domingo, 25 de novembro de 2012

Recurso Hierárquico Desnecessário Necessário na Pátria Militar


Considerações Preliminares

O recurso hierárquico consiste no pedido de reapreciação do acto administrativo dirigido ao superior hierárquico do seu autor (art. 166º CPA). O recurso hierárquico pode fundar tanto na ilegalidade como no mérito do comportamento administrativo (art. 159º e 167º nº2 CPA). O recurso hierárquico necessário é assim designado quando o acto administrativo impugnado por via administrativa o não podia ser previamente  por via jurisdicional.

O recurso hierárquico necessário no direito comparado

Direito Francês
Falar de recurso hierárquico necessário, enquanto via preliminar indispensável de acesso ao recurso contencioso, implica distinguir no direito francês recursos contenciosos, entre o recurso por excesso de poder do recurso de plena jurisdição.
No direito francês existe sempre possibilidade de recurso das decisões lesivas dos direitos dos particulares, quer sejam do órgão superior hierárquico, quer do subalterno. Corresponde contenciosamente ao recurso por excesso de poder.
No entanto, no que toca ao recurso de plena jurisdição existe o princípio da decisão prévia da administração para existir uma impugnação contenciosa. Tendo o acto sido praticado pelo órgão por sua iniciativa própria pode o particular impugnar de imediato contenciosamente, caso contrário tem de reclamar administrativamente para definir a sua situação jurídica perante a administração. [1]

Direito Espanhol
No direito espanhol prevê-se dois tipos de recurso administrativo ordinário: o recurso de alzada e o recurso de reposición potestativo. O recurso de alzada é admissível contra “las resoluciones cuando non pongan fin a la via administrativa”, interposto perante o órgão hierárquico superior daquele que ditou a resolução (art. 114º, nº1, da LRJ-PAC). O recurso de alzada é um pressuposto processual quando emanado de um subalterno. Corresponde ao recurso hierárquico necessário português.
O recurso potestativo de reposición esta prevista para os actos que terminem com a via administrativa (art.116º da LRJ-PAC), é um recurso facultativo porque estes actos não são susceptíveis de impugnação contenciosa directa. É o correspondente à reclamação administrativa no direito português.
Nos casos de recurso de alzada, se não houver decisão o particular pode subentender o indeferimento (art. 43º, nº2, primeiro parágrafo, e 4, al.b)), para o efeito de permitir a interposição de recurso contencioso-administrativo (art.43º,nº3, parágrafo segundo), salvo se o recurso de alzada houver sido interposto de um acto de indeferimento tácito (art.43º, nº2, parágrafo segundo). Nos termos do nº2 do art. 116º da LRJ-PAC, não haverá recurso contencioso sem uma decisão do recurso de reposición ou da formação do acto de indeferimento tácito na ausência daquela. O prazo para recorrer contenciosamente interrompe-se com a impugnação administrativa. [2]

No Direito Italiano
A doutrina Italiana sempre questionou a existência do recurso hierárquico, invocando essencialmente dois argumentos: primeiro, a desconformidade com a descentralização da organização público-administrativa italiana, originada pela criação de regiões administrativas. Segundo, a inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário como sendo uma condição de tutela contenciosa, rejeitado pela Adunanza Plenaria. O recurso hierárquico é assim, desde 2 de Fevereiro de 1978, facultativo. Da referida sentença resultou também que o recurso contencioso preclude a possibilidade recurso hierárquico. [3]

