Todos artigos referidos sem remissão
expressa para o diploma legal correspondem ao Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, vulgo CPTA.
I.
A jeito de intróito e como referência
informativa passo, desde já, a justificar o presente título e consequentemente
o modesto trabalho. Seguia eu, a velocidade cruzeiro, nas leituras de
contencioso quando deparei-me com um pequeno trecho acerca do carácter
excepcional das sentenças substitutivas
pelos tribunais administrativos. Se tal afloramento levaria o magnânimo e
eminente jurista Mouzinho da Silveira,
autor do célebre ensinamento “A mais bela
e útil descoberta moral do século passado [século XIX] foi, sem dúvida, a
diferença entre administrar e julgar” a dar e redobrar voltas no túmulo.
II.
O
nosso legislador ordinário apenas consagrou tal hipótese nos processos urgentes, que visem um imposição
judicial, em princípio e como destinatário a Administração, para a prática de
actos administrativos. Em especial, a
Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, regulada
nos artigos 109.º a 111.º, sendo um meio processual principal de carácter
urgente, que se enquadra, e que constitui a concretização, no plano processual,
do disposto no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição. O processo tem em vista um
efeito condenatório (remetemos a definição para mais adiante), artigo 109.º,
n.º 1. No entanto, quando o interessado pretenda a emissão de um acto administrativo
estritamente vinculado, a sentença tem natureza constitutiva, produzindo ela
própria, sem necessidade de actos posteriores, os efeitos do acto devido,
artigo 109.º, n.º 3. No primeiro caso, o tribunal emite uma pronúncia condenatória
semelhante àquela que pode ser obtida no âmbito de uma acção de condenação à
prática do acto devido ou numa acção de condenação na prestação de facto. No segundo
caso, o tribunal substitui-se à Administração na prática do acto devido, solução
que se mostra justificada pelo carácter urgente do processo e que corresponde a
uma antecipação do processo executivo, artigo 167.º, n.º 4.
III.
Importa, desde já, definir a designação
de sentença, nos termos do art. 156.º, n.º 2, do CPC, o acto pelo qual o juiz
decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de causa.
No presente manifesto interessa-nos em especial ter em consideração as
sentenças em que o juiz profere uma decisão de fundo ou uma decisão de mérito
sobre a causa principal. Perante o exposto, excluímos, necessariamente, tanto
as sentenças formais (as que observem a absolvição da instância por falta de
pressuposto processual, existindo uma excepção dilatória não suprível) como as
que decidem meros incidentes processuais.
De modo a complementar e a facilitar a
leitura do artigo, iremos proceder a uma pequena e abreviada classificação das
sentenças existentes em processo (seja administrativo ou civil). Referir que a
classificação do tipo de sentença corresponde ao respectivo pedido, às espécies
de acções quanto ao fim. Entre as sentenças declarativas (proferidas em sede
declarativa), temos as sentenças de simples
apreciação (sentenças declarativas em sentido estrito), art. 4.º, n.º 2,
alínea a), do CPC; art. 2.º, n.º 2, alíneas a), b), c), d), 2ª parte e h), onde
o tribunal declara a existência ou inexistência de um direito ou facto. As sentenças condenatórias, por sua vez,
estabelecem um comando impositivo, um dever de realizar um facto, positivo ou
negativo, entregar uma coisa ou quantia pecuniária, art. 4.º, n.º 2, alínea b,
do CPC; art. 2.º, n.º 2, alíneas e), f), h), j) e l). Como em processo civil,
as sentenças podem ser de condenação
genérica (quantitativamente), quando não seja possível, no momento da
decisão concretizar a liquidez da prestação. No âmbito da acção administrativa
especial, no pedido condenatório do órgão à prática do acto devido (art. 71.º,
n.º 1), quando a emissão do acto envolva apreciações e valorações próprias do
exercício da função administrativa, i.e., quando a essência do acto não importe
um única e vinculada solução seja por condicionante legal ou seja por uma
eventual “redução da discricionariedade reduzida a zero” no caso concreto – o
julgador terá que proferir uma decisão de condenação genérica
(qualitativamente), apenas com as indicações vinculativas que puder retirar das
normas jurídicas aplicáveis, tendo em especial atenção e sem pôr em causa a
autonomia (face ao autor) da decisão administrativa (art. 71.º, n.º 2). Não confundir
com as sentenças substitutivas.
