domingo, 25 de novembro de 2012

A sentença substitutiva no contencioso administrativo, uma concretização do princípio da tutela efectiva ou uma violação do princípio da separação de poderes.






Todos artigos referidos sem remissão expressa para o diploma legal correspondem ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vulgo CPTA.


I. 

A jeito de intróito e como referência informativa passo, desde já, a justificar o presente título e consequentemente o modesto trabalho. Seguia eu, a velocidade cruzeiro, nas leituras de contencioso quando deparei-me com um pequeno trecho acerca do carácter excepcional das sentenças substitutivas pelos tribunais administrativos. Se tal afloramento levaria o magnânimo e eminente jurista Mouzinho da Silveira, autor do célebre ensinamento “A mais bela e útil descoberta moral do século passado [século XIX] foi, sem dúvida, a diferença entre administrar e julgar” a dar e redobrar voltas no túmulo.

II.

 O nosso legislador ordinário apenas consagrou tal hipótese nos processos urgentes, que visem um imposição judicial, em princípio e como destinatário a Administração, para a prática de actos administrativos. Em especial, a Intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, regulada nos artigos 109.º a 111.º, sendo um meio processual principal de carácter urgente, que se enquadra, e que constitui a concretização, no plano processual, do disposto no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição. O processo tem em vista um efeito condenatório (remetemos a definição para mais adiante), artigo 109.º, n.º 1. No entanto, quando o interessado pretenda a emissão de um acto administrativo estritamente vinculado, a sentença tem natureza constitutiva, produzindo ela própria, sem necessidade de actos posteriores, os efeitos do acto devido, artigo 109.º, n.º 3. No primeiro caso, o tribunal emite uma pronúncia condenatória semelhante àquela que pode ser obtida no âmbito de uma acção de condenação à prática do acto devido ou numa acção de condenação na prestação de facto. No segundo caso, o tribunal substitui-se à Administração na prática do acto devido, solução que se mostra justificada pelo carácter urgente do processo e que corresponde a uma antecipação do processo executivo, artigo 167.º, n.º 4. 

III.