O estado da arte no Direito Português
Com a revisão constitucional de 1989 alterou-se o art. 268º que deixou de fazer referência à necessidade de o recurso contencioso ser interposto contra actos definitivos e executórios e passam a ser recorríveis “quaisquer actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.” Esta retirada da constituição trouxe logo um acesso debate acerca da constitucionalidade do recurso hierárquico necessário em direito administrativo.
Está consagrada hoje uma impugnabilidade contenciosa genérica de qualquer acto administrativo que seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares ou que seja dotado de eficácia externa (art. 51º, nº1 CPTA). Poranto quaisquer actos do subalterno ou do superior hierárquico estão habilitados preencher estes requisitos, sendo que  qualquer referência à necessidade de prévia interposição de uma garantia administrativa no código do procedimento deve considerar-se afastada pelo código do processo.
De um lado, um sector da doutrina continua a defender que apesar de ter sido eliminada a referência à definitividade do acto administrativo, continua o legislador ordinário a poder, através de previsão legal avulsa, exigir a definitividade vertical para a impugnação contenciosa do acto. Entende que ainda depois da revisão constitucional continua a ser relevante na dogmática jurídica continuar a distinguir entre recursos hierárquicos necessários e recursos hierárquicos facultativos. [4] [5]
Esta doutrina defende que é tarefa do legislador ordinário regular o processo administrativo, podendo estabelecer, se entender razoável, a necessidade de impugnação administrativa prévia. Não constitui assim um condicionamento ilegítimo a imposição do recurso hierárquico necessário desde que respeitadas “exigências de proporcionalidade e de adequação.” [6] [7]
Do outro lado da discórdia, situam-se aqueles que como Vasco Pereira da Silva defendem que a alteração constitucional de 1989, ao substituir requisito da definitividade vertical pela lesividade do acto determinou a sua inconstitucionalidade. Argumenta o professor que aqui seriam violados os preceitos constitucionais da plenitude e efectividade da tutela dos direitos dos particulares (268º nº4), da separação administração e justiça (114º,205º e ss., 266 e ss. CRP) e o da desconcentração administrativa (267º nº2 CRP). [8]
Vasco Pereira da Silva sempre havia defendido a inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, por violação do princípio da plenitude da tutela dos particulares (art.268º nº4 CRP), do princípio da separação entre administração e a justiça (art. 114º, 205º e ss., 266º e ss. da CRP), por fazer precludir o acesso ao tribunal por não ter sido utilizada uma garantia administrativa, por violação do princípio constitucional da desconcentração administrativa (267º, nº2 da CRP) que implica a imediata recorribilidade dos actos do subalterno, pois o superior continua a dispor de competência revogatória (art. 142º do CPA), por violação do princípio da efectividade da tutela (art. 268º, nº4 CRP) em razão do efeito preclusivo da impugnabilidade da decisão administrativa, no caso de não ter havido interposição prévia de recurso hierárquico, no prazo de trinta dias (art. 168º, nº2 do CPA), sendo o prazo para o professor excessivamente curto. Depois da reforma o legislador veio assim afastar de modo expresso a necessidade do recurso hierárquico. [9]
Questionamo-nos no entanto se mesmo na concessão de uma segunda oportunidade à administração que representa actualmente o papel da figura do recurso hierárquico, seja uma oportunidade de proceder à reapreciação da questão. E a dúvida colocasse pelo facto de, na prática quotidiana, o superior hierárquico tender a confirmar a decisão do subalterno. Se, como reconhece o ilustre professor, existe aqui uma função de composição preventiva dos litígios contenciosos, a verdade é que ela é tanto mais posta em causa por esta lógica de incorrigibilidade prática para administração, que leva o particular a não perder tempo em recursos que se revelam verdadeiramente dilatórios. É questionável a utilidade ou recomendabilidade do recurso hierárquico de que nos falam alguns administrativistas. [10] [11]
A jurisprudência tem entendido, numa posição a meio caminho, que é admissível a via contenciosa imediata quando esta implique uma restrição intolerável ou desrazoável do direito acesso tribunais. Os tribunais administrativos assim como o Tribunal Constitucional têm entendido que a exigência de recurso hierárquico tem como efeito diferir o início do prazo para a interposição de impugnação contenciosa, sem a restringir, nem acarretar a sua inutilidade, implicando simplesmente uma ordenação do processo jurisdicional. [12]

Apesar da revisão constitucional, o professor Paulo Otero continua a sublinhar que a dicotomia entre actos definitivos e actos não definitivos não perdeu utilidade, uma vez que o tipo de acto expressa a natureza da competência e o maior ou menor grau de dependência decisória do seu autor. [13] Pensamos no entanto que continuar a exigir a distinção, como faz o ilustre professor, entre definitividade ou não do acto, ou seja, se este constitui ou não o último veredicto da administração, é fazer recair sobre o particular um ónus que cabe directamente à administração. Não há qualquer preceito constitucional que o imponha nem razões do processo administrativo que o obriguem. 

