Condenação à emissão do regulamento devido?
A reforma do contencioso administrativo instituiu um mecanismo processual
destinado a reagir contra omissões ilegais de emissão de regulamentos.
Já JOÃO CAUPERS, ainda antes da reforma, havia considerado que «a
inércia regulamentar, para além do prazo razoável, constituía, em si mesma,
violação de um dever jurídico de regulamentar, decorrente, expressa ou
implicitamente, da norma legal». Defendia este autor que desta situação
resultava a necessidade de «conceder aos tribunais administrativos o poder de,
a instância dos interessados (…) ou do Ministério Público, proferirem sentença
declarando aquela violação e fixando (…) à autoridade administrativa um prazo
para produzir a regulamentação em falta».
Mais tarde, no âmbito da discussão pública da reforma, PAULO OTERO retoma
esta proposta e sugere a criação de um «mecanismo análogo ao da fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão, permitindo que os tribunais administrativos,
verificada a existência de uma ilegalidade por omissão de normas
regulamentares, dessem disso conhecimento ao órgão administrativo.
Desde modo surgiu a possibilidade de, em acção administrativa especial,
se suscitar um pedido de apreciação da ilegalidade por omissão de normas
regulamentares devidas, quer esse dever resulte, de forma directa, da
referência expressa de uma concreta lei, quer decorra, de forma indirecta, de
uma remissão implícita para o poder de regulamentar em virtude da incompletude
ou da inexequibilidade do acto legislativo em questão. Esta omissão do dever de
regulamentar tanto se pode verificar no caso de estar em causa a emissão de
regulamentos de execução, que visam completar e desenvolver uma concreta lei,
como no caso de se tratar de regulamentos autónomos ou independentes, em que a
Administração possui uma maior margem de conformação normativa, mas sem nunca
dispensar a ligação à lei de habilitação. Pois, uma coisa é a vinculação quanto
à exigência de emissão da norma, outra coisa é a discricionariedade quanto ao
respectivo conteúdo, pelo que se deve considerar que, mesmo os regulamentos
autónomos ou independentes, desde que a sua emissão corresponda ao cumprimento
de um dever legal, se destinam também a dar exequibilidade a actos legislativos
carentes de regulamentação, sejam estes a lei de habilitação, a lei que
consagra a exigência de norma regulamentar, ou mesmo o ordenamento jurídico no
seu todo. É o que decorre do regime previsto no art. 77º/1 do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA).
Como podemos constatar, a figura é, em grande medida, inspirada na
declaração de inconstitucionalidade por omissão que a Constituição da República
Portuguesa (doravante, CRP) institui e regula no seu art. 238º. Contudo, o
regime previsto no art. 77º/1 CPTA distancia-se do regime previsto no art.
238º, na medida em que permite ao tribunal não apenas o poder de dar
conhecimento da situação de omissão ao órgão competente, como ainda lhe confere
o poder de fixar um prazo, não inferior a seis meses, dentro do qual a omissão
deverá ser suprida.
Relativamente à fixação de um prazo não inferior a seis meses, VIEIRA DE
ANDRADE considera que a solução mais sensata teria sido que a lei
referisse um «prazo razoável», cuja concretização operaria em face dos dados
concretos da hipótese. No seu entendimento, em alguns casos o prazo de seis
meses pode ser demasiadamente excessivo, operando assim em favor da Administração
e em detrimento dos administrados.
Pessoalmente, e com o devido respeito, não acompanho esta posição. Considero,
portanto, que a fixação de um prazo determinado é estritamente necessária, sob
pena de a utilização casuística dos prazos operar, não no sentido de acautelar os
direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares mas, tão-somente,
no sentido de se conformar com os interesses da Administração. Em suma,
considero que a solução preconizada pelo Professor VIEIRA DE ANDRADE poderia
levar, precisamente, à situação material que pretende evitar. A verdade é que,
se a lei tivesse adoptado o conceito de «prazo razoável», estaríamos perante um
conceito indeterminado, apenas determinável em face dos dados concretos de casa
caso, e cuja concretização dependeria de juízos a realizar por parte da
Administração. Assim, se é verdade que o prazo de seis meses pode ser
demasiadamente excessivo, em certos casos, é também verdade que a concretização
do prazo razoável poderia levar a que este prazo fosse ainda mais alargado
quando, de facto, não o devesse ser. Como tal, aplaudo a inserção, no art.
72º/2 CPTA de um prazo determinado. Isto sem prejuízo de o mesmo artigo poder,
para melhor assegurar os interesses dos administrados, ressalvar a
possibilidade de exigência de cumprimento de emissão de regulamento antes desse
prazo, quando o exijam as posições jurídicas subjectivas dos particulares.
