domingo, 25 de novembro de 2012

O Procedimento Cautelar e o tiro aos pombos


Uma nota prévia sobre as minhas pretensões.
Tenho como objectivo revisitar os diversos pontos da matéria das providências cautelares, incidindo na matéria respeitante ao decretamento provisório da providência do art.131.º, ao qual aludirei com um exemplo concreto da Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa de 26 de Fevereiro de 2004 (Acórdão n.º17, Elementos de estudo de Contencioso Administrativo) a respeito de um tema, para mim, essencial, para o Direito nem tanto - os Direitos dos Animais.


O Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante CPTA, consagra no seu art.112º, uma “cláusula aberta em sede de providências cautelares”(Elementos de Estudo de Contencioso Administrativo, p.275). Desta feita, o CPTA concretiza o imperativo constitucional assente no art. 268º/4 CRP que consagra a susceptibilidade de quem possuir legitimidade (art.9º e ss. CPTA) para intentar um processo junto dos Tribunais Administrativos poder requerer providências, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a garantir a utilidade da lide principal. O intuito da providência conservatória será a manutenção de um “ status quo ante”, com particular incidência no domínio dos processo impugnatórios (de processos destinados a obter a anulação de um acto administrativo ou de uma norma), enquanto que, por sua vez, as providências antecipatórias visam a atribuição ou a regulação provisória de um direito ou de uma situação, pretendendo, assim, a constituição de uma situação jurídica nova.

Do exposto retira-se que o processo cautelar visa a obtenção de uma composição provisória do litígio, de forma a evitar possíveis lesões na esfera jurídica do requerente, em virtude do normal retardamento do processo que tenha sido ou venha a ser intentado para dirimir, a título definitivo, a situação jurídica em questão. Está em causa o periculum in mora, que significa que a providência deve ser concedida “desde que os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio de que, se a providência for recusada, se tornará depois impossível, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, viabilizar a reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade”(Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª Ed., pp.291 e 292). Como bem salienta Vieira de Andrade,( in “A Justiça Administrativa, 4ª ed., pág.298”), o juiz deve “fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por entretanto se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deveria beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua esfera jurídica”. 

É, assim, aferível a relação de interdependência vigente entre a providência cautelar e a “causa que tem por objecto a decisão de mérito sobre a questão substantiva”, isto é, o processo principal, podendo o processo cautelar ser intentado preliminarmente ou como incidente deste processo, como se retira do art.113º CPTA. Contudo, é fundamental o entendimento de que, não obstante a inequívoca relação de interdependência e instrumentalidade com a causa principal, o processo cautelar tem uma tramitação autónoma, que se encontra “especificamente regulada nos artigos 114º e ss. do CPTA, devendo correr por apenso ao processo principal, quando seja intentado simultaneamente ou na pendência deste, ou a ele ser apensado, quando seja apresentado previamente à instauração do processo principal (art.113º/2 e 3 CPTA)”.

Os critérios a ter em consideração pelo juiz aquando da procedência, ou não, da providência cautelar estão patenteados no art. 120º CPTA e, como salienta Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, pp.566 e ss., podem reconduzir-se a “cinco diferentes tipos de situações”: à luz da alínea a) do artigo 120º CPTA, a providência será decretada quando “seja evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal”. Esta situação abrange qualquer tipo de providência cautelar, seja ela antecipatória ou conservatória, sendo plenamente operacional, independentemente do preenchimento dos requisitos enunciados na disposição legal enunciada. De relevar, contudo, que não bastará a mera aparência do direito, dado que se exige uma “situação de evidente procedência do pedido a deduzir no processo principal”, hipóteses que a própria norma exemplifica com referência aos casos em que a discussão verse sobre “impugnação de acto manifestamente ilegal, de acto de aplicação de norma já anteriormente anulada ou de acto idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente”; Fora este caso, “que se reveste de carácter excepcional”, a alínea b) do artigo supra citado transmite a inequívoca exigência do periculum in mora, demonstrando-se a susceptibilidade séria e gravosa da ocorrência de um “prejuízo para a esfera jurídica do requerente por via do retardamento da causa principal”, bem como a verificação de um non fumus malus, nomeadamente, no excerto que indica “ e não sendo manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito”, ou seja, é imprescindível um “juízo de não improbabilidade de procedência da acção”. Por seu turno, a alínea c) do artigo 120º/1 CPTA indica que uma providência antecipatória pode ser adoptada sempre que “haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente pretende ver reconhecidos no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”, isto é, estão aqui acantonados os requisitos fundamentais e típicos da tutela cautelar: o previamente citado periculum in mora e o fumus bonis iuris. O fumus bonis iuris corresponde ao conceito comum de “boa aparência do direito”, mas é controvertida a utilização do vocábulo “aparência”, em virtude da possibilidade de interpretação dúbia que dele pode derivar, uma vez que ao invés de ser entendido como “o que se mostra à primeira vista”, pode culminar na interpretação errónea de que “parece a realidade sem efectivamente o ser”. Independentemente desta questão menor, o que se exige é que o juiz possa formular um juízo positivo sobre a probabilidade de a acção vir a ser julgada procedente, correspondendo assim ao conceito comum, tomado pela Doutrina maioritária, de boa aparência do direito.

