aceder à justiça administrativa em igualdade de circunstâncias com os restantes cidadãos, fundamentalmente quando estejam em causa sanções privativas de liberdade, por força da garantia geral que é dada aos
administrados, no artigo 268º, nº4, da CRP de tutela jurisdicional efectiva dos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos e em razão da garantia que é dada ao arguido em processo
disciplinar, no artigo 269º nº3 uma vez que “a última instancia do direito de
defesa em matéria disciplinar é a possibilidade de recurso contencioso, que
vale para todas as decisões disciplinares.
Assim estatuía o RDM, nos termos do qual cabe reclamação e ou recurso hierárquico necessário das decisões em matéria disciplinar e impugnação contenciosa das decisões proferidas pelo Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas ou pelos chefes de estado-maior dos ramos (artigos 121º e 133º).
Assim estatuía o RDM, nos termos do qual cabe reclamação e ou recurso hierárquico necessário das decisões em matéria disciplinar e impugnação contenciosa das decisões proferidas pelo Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas ou pelos chefes de estado-maior dos ramos (artigos 121º e 133º).
O
quase fim do recurso hierárquico necessário para as patentes militares
No acórdão do tribunal constitucional nº229/ 2012,
publicado em 23 de Maio de 2012 em Diário da República, os juízes do TC assumem
uma posição frontalmente contrária aos argumentos da existência de especialidade que legitimam a continuação de lei especial impondo a
necessidade do recurso. Diz o tribunal que “em suma, a regra estabelecida no
n.º 1 do artigo 51.º do RDM não acautela a utilidade da impugnação judicial
quando, após decisão do recurso hierárquico, impõe que a sanção de prisão
disciplinar militar seja cumprida de imediato.” A inconstitucionalidade da
norma está na razão de esta prever que “o cumprimento da pena de prisão
disciplinar tenha lugar logo após ter sido negado provimento ao recurso
hierárquico apresentado, sem que seja garantida, no Regulamento de Disciplina
Militar, a possibilidade de impugnação junto do tribunal competente, em tempo
útil”.
Não esquecendo que a "hierarquia e a disciplina assumem, em nome do superior interesse da eficácia e da eficiência da defesa nacional e das Forças Armadas (artigos 273.º e 275.º da Constituição), uma importância sem paralelo na generalidade dos domínios da Administração Pública, tem certamente um efeito útil que a pena disciplinar de repreensão possa ser executada com a mínima dilação possível em relação ao momento da prática da infração", existe para o tribunal uma violação do 27º, nº3, alínea d), uma vez que nele é garantido o recurso para o tribunal competente quando seja aplicada prisão disciplinar. O tribunal desconsidera o argumento de que os militares ainda que confrontados com a necessidade do recurso, teriam sempre a possibilidade de recorrer a mecanismos cautelares. A verdade é que para o tribunal a tutela dos direitos dos militares tem que ser efectiva, dizendo que se assim não fosse não seria possível ao militar “uma utilização ainda útil do recurso aos tribunais”, visto que as medidas de suspensão da eficácia do acto no RDM não dão lugar à suspensão imediata da execução da sanção disciplinar militar, nem assegura necessariamente, a utilidade da discussão judicial da sanção.