Os que assumem uma posição contrária à necessidade do recurso defendem sempre ter cabido ao legislador regular o processo administrativo, estabelecendo os seus pressupostos, o exercício de uma função organizativa que não pode ser posta em causa, desde que salvaguardando o princípio da proporcionalidade nos condicionamentos impostos ao acesso à justiça. [14] Vasco Pereira da Silva argumenta contrariamente dizendo que constituindo a impugnabilidade de quaisquer actos administrativos lesivos de direitos dos particulares um direito fundamental de acesso à justiça de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias tal direito não pode ser restringindo pelo legislador à luz do art. 18º, nº2 da CRP. São assim sindicáveis os actos intermédios assim como os do termo do procedimento, os actos do superior hierárquico como os do subalterno, os actos reguladores de uma situação jurídica como os de natureza prestadora.
A exigência de impugnação administrativa prévia podia fazer o particular perder a sua pretensão por ter deixado passar o prazo para fazê-lo, ao ponto de se deparar com um facto consumado no momento em que recebe a decisão judicial de rejeição da impugnação.
Os autores favoráveis à manutenção da existência do recurso hierárquico necessário objectam dizendo que em legislação especial  é legitimia a existência da necessidade do recurso uma que precisamente esta é especial em relação à regra geral do CPA.Vasco Pereira das Silva discordando frontalmente replica chamando à atenção que as regras ditas especiais são apenas uma confirmação da “regra geral” da impugnação hierárquica necessária. Defende por isso uma caducidade das normas previstas em legislação especial, pelo desaparecimento das circunstâncias de direito que as justificavam. Estas previsões em lei especial seriam desprovidas de consequências contenciosas uma vez a alteração do regime previsto do CPTA.

A voz mais sonante na defesa do recurso hierárquico necessário tem sido a de Mário Aroso de Almeida dizendo que apesar de a regra geral do CPA ter sido revogada, a eventual existência de regras especiais ou regime similares em lei especial não era afectada. Para afastar estas disposições avulsas teria que haver disposição expressa do legislador. [15] [16]
Para Vasco Pereira da Silva há, nesta linha de pensamento, a criação de uma nova categoria: o “recurso hierárquico desnecessário necessário”, opondo-se veemente à manutenção da figura em legislação avulsa. Seria para o professor uma violação do princípio da igualdade de tratamento dos particulares perante a Administração e perante a justiça administrativa criarem-se “privilégios do foro” para certas categorias de actos administrativos. Aduz ainda que o CPTA estabelece um princípio de “promoção do acesso à justiça” (art.7º do código), segundo o qual o mérito deve prevalecer sobre as formalidades, o que implica que devam ser evitadas “diligências inúteis” (art.8º, nº2 do Código). [17]
No entanto é questionável se o bom funcionamento do sistema de justiça administrativa não é afectado. Pensamos pois que o eficaz funcionamento das garantias administrativas poderia servir de “filtro” a litígios susceptível de ser preventivamente resolvidos. A menos que se consagre a proposta do professor, de iure condendo, o legislador determinar que “não apenas tem efeito suspensivo o prazo de impugnação contenciosa, mas também efeito suspensivo a própria execução da decisão administrativa, generalizando assim a todas as garantias administrativas o regime jurídico que se encontra estabelecido para os casos de recurso hierárquico necessário” concretamente o que consta do artigo 170º do CPA que dispõe que “o recurso hierárquico necessário suspende a eficácia do acto recorrido, salvo quando a lei disponha em contrário ou quando o autor do acto considere que a sua não execução imediata crie grave prejuízo para o interesse público”. [17] [18]

A inaplicabilidade do art. 59º, nº 4 e 5 do CPTA
Em relação às impugnações administrativas necessárias instituídas em legislação avulsa coloca-se a questão da inaplicabilidade do art. 59º nº 4 e 5. A utilização dos mecanismos de impugnação administrativa necessária, exigida em procedimentos especiais, não suspende o prazo contencioso, ao contrário do que dita o nº4 do art.59º, dado que este prazo ainda não teve inicio, e só o terá após o esgotamento da via procedimental.[19]