Importa, desde já, definir a designação de sentença, nos termos do art. 156.º, n.º 2, do CPC, o acto pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de causa. No presente manifesto interessa-nos em especial ter em consideração as sentenças em que o juiz profere uma decisão de fundo ou uma decisão de mérito sobre a causa principal. Perante o exposto, excluímos, necessariamente, tanto as sentenças formais (as que observem a absolvição da instância por falta de pressuposto processual, existindo uma excepção dilatória não suprível) como as que decidem meros incidentes processuais.
De modo a complementar e a facilitar a leitura do artigo, iremos proceder a uma pequena e abreviada classificação das sentenças existentes em processo (seja administrativo ou civil). Referir que a classificação do tipo de sentença corresponde ao respectivo pedido, às espécies de acções quanto ao fim. Entre as sentenças declarativas (proferidas em sede declarativa), temos as sentenças de simples apreciação (sentenças declarativas em sentido estrito), art. 4.º, n.º 2, alínea a), do CPC; art. 2.º, n.º 2, alíneas a), b), c), d), 2ª parte e h), onde o tribunal declara a existência ou inexistência de um direito ou facto. As sentenças condenatórias, por sua vez, estabelecem um comando impositivo, um dever de realizar um facto, positivo ou negativo, entregar uma coisa ou quantia pecuniária, art. 4.º, n.º 2, alínea b, do CPC; art. 2.º, n.º 2, alíneas e), f), h), j) e l). Como em processo civil, as sentenças podem ser de condenação genérica (quantitativamente), quando não seja possível, no momento da decisão concretizar a liquidez da prestação. No âmbito da acção administrativa especial, no pedido condenatório do órgão à prática do acto devido (art. 71.º, n.º 1), quando a emissão do acto envolva apreciações e valorações próprias do exercício da função administrativa, i.e., quando a essência do acto não importe um única e vinculada solução seja por condicionante legal ou seja por uma eventual “redução da discricionariedade reduzida a zero” no caso concreto – o julgador terá que proferir uma decisão de condenação genérica (qualitativamente), apenas com as indicações vinculativas que puder retirar das normas jurídicas aplicáveis, tendo em especial atenção e sem pôr em causa a autonomia (face ao autor) da decisão administrativa (art. 71.º, n.º 2). Não confundir com as sentenças substitutivas. Nestas, o julgador actua e entra na equação como executor. Naquelas o juiz apenas se limita a condenar a Administração numa imposição de fazer, diz ao órgão “Faça!”. As sentenças constitutivas produzem ou autorizam uma alteração da ordem jurídica existente, criando, modificando ou extinguindo uma relação ou situação jurídica, art. 4.º, n.º 2, alínea c), do CPC, art. 2.º, n.º 2, alínea d), primeira parte.
As sentenças administrativas são como em processo civil reconduzidas e limitadas a tipos gerais, os acima mencionados, perguntará o leitor qual a natureza das sentenças substitutivas.
Somos levados a concluir que a sentença substitutiva de um acto administrativo (vinculado) é a decisão proferida pelo tribunal que cria, extingue ou modifica uma relação jurídico-administrativa. Uma sentença que substitui um acto administrativo, em última análise, estará, portanto, a criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica administrativa, ou a afectar a situação jurídica de uma determinada coisa. A sentença substitutiva tem como efeito lógico e necessário constituir uma relação ou uma situação jurídica, apenas, por força da própria sentença.
Importa ter presente que, nos casos em que a sentença substitui os actos administrativos (que não carecem de execução), a sentença funciona como título jurídico “executivo”, sendo necessária a mesma para a concretização material da pretensão do autor (v.g., construção de um determinado edifício, uso do bem público, etc.)
A sentença não se confunde com a tutela jurisdicional, a sentença é apenas um modo através da qual a protecção jurídica é efectivada. A sentença substitutiva (da declaração da vontade da Administração), em princípio, depende de posterior execução forçada (materialidade do acto). Uma vez proferida a sentença, o direito já se encontra tutelado. Trata-se, portanto, de uma sentença satisfatória, no sentido de que, prestar, por si só, a tutela jurisdicional. 

IV.

Recordemos o conceito de actos vinculados e actos discricionários, o termo discricionariedade remete-nos para a ideia de escolha, de fazer uma coisa quando se poderia ter feito outra. Melhor, quando a lei permitiria que se tivesse feito outra. Mas evoca também a ideia de escolha parametrizada, isto é, uma escolha com limites. A decisão discricionária tem de assentar numa racionalidade própria, susceptível de algum tipo de controlo; não pode radicar num capricho (pois, caso assim fosse, seria um escolha arbitrária, perfeitamente lícita quando feita por um cidadão, mas intolerável e mesmo inaceitável se feita por um órgão da Administração Publica).
Concordamos com a maioria da doutrina que afirma, categoricamente, que qualquer decisão comporta o exercício de poderes vinculados e de poderes discricionários. Em rigor a discricionariedade não implica um “esquecimento” do legislador, mas uma opção deste: considerou que, para melhor prosseguir um determinado interesse público, a administração pública deveria dispor de uma margem de decisão, por forma a poder adaptar esta à diversidade das condições da vida que poderiam justificar a sua tomada.
Os poderes conferidos por lei à Administração Pública ou são vinculados, ou discricionários, ou – como sucede normalmente – são em parte vinculados e em partes discricionários. O uso de poderes discricionários que tenham sido exercidos de modo inconveniente é objecto dos controlos de mérito. Já o uso de poderes vinculados que tenham sido exercidos contra a lei é objecto dos controlos de legalidade.
Acontece, não poucas as vezes, identificar a discricionariedade com a falta de controlo jurisdicional (o chamado hétero-controlo, que “olha” para a Administração Pública do lado de fora desta), esta identificação resulta da verificação de que a decisão que a lei não prescreve, não dita, não pode ser objecto dos poderes de intervenção do juiz.
Considerando que, no actual estado do nosso sistema administrativo e com as dúvidas que fomos deixando e vamos levantar a propósito do tema, as limitações do controlo jurisdicional têm a ver com o mérito (compreendendo as duas ideias fundamentais: a ideia de justiça e a ideia de conveniência) e não com a discricionariedade.
Com efeito, os tribunais administrativos em Portugal não podem apreciar o mérito de uma decisão administrativa. Os tribunais podem exercer o controlo de legalidade.
Por imposição da restauração da ordem jurídica (havendo uma norma jurídica que não permita inferir qualquer possibilidade de valoração própria), caso em que necessariamente, se tratará de uma actividade fungível (possa ser exercida, in casu, pelo juiz administrativo, em substituição da entidade pública incumpridora no exercício da sua competência).