Não é razoável a distinção que o tribunal faz tendo em conta a divergência de sanções aplicada aos militares, quanto a sua natureza e gravidade. Como já referimos supra a manutenção do requisito da necessidade no recurso hierárquico militar é desconsiderar a competência dos tribunais administrativos na apreciação imparcial do litigio. O tribunal decide que o disposto no artigo 51.º, n.º 2, e no artigo 123.º, n.º 2, que preveem a execução imediata das penas de repreensão e repreensão agravada (sem que o recurso hierárquico tenha o efeito suspensivo que possui nas hipóteses de aplicação de outras penas), não violam, nem o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2), nem as garantias de defesa em processo disciplinar (artigo 32.º, n.os 1 e 10), nem a tutela jurisdicional efetiva garantida no artigo 20.º, n.º 1. Já para a pena de prisão disciplinar que consiste «na retenção do infrator por um período de um a 30 dias, em instalação militar, designadamente no quartel ou a bordo do navio» (artigo 35.º do RDM), a regra estabelecida no n.º 1 do artigo 51.º do RDM será contrária à constituição porque "não acautela a utilidade da impugnação judicial quando, após decisão do recurso hierárquico, impõe que a sanção de prisão disciplinar militar seja cumprida de imediato, a possibilidade de execução da pena de prisão disciplinar logo após o indeferimento do recurso hierárquico não garante a efetividade do controlo jurisdicional que venha a ser instaurado". Mal andou o TC em chamar a atenção para o facto de a natureza das sanções disciplinares ser diferente, não reconhecendo o direito dos militares a uma tutela jurisdicional efectiva, criando privilégios de foro incompreensíveis.[22] [23]
Não esquecendo que a "hierarquia e a disciplina assumem, em nome do superior interesse da eficácia e da eficiência da defesa nacional e das Forças Armadas (artigos 273.º e 275.º da Constituição), uma importância sem paralelo na generalidade dos domínios da Administração Pública, tem certamente um efeito útil que a pena disciplinar de repreensão possa ser executada com a mínima dilação possível em relação ao momento da prática da infração", existe para o tribunal uma violação do 27º, nº3, alínea d), uma vez que nele é garantido o recurso para o tribunal competente quando seja aplicada prisão disciplinar. O tribunal desconsidera o argumento de que os militares ainda que confrontados com a necessidade do recurso, teriam sempre a possibilidade de recorrer a mecanismos cautelares. A verdade é que para o tribunal a tutela dos direitos dos militares tem que ser efectiva, dizendo que se assim não fosse não seria possível ao militar “uma utilização ainda útil do recurso aos tribunais”, visto que as medidas de suspensão da eficácia do acto no RDM não dão lugar à suspensão imediata da execução da sanção disciplinar militar, nem assegura necessariamente, a utilidade da discussão judicial da sanção.
Não é razoável a distinção que o tribunal faz tendo em conta a divergência de sanções aplicada aos militares, quanto a sua natureza e gravidade. Como já referimos supra a manutenção do requisito da necessidade no recurso hierárquico militar é desconsiderar a competência dos tribunais administrativos na apreciação imparcial do litigio. O tribunal decide que o disposto no artigo 51.º, n.º 2, e no artigo 123.º, n.º 2, que preveem a execução imediata das penas de repreensão e repreensão agravada (sem que o recurso hierárquico tenha o efeito suspensivo que possui nas hipóteses de aplicação de outras penas), não violam, nem o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2), nem as garantias de defesa em processo disciplinar (artigo 32.º, n.os 1 e 10), nem a tutela jurisdicional efetiva garantida no artigo 20.º, n.º 1. Já para a pena de prisão disciplinar que consiste «na retenção do infrator por um período de um a 30 dias, em instalação militar, designadamente no quartel ou a bordo do navio» (artigo 35.º do RDM), a regra estabelecida no n.º 1 do artigo 51.º do RDM será contrária à constituição porque "não acautela a utilidade da impugnação judicial quando, após decisão do recurso hierárquico, impõe que a sanção de prisão disciplinar militar seja cumprida de imediato, a possibilidade de execução da pena de prisão disciplinar logo após o indeferimento do recurso hierárquico não garante a efetividade do controlo jurisdicional que venha a ser instaurado". Mal andou o TC em chamar a atenção para o facto de a natureza das sanções disciplinares ser diferente, não reconhecendo o direito dos militares a uma tutela jurisdicional efectiva, criando privilégios de foro incompreensíveis.[22] [23]
Contudo, não concedemos na questão da competência dos tribunais administrativos. Na verdade existem razões técnica e sobretudo de sensibilidade das matérias tratadas para que sejam juízes militares a apreciarem as causa, uma vez que está indirectamente em causa a segurança nacional.