O recurso hierárquico necessário e os direitos dos militares
A defesa nacional é uma obrigação do Estado, no âmbito de uma tarefa fundamental de garantir a independência nacional que o artigo 9º, alínea a) da CRP lhe comete. De acordo com o artigo 273º da CRP, é obrigação do Estado assegurar a defesa nacional, a qual têm por objectivos garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa.
Na “constituição militar” há um conjunto significativo de normas atinentes ao direito militar: umas, incidem expressamente sobre a disciplina militar: das Forças Armadas (artigos 27º, nº3 alínea d), 164º, alínea d), e 274º, nº2); outras, reflectem-se, inevitavelmente, no direito disciplinar militar (artigos 30º, nº4, 32º, 164º alínea o), 165º alínea d), 199º alínea d), 266º, 268º, 269º, 270º e 271º).
Com a lei nº 1/82, de 30 de Setembro, foi “ultrapassada a separação então existente entre a Administração Pública e as Forças Armadas, que resultava da organização do poder politico estabelecido no período de transição posterior a 1976”. Com a 1ª revisão constitucional, face à inserção sistemática do artigo 270º e com a alteração da denominação do título X da parte terceira da Constituição “Defesa Militar” – ficou sublinhada a recusa de uma concepção das Forças Armadas como uma comunidade separada de ordenamento interno autónomo.
Da conclusão de que “ forças armadas são parte integrante da Administração Pública” decorre que o direito disciplinar militar se enquadra no âmbito mais vasto do direito sancionatório público, valendo quanto a ele o que prescreve o nº3 do artigo 269º da Constituição, quanto ao regime da função pública – em processo disciplinar são garantidas ao arguido a sua audiência e defesa. Como afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira “as Forças Armadas são ainda um elemento constitucionalmente endógeno à constituição.” [20] 
A lei constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, eliminou o preceito (artigo 215º, nº3), introduzido pela lei que fez a 1ª revisão constitucional, segundo o qual a lei pode atribuir aos tribunais militares competência para a aplicação de sanções disciplinares. Com esta eliminação ficou definitivamente prejudicada a discussão doutrinal e jurisprudencial sobre a admissibilidade constitucional de a lei ordinária estatuir os tribunais militares como jurisdição competente para julgar recursos de decisões disciplinares de certos órgãos da administração militar.
Apesar de toda as preocupação do legislador em disciplinar o regime jurídico dos militares a verdade é que o poder executivo tem nos últimos anos enfrentado um problema grave no que concerne na eficácia das medidas disciplinares aplicadas. É que os militares não têm aceitado as sanções aplicadas e recorrem a tribunal para as contestar e os tribunais administrativos têm decidido a favor dos militares sempre que em contenda esteja em causa uma sanção disciplinar prevista no Regulamento de Disciplinar Militar.
É no meio deste périplo jurídico que surgiu a lei 34/2007, alterando as regras de competência, em razão da matéria, dos tribunais administrativos, impondo-lhes a presença de juízes militares (solução que surge como alternativa à consagração de tribunais militares fora do tempo de guerra, solução não aceitável atendendo à letra do artigo 213º da constituição.)

A lei espelha as medidas que se pretendeu adotar:
Em primeiro lugar, no que toca às providência cautelar conservatória da suspensão de eficácia, impedir a “proibição automática de executar acto administrativo, prevista no artigo 128.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)”, quando “seja requerida a suspensão de eficácia de um acto administrativo praticado ao abrigo do Regulamento de Disciplina Militar”. Em Segundo, no mesmo âmbito dessa providência cautelar, condicioná-la a determinados critérios especiais, como sejam, o “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado” e a evidente “procedência da pretensão, formulada ou a formular no processo principal”(artigo 3.º), com a previsão ainda do modo processual de “decretamento provisório das providências cautelares de suspensão de eficácia de actos administrativos que apliquem as sanções disciplinares previstas no Regulamento de Disciplina Militar”, passando pela obrigatoriedade da audição prévia da entidade requerida (artigo 4.º).
Fica assim pervertido o efeito útil das providências cautelares.

