sexta-feira, 23 de novembro de 2012


Condenação à emissão do regulamento devido?


A reforma do contencioso administrativo instituiu um mecanismo processual destinado a reagir contra omissões ilegais de emissão de regulamentos.

JOÃO CAUPERS, ainda antes da reforma, havia considerado que «a inércia regulamentar, para além do prazo razoável, constituía, em si mesma, violação de um dever jurídico de regulamentar, decorrente, expressa ou implicitamente, da norma legal». Defendia este autor que desta situação resultava a necessidade de «conceder aos tribunais administrativos o poder de, a instância dos interessados (…) ou do Ministério Público, proferirem sentença declarando aquela violação e fixando (…) à autoridade administrativa um prazo para produzir a regulamentação em falta».

Mais tarde, no âmbito da discussão pública da reforma, PAULO OTERO retoma esta proposta e sugere a criação de um «mecanismo análogo ao da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, permitindo que os tribunais administrativos, verificada a existência de uma ilegalidade por omissão de normas regulamentares, dessem disso conhecimento ao órgão administrativo.

Desde modo surgiu a possibilidade de, em acção administrativa especial, se suscitar um pedido de apreciação da ilegalidade por omissão de normas regulamentares devidas, quer esse dever resulte, de forma directa, da referência expressa de uma concreta lei, quer decorra, de forma indirecta, de uma remissão implícita para o poder de regulamentar em virtude da incompletude ou da inexequibilidade do acto legislativo em questão. Esta omissão do dever de regulamentar tanto se pode verificar no caso de estar em causa a emissão de regulamentos de execução, que visam completar e desenvolver uma concreta lei, como no caso de se tratar de regulamentos autónomos ou independentes, em que a Administração possui uma maior margem de conformação normativa, mas sem nunca dispensar a ligação à lei de habilitação. Pois, uma coisa é a vinculação quanto à exigência de emissão da norma, outra coisa é a discricionariedade quanto ao respectivo conteúdo, pelo que se deve considerar que, mesmo os regulamentos autónomos ou independentes, desde que a sua emissão corresponda ao cumprimento de um dever legal, se destinam também a dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação, sejam estes a lei de habilitação, a lei que consagra a exigência de norma regulamentar, ou mesmo o ordenamento jurídico no seu todo. É o que decorre do regime previsto no art. 77º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA).

Como podemos constatar, a figura é, em grande medida, inspirada na declaração de inconstitucionalidade por omissão que a Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) institui e regula no seu art. 238º. Contudo, o regime previsto no art. 77º/1 CPTA distancia-se do regime previsto no art. 238º, na medida em que permite ao tribunal não apenas o poder de dar conhecimento da situação de omissão ao órgão competente, como ainda lhe confere o poder de fixar um prazo, não inferior a seis meses, dentro do qual a omissão deverá ser suprida.

Relativamente à fixação de um prazo não inferior a seis meses, VIEIRA DE ANDRADE considera que a solução mais sensata teria sido que a lei referisse um «prazo razoável», cuja concretização operaria em face dos dados concretos da hipótese. No seu entendimento, em alguns casos o prazo de seis meses pode ser demasiadamente excessivo, operando assim em favor da Administração e em detrimento dos administrados.

Pessoalmente, e com o devido respeito, não acompanho esta posição. Considero, portanto, que a fixação de um prazo determinado é estritamente necessária, sob pena de a utilização casuística dos prazos operar, não no sentido de acautelar os direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares mas, tão-somente, no sentido de se conformar com os interesses da Administração. Em suma, considero que a solução preconizada pelo Professor VIEIRA DE ANDRADE poderia levar, precisamente, à situação material que pretende evitar. A verdade é que, se a lei tivesse adoptado o conceito de «prazo razoável», estaríamos perante um conceito indeterminado, apenas determinável em face dos dados concretos de casa caso, e cuja concretização dependeria de juízos a realizar por parte da Administração. Assim, se é verdade que o prazo de seis meses pode ser demasiadamente excessivo, em certos casos, é também verdade que a concretização do prazo razoável poderia levar a que este prazo fosse ainda mais alargado quando, de facto, não o devesse ser. Como tal, aplaudo a inserção, no art. 72º/2 CPTA de um prazo determinado. Isto sem prejuízo de o mesmo artigo poder, para melhor assegurar os interesses dos administrados, ressalvar a possibilidade de exigência de cumprimento de emissão de regulamento antes desse prazo, quando o exijam as posições jurídicas subjectivas dos particulares.