Em todo o caso, com se afere pelo nº2 do artigo 120º CPTA, as providências podem ser recusadas mesmo quando estejam preenchidas as situações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior do artigo citado. Está subjacente o “princípio da proporcionalidade, que permite ao juiz corrigir a solução que poderia decorrer da estrita aplicação dos critérios do periculum in mora e do non fumus malus (ou do fumus boni iuris). Está em causa uma ponderação de interesses, do requerente por um lado, e da entidade requerida ou dos contra-interessados, por outro, de modo a impedir que o decretamento ou não decretamento da providência possa tornar-se demasiado oneroso para uma das partes. 

A última situação enunciada pelo Autor refere-se ao nº6 do artigo 120º CPTA, “quando no processo principal esteja apenas em causa o pagamento de quantia certa (...)”. Trata-se de um critério de decisão autónomo, que possibilita a adopção de uma providência cautelar quando, por estar em causa apenas o pagamento de uma quantia, fiquem salvaguardados os interesses contrapostos dos requeridos através da prestação de uma caução ou de outra forma de garantia patrimonial.

Face a este apanhado geral, partiremos para a análise da Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa de 26 de Fevereiro de 2004, onde estudaremos outros pontos importantes, e um pouco mais específicos, atinentes à matéria dos procedimentos cautelares, com maior incidência no decretamento provisório da providência, patente no art.131.º CPTA, sendo também possível a concretização ou reiteração de algumas das ideias expostas supra.

Numa breve contextualização, os factos reportam à requerente ANIMAL - Associação Nortenha de Intervenção no Mundo Animal - “associação zoófila, que tem como fins, entre outro a defesa activa dos direitos dos animais e o combate, por via de meios legais, de situações (...) que traduzam ou impliquem crueldade em animais”, que vem intentar contra a “Federação Portuguesa de Tiro com Armas de Caça” e o “Clube de Tiro e Caça de Elvas” um procedimento cautelar ao abrigo do art.268.º/4 CRP, e dos artigos 381.º e ss. do CPC ex vi do art.1.º e 112.º e ss. do CPTA e do art.10.º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, pedindo que estes se abstenham de realizar os concursos de tiro a alvos vivos previstos para os dias 27 e 28 de Fevereiro bem como de levar a cabo estas provas em qualquer outra data, entre outros pedidos, bem como o requerimento da não audição prévia dos interessados, requerimento esse que será indeferido pelo Tribunal, ao abrigo do art.130.º/4 CPTA.

Ora, quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos Tribunais Administrativos, pode, ao abrigo do art.112.º CPTA, e em cumprimento estrito da garantia constitucional, solicitar a adopção de quaisquer providências que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal.

Em qualquer caso, terão que ser cumpridos, pelo menos, os requisitos substantivos de concessão das providências estabelecidos no processo administrativo.

Ao juiz pede-se, agora, tudo aquilo que seja adequado e que ele possa fazer com respeito pelos espaços de avaliação e decisão próprios da Administração (Prof.Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa).

Em suma, a lei estabelece a universalidade dos conteúdos e a universalidade das providências susceptíveis de serem pedidas e concedidas.

Ao abandonar a ideia de suspensão de eficácia de actos administrativos que nos reconduzia à utilização do CPC, o alargamento da tutela cautelar no âmbito do contencioso administrativo, confere ao juiz amplos poderes nesta matéria, nomeadamente o poder de decretar providências cautelares, em cumulação ou em substituição daquela que tenha sido concretamente requerida quando tal se considere necessário a evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente e seja menos gravoso para os demais interesses em presença.

A possibilidade de decretamento provisório de providências cautelares, ao abrigo do Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva, subsume-se ao art.131.º CPTA, para situações de especial urgência, com dispensa de quaisquer formalidades ou diligências, designadamente a audição prévia do requerido, que tal como acima mencionado, não se verifica neste caso, por indeferimento do Tribunal, que considerou que a audição prévia dos requeridos não implicava demora no deferimento da providência, susceptível de conduzir à inutilidade do procedimento cautelar.

Algumas notas sobre a referida urgência do processo e a consequente summaria cognitio da questão pelo juiz.
A urgência do processo é exigida pelo periculum in mora e traduz-se na qualificação legal dos processos cautelares como processos urgentes, com tramitação célere, tendo contudo sempre em atenção a sua distinção em relação aos processos urgentes autónomos, na medida em que estes são processos principais e visam a produção de decisões de mérito. 

O próprio conceito de providência cautelar, ao visar a garantia da utilidade da sentença, pressupõe a existência de um perigo de inutilidade, total ou parcial, resultante do decurso do tempo e, especialmente no direito administrativo, da adopção ou da abstenção de uma pronúncia administrativa.