V.

Numa primeira aproximação e enquadramento geral da questão há que reflectir acerca das bases constitucionais importantes para o efeito, de um lado o princípio da separação e da interdependência de poderes, por outro da tutela jurisdicional efectiva em sede de contencioso administrativo.
O primeiro conceito para o presente estudo é o conceito de separação de poderes no campo administrativo. O princípio da separação de poderes visou a separação entre a Administração e a Justiça, isto é, retirar à Administração pública a função judicial e retirar aos tribunais a função administrativa – uma vez que até aí existia uma certa confusão entre as duas funções e os respectivos órgãos.
A nossa Lei Fundamental acolhe o princípio da separação de poderes (artigos 2.º e 111.º) determinando, em síntese, o seguinte: a) a separação dos órgãos administrativos e jurisdicionais, b) incompatibilidade de magistraturas (art. 216.º, n.º 2 da CRP), c) a independência recíproca da Administração e da Justiça, apenas interessa no aspecto da independência da Admistraçao perante a Justiça.
Esta pretensa independência da Admistraçao perante a Justiça significa, hoje, não uma proibição absoluta de o juiz condenar, intimar, ordenar, orientar, impor comportamentos à Administração (cfr. artigo 268.º, n.º 4 da CRP, onde, além do mais, se prevê a possibilidade de os tribunais determinarem à Administração a prática de actos administrativos legalmente devidos), mas, apenas, o que é bem diferente, uma “proibição” funcional de o juiz afectar a essência do sistema de administração executiva – não pode ofender a autonomia do poder administrativo (o núcleo essencial da discricionariedade, quando a lei confere aos órgãos da Administração poderes próprios de apreciação ou de decisão).
A tutela judicial efectiva caracteriza-se por, essencialmente, pela demonstração de quatros planos, o direito de acesso aos tribunais, o direito a obter uma decisão judicial em prazo razoável e mediante um processo equitativo (concordamos com Vieira de Andrade, ao referir o campo simbiótico dizendo que as faculdade se interpenetram, e dá como exemplo o prazo razoável não respeita, em rigor, apenas à obtenção da decisão, mas também à obtenção do respectivo cumprimento em termos eficientes) e, por fim, mas não menos importante, que nos interessa mais, o direito à efectividade das decisões e sentenças proferidas.
No que respeita às relações jurídicos administrativas, o cumprimento das garantias acima mencionadas reveste particulares exigências, já que normalmente na relação materialmente controvertida está a uma entidade dotada de um cunho público, leia-se poder público, acrescendo à circunstância que ganha relevo sobretudo quando se trata de executar uma sentença desfavorável a uma autoridade administrativa. Aceitável? Não! Compreensível? Talvez, mas com reservas, pois o direito à protecção judicial engloba, a nível constitucional, pelo artigo 205.º, n.ºs 2 e 3, o conteúdo de obrigatoriedade das sentenças para todas a autoridades e ainda a imposição de legislação que garanta a sua efectiva execução, como refere Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, Vol. I, LEX, Lisboa, 2005, esta imposição é que justifica a eventual mas necessária evolução do contencioso administrativo português para a admissibilidade genérica de sentenças substitutivas de actos administrativos na fase declarativa do processo, desde que verificados determinados pressuposto e respeitados os limites constitucionalmente estabelecidos. Nas palavras do Exmo. Juiz Conselheiro Santos Botelho, ao referir expressamente que “não será descabido consagrar, em sede declarativa, ainda que com os devidos e especiais cuidados, um verdadeiro poder de substituição por parte do tribunal, ditando um novo pronunciamento que substitua a decisão anulada ou não emitida”, A tutela efectiva na reforma do contencioso administrativo, in O Debate Universitário, Vol. I, Ministério da Justiça, Lisboa, 2000.
Como concretização deste direito global e geral à protecção judicial, a nossa Constituição consagra especificamente no seu artigo 268.º, n.º 4 e ss., o princípio da tutela judicial efectiva dos cidadãos perante a Administração Pública.
Este princípio é reafirmado em diversos planos, os autores costumam identificar, essencialmente, três dimensões, no que respeita ao princípio da accionabilidade da actividade administrativa lesiva dos particulares (art. 2.º, n.º 2), determinando que a todo o direito legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, quanto à disponibilidade de acções ou meios principais adequados, no plano cautelar e executivo e da utilidade e da eficácia das sentenças proferidas pelos tribunais administrativos.
Entendemos que é necessário admitir e defender que para a existência de um contencioso administrativo de plena jurisdição, sob a égide do principio da tutela jurisdicional efectiva administrativa contrapondo uma interpretação mais aberta do princípio da separação de poderes, a possibilidade de emissão de sentenças substitutivas de actos administrativos vinculados, na fase declarativa do processo assim como a execução de penas. Veja-se os artigos 3.º, n.º 3, 109.º, n.º 3, 164.º, n.º 4, alínea c), 167.º, n.º 6, 179.º, n.º 5.
Alguns autores aludem ao princípio da economia processual, no sentido de que a produção de um efeito substitutivo pela sentença exarada em sede declarativa seja uma antecipação dos efeitos típicos da fase executiva “complementar”, evitando assim o recurso a uma nova acção e eliminando todos os custos inerentes.