Em terceiro, pretende o legislador fixar a competência da Secção de Contencioso Administrativo de cada Tribunal Central Administrativo para “conhecer, em 1.ª instância, dos processos relativos a actos administrativos de aplicação de sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas”, fazendo intervir nos tribunais juízes militares (artigos 6.º e 7.º). Existe uma alteração das regras da distribuição da competência, em razão da matéria, pois segundo as regras gerais de distribuição da competência do CPTA os Tribunais Centrais Administrativos nunca são competentes em primeira instância. Perante o artigo 37.º do RDM  pretende-se assim uma competência residual, em 1.º grau, para um aspecto muito específico relativo a processos que têm a ver com a “aplicação de sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas”, só porque isso vai permitir à intervenção de juízes militares (o julgamento em secção, face ao disposto no artigo 35.º, “compete ao relator e a dois outros juízes” um deles militar).

Em quarto, e o que interessa directamente para o presente trabalho, o estabelecimento de recurso hierárquico necessário. E é aqui que cabe uma crítica que não pode deixar de ser, se nos é permitido, arrasadora. Um dos direitos fundamentais da Constituição Administrativa é o da Tutela Jurisdicional efectiva, pois também os militares têm direito acesso justiça, mesmo no âmbito de um processo cautelar. É o que resulta da norma do artigo 268.º, n.º 4, conjugada com o principio geral do acesso ao direito e aos Tribunais, consubstanciado na garantia da via judiciária do artigo 20.º, cujo n.º 4 que assegura “aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade”, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais. Os artigos 1º a 7º da presente lei estão enfermos de inconstitucionalidade material por contrariedade com os referidos artigos da constituição.

O considerando de que “ as Forças Armadas são parte integrante da Administração Pública” não significa que não devam ser devidamente consideradas e ponderadas as especificidades da justiça disciplinar militar. Não é isso que estamos a tentar defender. Defendemos apenas que atendendo à natureza das sanções disciplinares militares deve existir um reforço das garantias do arguido em processo disciplinar ,ainda que as operações militares e a prevalência no foro militar do princípio do comando levem a considerar as especificidades da situação. Tal não se nega. Mas argumentar, como na sociedade portuguesa a certa altura se fez, de que estaria em causa a disciplina militar é negar a imparcialidade, independência e a competência dos tribunais para decidir segundo o direito. [21]

Concluimos assim que uma das implicações da inclusão das Forças Armadas na administração pública é a susceptibilidade de recurso contencioso dos actos administrativos que se traduzem na aplicação de sanções disciplinares a militares e que por isso devem poder aceder à justiça administrativa em igualdade de circunstâncias com os restantes cidadãos, fundamentalmente quando estejam em causa sanções privativas de liberdade, por força da garantia geral que é dada aos administrados, no artigo 268º, nº4, da CRP de tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e em razão da garantia         que é dada ao arguido em processo disciplinar, no artigo 269º nº3 uma vez que “a última instancia do direito de defesa em matéria disciplinar é a possibilidade de recurso contencioso, que vale para todas as decisões disciplinares. 
Assim estatuía o RDM, nos termos do qual cabe reclamação e ou recurso hierárquico necessário das decisões em matéria disciplinar e impugnação contenciosa das decisões proferidas pelo Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas ou pelos chefes de estado-maior dos ramos (artigos 121º e 133º).

O quase fim do recurso hierárquico necessário para as patentes militares
No acórdão do tribunal constitucional nº229/ 2012, publicado em 23 de Maio de 2012 em Diário da República, os juízes do TC assumem uma posição frontalmente contrária aos argumentos da existência de especialidade que legitimam a continuação de lei especial impondo a necessidade do recurso. Diz o tribunal que “em suma, a regra estabelecida no n.º 1 do artigo 51.º do RDM não acautela a utilidade da impugnação judicial quando, após decisão do recurso hierárquico, impõe que a sanção de prisão disciplinar militar seja cumprida de imediato.” A inconstitucionalidade da norma está na razão de esta prever que “o cumprimento da pena de prisão disciplinar tenha lugar logo após ter sido negado provimento ao recurso hierárquico apresentado, sem que seja garantida, no Regulamento de Disciplina Militar, a possibilidade de impugnação junto do tribunal competente, em tempo útil”.