Em suma, podemos dizer que o Código procurou, neste domínio, uma via
intermédia entre a solução, de alcance mais limitado, de atribuir ao juiz um
mero poder de declaração de omissão, como sucede no art. 238º CRP, no que
respeita à omissão de actos legislativos, e a solução, de maior alcance, de lhe
atribuir o poder de condenar a Administração à emissão do regulamento devido,
como sucede no art. 66º CPTA, relativamente à omissão de actos administrativos.
Veremos adiante que esta teria sido, no entendimento do Professor Vasco Pereira
da Silva, a solução mais sensata, tendo em conta o elevado número de situações
de inércia regulamentar que se verifica actualmente.
A solução consagrada assenta no postulado de que o poder normativo da
Administração não poderia ser objecto de tratamento idêntico ao que é
dispensado ao seu poder de decisão concreta. Assim se explica a falta de
sintonia quanto aos poderes de pronúncia que são atribuídos ao juiz no art. 77º
CPTA, para as situações de omissão de normas, e nos arts. 66º e seguintes CPTA,
para as situações de omissão ou recusa de actos administrativos.
O código contém uma referência expressa à questão da legitimidade, em que
é mencionado o Ministério Público, as demais pessoas e entidades defensoras dos
interesses referidos no nº2 do art. 9º CPTA e quem alegue um prejuízo
directamente resultante da acção de omissão. A questão que se coloca é, pois, a
de saber o que entender por «prejuízo directamente resultante da situação de
omissão». VIEIRA DE ANDRADE vem defender que se trata de um prejuízo directo
e actual. Na opinião da regência, a similitude entre a acção de declaração de
ilegalidade por omissão e a acção de condenação à prática do acto devido,
justifica que, onde se lê «quem alegue um prejuízo directamente resultante da
situação de omissão» deva ler-se, à semelhança do que sucede no art. 68º/1
CPTA, «quem alegue ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido».
A concepção segundo a
qual seria possível edificar, à sombra do art. 77º/1, um direito à emissão do
regulamento, defendida por ANA MONIZ, considera que a emissão de
regulamentos não releva apenas quanto à prossecução de interesses públicos,
podendo igualmente realizar direitos e interesses dos particulares, nomeadamente,
quando estejam em causa direitos fundamentais. Desta forma, este mecanismo vem
concretizar o art. 268º/4 CRP, garantindo aos administrados um tutela
jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Todavia, este direito
não surgirá com a mera solicitação do particular em face da Administração. Ao
contrário do que sucede nos casos de inércia administrativa, no âmbito da acção
de condenação à prática do acto devido, o pedido do particular não constitui
condição, nem necessária, nem bastante para a formação de um direito à emissão
da norma devida. A existência deste direito depende da verificação de uma
situação de omissão ilegal de normas regulamentares.
Quanto a este ponto
cabe referir que a jurisprudência, para aferir da existência de uma omissão
ilegal de normas administrativas, tem vindo a considerar três critérios:
1) A
ausência de norma cuja adopção constitua uma exigência da lei;
2) A
necessidade de regulamentação da lei, que existe quando a respectiva aplicação ao
caso concreto careça de elementos que o legislador remeteu para regulamento;
.
3) A
exigibilidade da obrigação regulamentar, isto é, que já tenha decorrido o prazo
que a própria lei habilitante fixou para a regulamentação ou, na ausência de
indicação legislativa de um limite temporal expresso, que se tenha verificado
já uma excessiva dilação e não operem outras circunstâncias que tornem
inexigível a emissão do regulamento.
Quanto à questão de saber se este conceito de «norma devida» se pode
reconduzir às situações em que, apesar de o regulamento ter sido emitido, o seu
conteúdo se mostra insuficiente para a tutela dos interesses dos administrados,
importa referir o seguinte: em abstracto poder-se-ia defender, mediante uma
interpretação literal do art. 77º/1 CPTA que estes casos não habilitam o
particular a propor uma acção de ilegalidade por omissão; no entanto, essa
interpretação deve operar casuisticamente, na medida em que há situações em que
a existência de uma regulamentação deficiente conduz, em termos materiais, à
mesma situação que adviria da pura inexistência de regulamento.
A natureza jurídica da sentença proferida pelo juiz coloca dúvidas, na
medida em que se, por um lado, o legislador parece estabelecer que ela possui
uma eficácia meramente declarativa, limitada a dar conhecimento da existência
de uma ilegalidade por omissão, por outro lado, determina que ela possua também
efeitos cominatórios, nomeadamente ao prever a fixação de um prazo para a
adopção das normas regulamentares.