Em suma, podemos dizer que o Código procurou, neste domínio, uma via intermédia entre a solução, de alcance mais limitado, de atribuir ao juiz um mero poder de declaração de omissão, como sucede no art. 238º CRP, no que respeita à omissão de actos legislativos, e a solução, de maior alcance, de lhe atribuir o poder de condenar a Administração à emissão do regulamento devido, como sucede no art. 66º CPTA, relativamente à omissão de actos administrativos. Veremos adiante que esta teria sido, no entendimento do Professor Vasco Pereira da Silva, a solução mais sensata, tendo em conta o elevado número de situações de inércia regulamentar que se verifica actualmente.

A solução consagrada assenta no postulado de que o poder normativo da Administração não poderia ser objecto de tratamento idêntico ao que é dispensado ao seu poder de decisão concreta. Assim se explica a falta de sintonia quanto aos poderes de pronúncia que são atribuídos ao juiz no art. 77º CPTA, para as situações de omissão de normas, e nos arts. 66º e seguintes CPTA, para as situações de omissão ou recusa de actos administrativos.

O código contém uma referência expressa à questão da legitimidade, em que é mencionado o Ministério Público, as demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no nº2 do art. 9º CPTA e quem alegue um prejuízo directamente resultante da acção de omissão. A questão que se coloca é, pois, a de saber o que entender por «prejuízo directamente resultante da situação de omissão». VIEIRA DE ANDRADE vem defender que se trata de um prejuízo directo e actual. Na opinião da regência, a similitude entre a acção de declaração de ilegalidade por omissão e a acção de condenação à prática do acto devido, justifica que, onde se lê «quem alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão» deva ler-se, à semelhança do que sucede no art. 68º/1 CPTA, «quem alegue ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido».

A concepção segundo a qual seria possível edificar, à sombra do art. 77º/1, um direito à emissão do regulamento, defendida por ANA MONIZ, considera que a emissão de regulamentos não releva apenas quanto à prossecução de interesses públicos, podendo igualmente realizar direitos e interesses dos particulares, nomeadamente, quando estejam em causa direitos fundamentais. Desta forma, este mecanismo vem concretizar o art. 268º/4 CRP, garantindo aos administrados um tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

Todavia, este direito não surgirá com a mera solicitação do particular em face da Administração. Ao contrário do que sucede nos casos de inércia administrativa, no âmbito da acção de condenação à prática do acto devido, o pedido do particular não constitui condição, nem necessária, nem bastante para a formação de um direito à emissão da norma devida. A existência deste direito depende da verificação de uma situação de omissão ilegal de normas regulamentares.

Quanto a este ponto cabe referir que a jurisprudência, para aferir da existência de uma omissão ilegal de normas administrativas, tem vindo a considerar três critérios:

1)      A ausência de norma cuja adopção constitua uma exigência da lei;

2)    A necessidade de regulamentação da lei, que existe quando a respectiva aplicação ao caso concreto careça de elementos que o legislador remeteu para regulamento;
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3)   A exigibilidade da obrigação regulamentar, isto é, que já tenha decorrido o prazo que a própria lei habilitante fixou para a regulamentação ou, na ausência de indicação legislativa de um limite temporal expresso, que se tenha verificado já uma excessiva dilação e não operem outras circunstâncias que tornem inexigível a emissão do regulamento.

Quanto à questão de saber se este conceito de «norma devida» se pode reconduzir às situações em que, apesar de o regulamento ter sido emitido, o seu conteúdo se mostra insuficiente para a tutela dos interesses dos administrados, importa referir o seguinte: em abstracto poder-se-ia defender, mediante uma interpretação literal do art. 77º/1 CPTA que estes casos não habilitam o particular a propor uma acção de ilegalidade por omissão; no entanto, essa interpretação deve operar casuisticamente, na medida em que há situações em que a existência de uma regulamentação deficiente conduz, em termos materiais, à mesma situação que adviria da pura inexistência de regulamento.

A natureza jurídica da sentença proferida pelo juiz coloca dúvidas, na medida em que se, por um lado, o legislador parece estabelecer que ela possui uma eficácia meramente declarativa, limitada a dar conhecimento da existência de uma ilegalidade por omissão, por outro lado, determina que ela possua também efeitos cominatórios, nomeadamente ao prever a fixação de um prazo para a adopção das normas regulamentares.