Não esquecendo que a "hierarquia e a disciplina assumem, em nome do superior interesse da eficácia e da eficiência da defesa nacional e das Forças Armadas (artigos 273.º e 275.º da Constituição), uma importância sem paralelo na generalidade dos domínios da Administração Pública, tem certamente um efeito útil que a pena disciplinar de repreensão possa ser executada com a mínima dilação possível em relação ao momento da prática da infração", existe para o tribunal uma violação do 27º, nº3, alínea d), uma vez que nele é garantido o recurso para o tribunal competente quando seja aplicada prisão disciplinar. O tribunal desconsidera o argumento de que os militares ainda que confrontados com a necessidade do recurso, teriam sempre a possibilidade de recorrer a mecanismos cautelares. A verdade é que para o tribunal a tutela dos direitos dos militares tem que ser efectiva, dizendo que se assim não fosse não seria possível ao militar “uma utilização ainda útil do recurso aos tribunais”, visto que as medidas de suspensão da eficácia do acto no RDM não dão lugar à suspensão imediata da execução da sanção disciplinar militar, nem assegura necessariamente, a utilidade da discussão judicial da sanção.

Não é razoável a distinção que o tribunal faz tendo em conta a divergência de sanções aplicada aos militares, quanto a sua natureza e gravidade. Como já referimos supra a manutenção do requisito da necessidade no recurso hierárquico militar é desconsiderar a competência dos tribunais administrativos na apreciação imparcial do litigio.  O  tribunal decide que o disposto no artigo 51.º, n.º 2, e no artigo 123.º, n.º 2, que preveem a execução imediata das penas de repreensão e repreensão agravada (sem que o recurso hierárquico tenha o efeito suspensivo que possui nas hipóteses de aplicação de outras penas), não violam, nem o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2), nem as garantias de defesa em processo disciplinar (artigo 32.º, n.os 1 e 10), nem a tutela jurisdicional efetiva garantida no artigo 20.º, n.º 1. Já para a pena de prisão disciplinar que consiste «na retenção do infrator por um período de um a 30 dias, em instalação militar, designadamente no quartel ou a bordo do navio» (artigo 35.º do RDM),  a regra estabelecida no n.º 1 do artigo 51.º do RDM será contrária à constituição porque  "não acautela a utilidade da impugnação judicial quando, após decisão do recurso hierárquico, impõe que a sanção de prisão disciplinar militar seja cumprida de imediato, a possibilidade de execução da pena de prisão disciplinar logo após o indeferimento do recurso hierárquico não garante a efetividade do controlo jurisdicional que venha a ser instaurado". Mal andou o TC em chamar a atenção para o facto de a natureza das sanções disciplinares ser diferente, não reconhecendo o direito dos militares a uma tutela jurisdicional efectiva, criando privilégios de foro incompreensíveis.[22] [23]

Contudo, não concedemos na questão da competência dos tribunais administrativos. Na verdade existem razões técnica e sobretudo de sensibilidade das matérias tratadas para que sejam juízes militares a apreciarem as causa, uma vez que está indirectamente em causa a segurança nacional.

Sabemos que não é pacifica a intervenção de juízes militares nos tribunais centrais administrativos, quando conhecem em 1ª instância, dos processos relativos a actos administrativos de aplicação das sanções disciplinares de detenção ou mais gravosas (artigos 6.° e 7.° da Lei n.° 34/2007, de 13 de Agosto, e Lei n.° 79/2009, de 13 de Agosto). Isto porque o artigo 211.°, n.° 3, da CRP prevê apenas, de forma expressa, que os juízes militares integrem a composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes de natureza estritamente militar. Mas, como referem os professores Jorge Miranda e Rui Medeiros, se assim é “no domínio dos crimes estritamente militares – em que prevalece o elemento objectivo – por maioria de razão há-de ser assim no domínio disciplinar – em que avulta o estatuto específico dos membros das Forças Armadas.”[24]