VIEIRA
DE ANDRADE considera que, à primeira vista, a sentença de declaração de
ilegalidade por omissão de regulamentos se parece aproximar mais da natureza de
uma sentença meramente declarativa, uma vez que «a figura e a fórmula foram
evidentemente inspiradas na figura da inconstitucionalidade por omissão, sendo
de esperar que, na concretização das condições legais se recorra igualmente à
jurisprudência constitucional». Ainda assim, Vieira de Andrade conclui que
«apesar da formulação legal que parece apontar para uma pronúncia declarativa,
uma tal sentença, associada à fixação de um prazo, tem de entender-se como
condenatória e não apenas como uma recomendação ou comunicação».
No mesmo sentido, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA. No seu entendimento, o
estabelecimento de um prazo razoável para o cumprimento do dever reconhecido
pela sentença, permite que a eventual inobservância do prazo seja qualificada
como um acto de desobediência em relação à sentença, em termos de habilitar o
beneficiário da mesma a desencadear os mecanismos de execução adequados, isto é, a fixação de um prazo limite, com imposição de uma sanção pecuniária compulsória aos responsáveis pela persistência na omissão (arts. 164º/4/d), 168º e 169º CPTA). Posto
isto, a pronúncia judicial prevista no art. 77º/2 CPTA parece estar mais
próxima de uma sentença de condenação do que de uma sentença meramente
declarativa ou de simples apreciação. De realçar que o tribunal pode, atendendo às circunstâncias do caso em presença, proceder desde logo à imposição de sanções pecuniárias compulsórias, ao abrigo da previsão genérica do art. 3º/2 CPTA e, sobretudo dos arts. 44º e 49º CPTA, no próprio momento em que reconheça a ilegalidade da situação de omissão.
Como referido supra o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, apesar de reconhecer
que o regime actual representa um progresso relativamente à situação anterior,
defende e recomenda que se estabeleça, em futuras revisões da reforma, a possibilidade
de condenação da Administração na produção da norma regulamentar devida, à
semelhança do que foi feito relativamente aos actos administrativos devidos.
Uma
tal solução sempre implicaria o respeito pelo princípio da separação de
poderes, no sentido de que o tribunal não se pode intrometer no espaço próprio
que corresponde ao exercício de poderes discricionários por parte da
Administração. Só deste modo se assegura o respeito pelo princípio da separação
e interdependência de poderes, por força do qual aos tribunais administrativos
só cumpre dizer e aplicar o direito, tal como ele resulta das normas e
princípios jurídicos que vinculam a Administração (art. 3º/1 CPTA). Do mesmo
postulado resulta o imperativo de que o Tribunal deve dizer e aplicar o Direito,
em toda a extensão com que as normas e os princípios jurídicos sejam chamados a
intervir e, portanto, que ao tribunal cumpre determinar todas as vinculações a
observar pela Administração na emissão de regulamento. Deste modo cabe
distinguir diferentes tipos de situações possíveis, consoante o grau de
concretização com que o dever de actuar da Administração resulte das normas
jurídicas aplicáveis. Trata-se, no limite, de averiguar o que deve o tribunal
considerar «devido», em cada caso concreto. É possível distinguir duas
hipóteses distintas:
1) A
situação em que se verifica a existência de um dever legal de emissão de
regulamento, mesmo se a lei (de que resultava tal dever) conferia à autoridade
dotada de poder regulamentar uma ampla margem de discricionariedade na
conformação do respectivo conteúdo. Caso em que o Tribunal se deveria limitar à
condenação na emissão do regulamento, cabendo à Administração a
responsabilidade pela escolha do conteúdo das normas administrativas, nos
limites fixados pela lei regulamentar e demais leis aplicáveis.
2) A
situação em que não existe apenas o dever legal de emitir o regulamento, mas
também a obrigatoriedade dele possuir um determinado conteúdo, pré-determinado
pelo legislador. Nesse caso, em que tanto a emissão do regulamento como o
respectivo conteúdo resultam de vinculação legal, não se vê porque é que não
poderia existir uma sentença de condenação na emissão de regulamento com
determinado conteúdo, à semelhança do que se passa com similares actos
administrativos.
Na esteira do Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, considero que teria sido
preferível, dada a similitude entre as situações de omissão de actos
administrativos e as situações de omissão de normas regulamentares, a
consagração de um regime que permitisse condenar a Administração na emissão do
regulamento devido. Esta solução permitiria ainda uma maior harmonização de
soluções, contribuindo para um todo mais coerente, em que situações idênticas seriam tratadas de forma idêntica.
Andreia Fragoso
Nº 19509
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário
Aroso de; «O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos», 4ª edição,
Almedina, 2005.
SILVA, Vasco
Pereira da; «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição,
Almedina, 2009.
ANDRADE, José
Carlos Vieira de; A justiça Administrativa (lições), 10ª edição, Almedina,
2009.
MONIZ, Ana
Raquel Gonçalves; Aproximação a um conceito de «norma devida» para efeitos do
art. 77º do CPTA, Cadernos de Justiça Administrativa.
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