VIEIRA DE ANDRADE considera que, à primeira vista, a sentença de declaração de ilegalidade por omissão de regulamentos se parece aproximar mais da natureza de uma sentença meramente declarativa, uma vez que «a figura e a fórmula foram evidentemente inspiradas na figura da inconstitucionalidade por omissão, sendo de esperar que, na concretização das condições legais se recorra igualmente à jurisprudência constitucional». Ainda assim, Vieira de Andrade conclui que «apesar da formulação legal que parece apontar para uma pronúncia declarativa, uma tal sentença, associada à fixação de um prazo, tem de entender-se como condenatória e não apenas como uma recomendação ou comunicação».

No mesmo sentido, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA. No seu entendimento, o estabelecimento de um prazo razoável para o cumprimento do dever reconhecido pela sentença, permite que a eventual inobservância do prazo seja qualificada como um acto de desobediência em relação à sentença, em termos de habilitar o beneficiário da mesma a desencadear os mecanismos de execução adequados, isto é, a fixação de um prazo limite, com imposição de uma sanção pecuniária compulsória aos responsáveis pela persistência na omissão (arts. 164º/4/d), 168º e 169º CPTA). Posto isto, a pronúncia judicial prevista no art. 77º/2 CPTA parece estar mais próxima de uma sentença de condenação do que de uma sentença meramente declarativa ou de simples apreciação. De realçar que o tribunal pode, atendendo às circunstâncias do caso em presença, proceder desde logo à imposição de sanções pecuniárias compulsórias, ao abrigo da previsão genérica do art. 3º/2 CPTA e, sobretudo dos arts. 44º e 49º CPTA, no próprio momento em que reconheça a ilegalidade da situação de omissão.

Como referido supra o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, apesar de reconhecer que o regime actual representa um progresso relativamente à situação anterior, defende e recomenda que se estabeleça, em futuras revisões da reforma, a possibilidade de condenação da Administração na produção da norma regulamentar devida, à semelhança do que foi feito relativamente aos actos administrativos devidos. 

Uma tal solução sempre implicaria o respeito pelo princípio da separação de poderes, no sentido de que o tribunal não se pode intrometer no espaço próprio que corresponde ao exercício de poderes discricionários por parte da Administração. Só deste modo se assegura o respeito pelo princípio da separação e interdependência de poderes, por força do qual aos tribunais administrativos só cumpre dizer e aplicar o direito, tal como ele resulta das normas e princípios jurídicos que vinculam a Administração (art. 3º/1 CPTA). Do mesmo postulado resulta o imperativo de que o Tribunal deve dizer e aplicar o Direito, em toda a extensão com que as normas e os princípios jurídicos sejam chamados a intervir e, portanto, que ao tribunal cumpre determinar todas as vinculações a observar pela Administração na emissão de regulamento. Deste modo cabe distinguir diferentes tipos de situações possíveis, consoante o grau de concretização com que o dever de actuar da Administração resulte das normas jurídicas aplicáveis. Trata-se, no limite, de averiguar o que deve o tribunal considerar «devido», em cada caso concreto. É possível distinguir duas hipóteses distintas:

1)      A situação em que se verifica a existência de um dever legal de emissão de regulamento, mesmo se a lei (de que resultava tal dever) conferia à autoridade dotada de poder regulamentar uma ampla margem de discricionariedade na conformação do respectivo conteúdo. Caso em que o Tribunal se deveria limitar à condenação na emissão do regulamento, cabendo à Administração a responsabilidade pela escolha do conteúdo das normas administrativas, nos limites fixados pela lei regulamentar e demais leis aplicáveis.

2)   A situação em que não existe apenas o dever legal de emitir o regulamento, mas também a obrigatoriedade dele possuir um determinado conteúdo, pré-determinado pelo legislador. Nesse caso, em que tanto a emissão do regulamento como o respectivo conteúdo resultam de vinculação legal, não se vê porque é que não poderia existir uma sentença de condenação na emissão de regulamento com determinado conteúdo, à semelhança do que se passa com similares actos administrativos.

Na esteira do Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, considero que teria sido preferível, dada a similitude entre as situações de omissão de actos administrativos e as situações de omissão de normas regulamentares, a consagração de um regime que permitisse condenar a Administração na emissão do regulamento devido. Esta solução permitiria ainda uma maior harmonização de soluções, contribuindo para um todo mais coerente, em que situações idênticas seriam tratadas de forma idêntica.


Andreia Fragoso
Nº 19509


Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de; «O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos», 4ª edição, Almedina, 2005.

SILVA, Vasco Pereira da; «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, 2009.

ANDRADE, José Carlos Vieira de; A justiça Administrativa (lições), 10ª edição, Almedina, 2009.

MONIZ, Ana Raquel Gonçalves; Aproximação a um conceito de «norma devida» para efeitos do art. 77º do CPTA, Cadernos de Justiça Administrativa.

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