Nestas, o julgador actua e entra na equação como executor. Naquelas o juiz
apenas se limita a condenar a Administração numa imposição de fazer, diz ao órgão
“Faça!”. As sentenças constitutivas produzem ou autorizam uma
alteração da ordem jurídica existente, criando, modificando ou extinguindo uma relação
ou situação jurídica, art. 4.º, n.º 2, alínea c), do CPC, art. 2.º, n.º 2, alínea
d), primeira parte.
As sentenças administrativas são como em
processo civil reconduzidas e limitadas a tipos gerais, os acima mencionados, perguntará
o leitor qual a natureza das sentenças
substitutivas.
Somos levados a concluir que a sentença
substitutiva de um acto administrativo (vinculado) é a decisão proferida pelo
tribunal que cria, extingue ou modifica uma relação jurídico-administrativa. Uma
sentença que substitui um acto administrativo, em última análise, estará,
portanto, a criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica administrativa,
ou a afectar a situação jurídica de uma determinada coisa. A sentença
substitutiva tem como efeito lógico e necessário constituir uma relação ou uma situação
jurídica, apenas, por força da própria sentença.
Importa ter presente que, nos casos em
que a sentença substitui os actos administrativos (que não carecem de execução),
a sentença funciona como título jurídico “executivo”, sendo necessária a mesma
para a concretização material da pretensão do autor (v.g., construção de um
determinado edifício, uso do bem público, etc.)
A sentença não se confunde com a tutela jurisdicional,
a sentença é apenas um modo através da qual a protecção jurídica é efectivada. A
sentença substitutiva (da declaração da vontade da Administração), em
princípio, depende de posterior execução forçada (materialidade do acto). Uma vez
proferida a sentença, o direito já se encontra tutelado. Trata-se, portanto, de
uma sentença satisfatória, no sentido de que, prestar, por si só, a tutela
jurisdicional.
IV.
Recordemos o conceito de actos
vinculados e actos discricionários, o termo discricionariedade remete-nos para
a ideia de escolha, de fazer uma coisa quando se poderia ter feito outra. Melhor,
quando a lei permitiria que se tivesse feito outra. Mas evoca também a ideia de
escolha parametrizada, isto é, uma escolha com limites. A decisão discricionária
tem de assentar numa racionalidade própria, susceptível de algum tipo de
controlo; não pode radicar num capricho (pois, caso assim fosse, seria um
escolha arbitrária, perfeitamente lícita quando feita por um cidadão, mas intolerável
e mesmo inaceitável se feita por um órgão da Administração Publica).
Concordamos com a maioria da doutrina
que afirma, categoricamente, que qualquer decisão comporta o exercício de
poderes vinculados e de poderes discricionários. Em rigor a discricionariedade não
implica um “esquecimento” do legislador, mas uma opção deste: considerou que,
para melhor prosseguir um determinado interesse público, a administração pública
deveria dispor de uma margem de decisão, por forma a poder adaptar esta à
diversidade das condições da vida que poderiam justificar a sua tomada.
Os poderes conferidos por lei à
Administração Pública ou são vinculados, ou discricionários, ou – como sucede
normalmente – são em parte vinculados e em partes discricionários. O uso de
poderes discricionários que tenham sido exercidos de modo inconveniente é objecto
dos controlos de mérito. Já o uso de poderes vinculados que tenham sido
exercidos contra a lei é objecto dos controlos de legalidade.
Acontece, não poucas as vezes,
identificar a discricionariedade com a falta de controlo jurisdicional (o
chamado hétero-controlo, que “olha” para a Administração Pública do lado de fora
desta), esta identificação resulta da verificação de que a decisão que a lei não
prescreve, não dita, não pode ser objecto dos poderes de intervenção do juiz.
Considerando que, no actual estado do nosso
sistema administrativo e com as dúvidas que fomos deixando e vamos levantar a propósito
do tema, as limitações do controlo jurisdicional têm a ver com o mérito
(compreendendo as duas ideias fundamentais: a ideia de justiça e a ideia de conveniência)
e não com a discricionariedade.