Sabemos que não é pacifica a intervenção de juízes militares
nos tribunais centrais administrativos, quando conhecem em 1ª instância, dos
processos relativos a actos administrativos de aplicação das sanções
disciplinares de detenção ou mais gravosas (artigos 6.° e 7.° da Lei n.°
34/2007, de 13 de Agosto, e Lei n.° 79/2009, de 13 de Agosto). Isto porque o
artigo 211.°, n.° 3, da CRP prevê apenas, de forma expressa, que os juízes
militares integrem a composição dos tribunais de qualquer instância que julguem
crimes de natureza estritamente militar. Mas, como referem os professores Jorge
Miranda e Rui Medeiros, se assim é “no domínio dos crimes estritamente militares
– em que prevalece o elemento objectivo – por maioria de razão há-de ser assim
no domínio disciplinar – em que avulta o estatuto específico dos membros das
Forças Armadas.”[24]
[1] - JEAN RIVERO Droit Administratif, 1980, pág. 209 e ss e 237 e ss. - o autor distingue o recurso por excesso de
poder e o recurso de plena jurisdição.
[2] – JESUS GONZÁLEZ/FRANCISCO NAVARRO, Comentarios A La Ley De La Jurisdiccion Contencioso-Administrativa, Civitas, 1999, pág.2282.
[3] – HENRIQUE JOSÉ DE MOURA MOREIRA DA MOTA, A
justiça administrativa em Itália in Documentação e Direito Comparado, Lisboa,
Lisboa, Procuradoria Geral da República, 1989, nº27/28, pág. 561 e ss.
[4] –CARLOS ALBERTO CADILHA, Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina,
2006, pág. 588.
[5] - Neste sentido, ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, O acto administrativo, in Scientia Iuridica, vol. XXXIX, nº 223/228 (Janeiro/Dezembro 1990), pág. 34.
[5] - Neste sentido, ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, O acto administrativo, in Scientia Iuridica, vol. XXXIX, nº 223/228 (Janeiro/Dezembro 1990), pág. 34.
[6] - VIEIRA DE ANDRADE, Em defesa do recurso
hierárquico necessário – acórdão n.499/99 do Tribunal Constitucional anotado,
in cadernos de justiça administrativa, nº0 (Novembro/Dezembro 1996), pág.19.
[7] - MARIO ESTEVES OLIVEIRA, RODRIGO OLIVEIRA,
Código anotado, pág.37
[8] – VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo
perdido, pág. 660 e ss.
[9] - Não acompanhamos DIOGO FREITAS DO AMARAL, Considerações Gerais sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, Lisboa, Ministério da Justiça, vol. I, 2000, pág. 89-90, quando defende que a elimianção do recurso hierárquico necessário levará um aumento exponencial dos processos nos tribunais administrativos, com eventual paralisação da administração. Consideramos que se tal facto ainda não ocorreu desde a reforma do contencioso, é dificil vislumbrar quando irá suceder.
[9] - Não acompanhamos DIOGO FREITAS DO AMARAL, Considerações Gerais sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, Lisboa, Ministério da Justiça, vol. I, 2000, pág. 89-90, quando defende que a elimianção do recurso hierárquico necessário levará um aumento exponencial dos processos nos tribunais administrativos, com eventual paralisação da administração. Consideramos que se tal facto ainda não ocorreu desde a reforma do contencioso, é dificil vislumbrar quando irá suceder.