[1] - JEAN RIVERO Droit Administratif, 1980, pág. 209 e ss e 237 e ss. -  o autor distingue o recurso por excesso de poder e o recurso de plena jurisdição.
[2] – JESUS GONZÁLEZ/FRANCISCO NAVARRO, Comentarios A La Ley De La Jurisdiccion Contencioso-Administrativa, Civitas, 1999, pág.2282.
[3] – HENRIQUE JOSÉ DE MOURA MOREIRA DA MOTA, A justiça administrativa em Itália in Documentação e Direito Comparado, Lisboa, Lisboa, Procuradoria Geral da República, 1989, nº27/28, pág. 561 e ss.
[4] –CARLOS ALBERTO CADILHA, Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2006, pág. 588.
[5] -  Neste sentido, ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, O acto administrativo, in Scientia Iuridica, vol. XXXIX, nº 223/228 (Janeiro/Dezembro 1990), pág. 34.
[6] - VIEIRA DE ANDRADE, Em defesa do recurso hierárquico necessário – acórdão n.499/99 do Tribunal Constitucional anotado, in cadernos de justiça administrativa, nº0 (Novembro/Dezembro 1996), pág.19.
[7] - MARIO ESTEVES OLIVEIRA, RODRIGO OLIVEIRA, Código anotado, pág.37
[8] – VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo perdido, pág. 660 e ss.
[9] - Não acompanhamos DIOGO FREITAS DO AMARAL, Considerações Gerais sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, Lisboa, Ministério da Justiça, vol. I, 2000, pág. 89-90, quando defende que a elimianção do recurso hierárquico necessário levará um aumento exponencial dos processos nos tribunais administrativos, com eventual paralisação da administração. Consideramos que se tal facto ainda não ocorreu desde a reforma do contencioso, é dificil vislumbrar quando irá suceder.
[10] – VASCO PEREIRA DA SILVA – De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico necessário, in Cadernos de Justiça Adminsitrativa, nº47, Setembro/Outubro 2004, pág. 26-27
[11] - Defendendo a constitucionalidade do recurso hierárquico necessário pela possibilidade de o particular solicitar a adopção de providências cautelares, SÉRVULO CORREIA, O Incumprimento do Dever de Decidir, in Estudos J. e Econ. em Homenagem ao Prof. Doutor Ant. de Sousa Franco, FDUL Edit., 2006, p. 218 e 226
[12] - Ac. do TC nº 499/96, de 20.3.1996 e Ac. do STA 17.11.1994 – boletim ministério justiça, nº 441, pág.88 e ss.
[13] – PAULO OTERO – As garantias contenciosas dos particulares no Código do Procedimento Adminsitrativo, in Scientia Iuridica, vol. XLI, nº 235/237 (Janeiro/Julho 1992), pág. 58 e ss.
[14] – PEDRO GONÇALVES, Relações entre as Impugnações Administrativas Necessárias e o Recurso Contencioso de Anulação de Actos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1996, pp. 29, 42 ss– defendo o recurso hierárquico necessário e afirmando que o respeito pela hierarquia administrativa só se consegue através da exigência de uma segunda decisão administrativa, pág. 38-39.
[15] – MÁRIO AROSO DE ALMEIDA – O novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2º ed., Almedina, Coimbra, 2003, p.139.
[16] - MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - Implicações de direito substantivo da reforma do contencioso administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº34, pág. 69.
[17] - VASCO PEREIRA DA SILVA – De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico necessário, in Cadernos de Justiça Adminsitrativa, nº47, Setembro/Outubro 2004
[18] - Defendendo a criação de organismo adminsitrativos independentes para uma apreciação extra-judicial dos conflitos, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - Implicações..., ob. cit. pág. 73
[18] - Referindo que em virtude da regra da suspensão dos prazos, se “acaba por transformar a impugnação administrativa facultativa em impugnação recomendável” – PAULO OTERO, “Impugnações administrativas”, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 28, Julho/Agosto de 2001, pp. 50 e ss.
[19] - GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007
[20] – ver noticia Jornal Económico, dia 28 de Setembro de 2012
[21] - A  prisão disciplinar imposta a militares constitui uma exceção à reserva de decisão judicial em matéria de penas privativas da liberdade, prevista no artigo 27.º, n.º 2, da Constituição, ao admitir -se a sua imposição em virtude de uma decisão administrativa [n.º 3, alínea d)].
[22] – Acórdão disponível em http://dre.pt/pdf1sdip/2012/05/10000/0272602741.pdf, ver especialmente as declarações de voto dos Concelheiros Maria Lúcia Amaral e Vitor Gomes em sentido divergente quanto à matéria em análise.
[23] – CARLA MARTINS PICA, Cadernos Navais, nº8, Janeiro-Março 2004
[24] - JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, Tomo III, p.155.

Pedro Miguel Pereira, 19816, subturma 6

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