Com efeito, os tribunais administrativos
em Portugal não podem apreciar o mérito de uma decisão administrativa. Os tribunais
podem exercer o controlo de legalidade.
Por imposição da restauração da ordem
jurídica (havendo uma norma jurídica que não permita inferir qualquer
possibilidade de valoração própria), caso em que necessariamente, se tratará de
uma actividade fungível (possa ser exercida, in casu, pelo juiz administrativo,
em substituição da entidade pública incumpridora no exercício da sua competência).
V.
Numa primeira aproximação e
enquadramento geral da questão há que reflectir acerca das bases
constitucionais importantes para o efeito, de um lado o princípio da separação
e da interdependência de poderes, por outro da tutela jurisdicional efectiva em
sede de contencioso administrativo.
O primeiro conceito para o presente
estudo é o conceito de separação de poderes no campo administrativo. O princípio
da separação de poderes visou a separação entre a Administração e a Justiça,
isto é, retirar à Administração pública a função judicial e retirar aos
tribunais a função administrativa – uma vez que até aí existia uma certa confusão
entre as duas funções e os respectivos órgãos.
A nossa Lei Fundamental acolhe o
princípio da separação de poderes (artigos 2.º e 111.º) determinando, em síntese,
o seguinte: a) a separação dos órgãos
administrativos e jurisdicionais, b)
incompatibilidade de magistraturas (art. 216.º, n.º 2 da CRP), c) a independência recíproca da Administração
e da Justiça, apenas interessa no aspecto da independência da Admistraçao
perante a Justiça.
Esta pretensa independência da
Admistraçao perante a Justiça significa, hoje, não uma proibição absoluta de o
juiz condenar, intimar, ordenar, orientar, impor comportamentos à Administração
(cfr. artigo 268.º, n.º 4 da CRP, onde, além do mais, se prevê a possibilidade
de os tribunais determinarem à Administração a prática de actos administrativos
legalmente devidos), mas, apenas, o que é bem diferente, uma “proibição”
funcional de o juiz afectar a essência do sistema de administração executiva – não
pode ofender a autonomia do poder administrativo (o núcleo essencial da
discricionariedade, quando a lei confere aos órgãos da Administração poderes próprios
de apreciação ou de decisão).
A tutela judicial efectiva
caracteriza-se por, essencialmente, pela demonstração de quatros planos, o
direito de acesso aos tribunais, o direito a obter uma decisão judicial em
prazo razoável e mediante um processo equitativo (concordamos com Vieira de
Andrade, ao referir o campo simbiótico dizendo que as faculdade se
interpenetram, e dá como exemplo o prazo razoável não respeita, em rigor,
apenas à obtenção da decisão, mas também à obtenção do respectivo cumprimento
em termos eficientes) e, por fim, mas não menos importante, que nos interessa
mais, o direito à efectividade das decisões e sentenças proferidas.
No que respeita às relações jurídicos
administrativas, o cumprimento das garantias acima mencionadas reveste
particulares exigências, já que normalmente na relação materialmente
controvertida está a uma entidade dotada de um cunho público, leia-se poder
público, acrescendo à circunstância que ganha relevo sobretudo quando se trata
de executar uma sentença desfavorável a uma autoridade administrativa.
Aceitável? Não! Compreensível? Talvez, mas com reservas, pois o direito à protecção
judicial engloba, a nível constitucional, pelo artigo 205.º, n.ºs 2 e 3, o
conteúdo de obrigatoriedade das sentenças para todas a autoridades e ainda a
imposição de legislação que garanta a sua efectiva execução, como refere Sérvulo
Correia, Direito do Contencioso Administrativo, Vol. I, LEX, Lisboa, 2005, esta
imposição é que justifica a eventual mas necessária evolução do contencioso
administrativo português para a admissibilidade genérica de sentenças
substitutivas de actos administrativos na fase declarativa do processo, desde
que verificados determinados pressuposto e respeitados os limites
constitucionalmente estabelecidos. Nas palavras do Exmo. Juiz Conselheiro
Santos Botelho, ao referir expressamente que “não será descabido consagrar, em
sede declarativa, ainda que com os devidos e especiais cuidados, um verdadeiro
poder de substituição por parte do tribunal, ditando um novo pronunciamento que
substitua a decisão anulada ou não emitida”, A tutela efectiva na reforma do
contencioso administrativo, in O Debate Universitário, Vol. I, Ministério da
Justiça, Lisboa, 2000.