[10] – VASCO PEREIRA DA SILVA – De necessário a útil:
a metamorfose do recurso hierárquico necessário, in Cadernos de Justiça
Adminsitrativa, nº47, Setembro/Outubro 2004, pág. 26-27
[11] - Defendendo a constitucionalidade do recurso hierárquico necessário pela possibilidade de o particular solicitar a adopção de providências cautelares, SÉRVULO CORREIA, O Incumprimento do Dever de Decidir, in Estudos J. e Econ. em Homenagem ao Prof. Doutor Ant. de Sousa Franco, FDUL Edit., 2006, p. 218 e 226
[11] - Defendendo a constitucionalidade do recurso hierárquico necessário pela possibilidade de o particular solicitar a adopção de providências cautelares, SÉRVULO CORREIA, O Incumprimento do Dever de Decidir, in Estudos J. e Econ. em Homenagem ao Prof. Doutor Ant. de Sousa Franco, FDUL Edit., 2006, p. 218 e 226
[12] - Ac. do TC nº 499/96, de 20.3.1996 e Ac. do STA
17.11.1994 – boletim ministério justiça, nº 441, pág.88 e ss.
[13] – PAULO OTERO – As garantias contenciosas dos
particulares no Código do Procedimento Adminsitrativo, in Scientia Iuridica, vol.
XLI, nº 235/237 (Janeiro/Julho 1992), pág. 58 e ss.
[14] – PEDRO GONÇALVES, Relações entre as Impugnações Administrativas Necessárias
e o Recurso Contencioso de Anulação de Actos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1996, pp. 29, 42 ss– defendo
o recurso hierárquico necessário e afirmando que o respeito pela hierarquia administrativa
só se consegue através da exigência de uma segunda decisão administrativa, pág.
38-39.
[15] – MÁRIO AROSO DE ALMEIDA – O novo Regime do
Processo nos Tribunais Administrativos, 2º ed., Almedina, Coimbra, 2003, p.139.
[16] - MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - Implicações de direito substantivo da reforma do contencioso administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº34, pág. 69.
[16] - MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - Implicações de direito substantivo da reforma do contencioso administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº34, pág. 69.
[17] - VASCO PEREIRA DA SILVA – De necessário a
útil: a metamorfose do recurso hierárquico necessário, in Cadernos de Justiça
Adminsitrativa, nº47, Setembro/Outubro 2004
[18] - Defendendo a criação de organismo adminsitrativos independentes para uma apreciação extra-judicial dos conflitos, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - Implicações..., ob. cit. pág. 73
[18] - Defendendo a criação de organismo adminsitrativos independentes para uma apreciação extra-judicial dos conflitos, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - Implicações..., ob. cit. pág. 73
[18] - Referindo que em virtude da regra da suspensão dos
prazos, se “acaba por transformar a impugnação administrativa facultativa em
impugnação recomendável” – PAULO OTERO, “Impugnações administrativas”, in Cadernos de Justiça
Administrativa, nº 28, Julho/Agosto de 2001, pp. 50 e ss.
[19] - GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007
[20] – ver noticia Jornal Económico, dia 28 de
Setembro de 2012
[21] - A prisão disciplinar imposta a militares constitui uma exceção à reserva de decisão judicial em matéria de penas privativas da liberdade, prevista no artigo 27.º, n.º 2, da Constituição, ao admitir -se a sua imposição em virtude de uma decisão administrativa [n.º 3, alínea d)].
[21] - A prisão disciplinar imposta a militares constitui uma exceção à reserva de decisão judicial em matéria de penas privativas da liberdade, prevista no artigo 27.º, n.º 2, da Constituição, ao admitir -se a sua imposição em virtude de uma decisão administrativa [n.º 3, alínea d)].
[22] – Acórdão disponível em http://dre.pt/pdf1sdip/2012/05/10000/0272602741.pdf, ver especialmente as declarações de voto dos Concelheiros Maria Lúcia Amaral e Vitor Gomes em sentido divergente quanto à matéria em análise.
[23] – CARLA MARTINS PICA, Cadernos Navais, nº8,
Janeiro-Março 2004
[24] - JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, Tomo III, p.155.
[24] - JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, Tomo III, p.155.
Pedro Miguel Pereira, 19816, subturma 6
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