Associada também à urgência, encontra-se a designada summaria cognitio, característica que se aceita por se tratar de medidas que não são definitivas.

Tendo em atenção a necessidade actual de consideração do fumus boni iuris, a “sumaridade manifesta-se na mera exigência de um juízo de probabilidade ou verosimilhança sobre a existência do direito que se pretende acautelar”(Prof.Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa p.364).

Ao reconhecer e ao conferir relevo fundamental a este fumus boni iuris, abandona-se um dos corolários do dogma da “presunção de legalidade do acto administrativo”. O juiz tem agora o poder e o dever de, ainda que em termos sumários, avaliar a probabilidade da procedência da acção principal, isto é, em regra, de avaliar a existência do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que ele diz existir, ainda que esteja em causa um “verdadeiro” acto administrativo (Prof.Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa p.352).

Esta “aparência do direito” será o único factor relevante para a decisão de adopção da providência cautelar em caso de evidência da procedência da pretensão principal.

O decretamento provisório imediato das providências cautelares nos termos do referido artigo 131.º, pretende assegurar a efectividade do próprio processo cautelar e do eventual decretamento da providência.
Este é um aspecto suplementar do regime cautelar, valendo para qualquer providência em situações de especial urgência, tratando-se, assim, de um procedimento célere de decretamento, a título provisório, de providências cautelares onde se pretende evitar o periculum in mora no próprio procedimento cautelar.

Torna-se claro, desta feita, que se o presente procedimento seguisse a tramitação prevista nos art.114º a 127.º, relativas à tramitação normal de um procedimento cautelar, a decisão que viesse a ser proferida não teria qualquer finalidade no final, na medida em que o prazo do concurso teria decorrido e as vidas dos animais teriam sido inevitavelmente perdidas, podendo mesmo resultar na falta de decisão, visto que a lide, tornar-se-ia supervenientemente inútil, culminando com a extinção da instância.

Com base no princípio da tutela jurisdicional efectiva, visto do art.130.º/3 não ser passível de retirar claramente a solução, pode o juiz, pelo menos quando estiver em causa a lesão iminente e irreversivel de direitos, liberdades e garantias, decretar provisoriamente a providência requerida ou, reiterando o que acima foi dito, outra que julgue mais adequada, mesmo que o decretamento provisório não tenha sido pedido. A estas situações o Prof. Vieira de Andrade denomina de processo “pré-cautelar” e assim o faz também o acórdão em análise.

Como já vimos, tratando-se de uma decisão cautelar provisória poderia ser decretada sem contraditório e sem necessidade de aplicação dos critérios estabelecidos no art.120.º, bastando, para isso, para além do interesse em agir, a verificação da especial perigosidade para direitos, liberdades e garantias ou para outros bens jurídicos em situação de especial urgência, não estando sujeita a impugnação, pois estará sujeita a uma posterior confirmação, como decorre do n.º5 do art.131.º CPTA.

Diz-nos o acórdão que atendendo que o que releva no “processo pré-cautelar previsto no art.131.º CPTA, é a avaliação que o Tribunal faz da urgência, consideramos que deve a providência cautelar requerida ser decretada a título provisório, devendo posteriormente ser objecto de análise e decisão nos termos do n.º6 do mesmo preceito legal”.

Quanto a este ponto, o Prof. Viera de Andrade apresenta a figura da “decisão provisória revista”, com base num contraditório pleno, que irá vigorar até a decisão cautelar definitiva.

Pode, todavia, o juiz tomar uma decisão cautelar definitiva que, a ser esse o caso, terá que obedecer aos critérios normais de decisão do art.120.º, enunciados com maior detalhe supra.

Decretada provisoriamente a presente providência cautelar devem os requeridos abster-se de realizar os concursos de tiro aos pombos previstos para os dias 27 e 28 de Fevereiro, bem como de levar a cabo estas provas em qualquer outra data e bem assim abster-se de matar, ferir ou deixar morrer quaisquer animais que se encontrem em seu poder.

“Há um tempo necessário para se julgar bem” (Prof. Vieira de Andrade), é tempo de se julgar bem.



Laura Falcão
19474

Bibliografia

ALMEIDA, Mário Aroso de; O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª Ed., pp.291 e 292 

AMORIM, Tiago; «As providências cautelares do CPTA: um primeiro balanço», in Cadernos de Justiça Administrativa, Nº 47, 2004.

ANDRADE, José Carlos Vieira de; A Justiça Administrativa (Lições), 10ª Edição, Almedina, 2009.

CADILHA, Carlos Alberto Fernandes; Dicionário de Contencioso Administrativo CLARO, João Martins; 

CORREIA, J.M.Sérvulo; LEITÃO, Alexandra; Elementos de Estudo de Contencioso Administrativo, 2005, AAFDL, Lisboa.

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