Como concretização deste direito global
e geral à protecção judicial, a nossa Constituição consagra especificamente no
seu artigo 268.º, n.º 4 e ss., o princípio da tutela judicial efectiva dos
cidadãos perante a Administração Pública.
Este princípio é reafirmado em diversos
planos, os autores costumam identificar, essencialmente, três dimensões, no que
respeita ao princípio da accionabilidade da actividade administrativa lesiva
dos particulares (art. 2.º, n.º 2), determinando que a todo o direito
legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais
administrativos, quanto à disponibilidade de acções ou meios principais
adequados, no plano cautelar e executivo e da utilidade e da eficácia das
sentenças proferidas pelos tribunais administrativos.
Entendemos que é necessário admitir e
defender que para a existência de um contencioso administrativo de plena
jurisdição, sob a égide do principio da tutela jurisdicional efectiva
administrativa contrapondo uma interpretação mais aberta do princípio da
separação de poderes, a possibilidade de emissão de sentenças substitutivas de
actos administrativos vinculados, na fase declarativa do processo assim como a execução
de penas. Veja-se os artigos 3.º, n.º 3, 109.º, n.º 3, 164.º, n.º 4, alínea c),
167.º, n.º 6, 179.º, n.º 5.
Alguns autores aludem ao princípio da
economia processual, no sentido de que a produção de um efeito substitutivo
pela sentença exarada em sede declarativa seja uma antecipação dos efeitos
típicos da fase executiva “complementar”, evitando assim o recurso a uma nova acção
e eliminando todos os custos inerentes.
VI.
Durante muito tempo vingou em Portugal a
negação da possibilidade de sentenças de condenação à prática do acto devido,
segundo esta concepção a Administração só podia ser condenada ao pagamento de
quantias pecuniárias. Alegava-se que a emissão de sentenças condenatórias violava
o princípio da separação de poderes. Mas houve a necessidade de relembrar os
cânones interpretativos do texto constitucional para conceber o princípio da separação
de poderes de modo relativo (negar o valor absoluto), antes tem de ser
interpretado e compatibilizado juntamente com os demais princípios que a
Constituição prevê, mormente, para este efeito, com o princípio da tutela
jurisdicional efectiva administrativa.
Ainda de harmonia com o princípio da separação
de poderes, a intervenção do tribunal limitava-se “ao mínimo” e a anulação dos
actos administrativos representava o mínimo de intervenção possível na esfera,
restrita, administrativa. Este mínimo que nunca era a efectiva anulação do
acto, mas sim um mera sentença declarativa que reconhecesse o(s) vício(s) do
acto, não indo ao ponto de anular, deixando essa tarefa para o seu autor, o órgão
administrativo.
O acto que vai ser praticado em execução
de sentença é que vai produzir os seus efeitos na esfera jurídica do particular
e não a sentença. Em rigor, nem mesmo a emissão pelo juiz de uma sentença
substitutiva corresponde, estruturalmente, à prática de um acto administrativo:
tal sentença, como o seu nome indica, tem natureza verdadeiramente
jurisdicional.
O sentido da evolução do contencioso
administrativo é de continuidade, aprofundando e aperfeiçoamento dos meios de
tutela das posições jurídicas dos particulares. Nesse sentido, será nosso
desafio combater o dogma da recusa absoluta de prolação generalizada de
sentenças substitutivas de actos administrativos na fase declarativa do
processo, na perspectiva da tutela jurisdicional efectiva. Tal posição é
sustentada pela contínua subjectivação do contencioso administrativo.
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- MAÇÃS, MARIA FERNANDA, A suspensão judicial da eficácia dos actos
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- MAÇÃS, MARIA FERNANDA, E as formas de tutela urgente previstas no
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- MARTINS,
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- SILVA, VASCO PEREIRA DA, O
Contencioso Administrativo no divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009
2ª edição
- SOUSA,
MARCELO REBELO DE; MATOS, ANDRÉ SALGADO DE – Direito Administrativo Geral,
Tomo III, Dom Quixote, 2006
Miguel Machado, aluno n.º16305
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