VI.

Durante muito tempo vingou em Portugal a negação da possibilidade de sentenças de condenação à prática do acto devido, segundo esta concepção a Administração só podia ser condenada ao pagamento de quantias pecuniárias. Alegava-se que a emissão de sentenças condenatórias violava o princípio da separação de poderes. Mas houve a necessidade de relembrar os cânones interpretativos do texto constitucional para conceber o princípio da separação de poderes de modo relativo (negar o valor absoluto), antes tem de ser interpretado e compatibilizado juntamente com os demais princípios que a Constituição prevê, mormente, para este efeito, com o princípio da tutela jurisdicional efectiva administrativa.
Ainda de harmonia com o princípio da separação de poderes, a intervenção do tribunal limitava-se “ao mínimo” e a anulação dos actos administrativos representava o mínimo de intervenção possível na esfera, restrita, administrativa. Este mínimo que nunca era a efectiva anulação do acto, mas sim um mera sentença declarativa que reconhecesse o(s) vício(s) do acto, não indo ao ponto de anular, deixando essa tarefa para o seu autor, o órgão administrativo.
O acto que vai ser praticado em execução de sentença é que vai produzir os seus efeitos na esfera jurídica do particular e não a sentença. Em rigor, nem mesmo a emissão pelo juiz de uma sentença substitutiva corresponde, estruturalmente, à prática de um acto administrativo: tal sentença, como o seu nome indica, tem natureza verdadeiramente jurisdicional.
O sentido da evolução do contencioso administrativo é de continuidade, aprofundando e aperfeiçoamento dos meios de tutela das posições jurídicas dos particulares. Nesse sentido, será nosso desafio combater o dogma da recusa absoluta de prolação generalizada de sentenças substitutivas de actos administrativos na fase declarativa do processo, na perspectiva da tutela jurisdicional efectiva. Tal posição é sustentada pela contínua subjectivação do contencioso administrativo.


BIBLIOGRAFIA:
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- SOUSA, MARCELO REBELO DE; MATOS, ANDRÉ SALGADO DE – Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, 2006

                                                                                          Miguel Machado, aluno n.º16305

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