domingo, 25 de novembro de 2012

Afinal havia outra… via no contencioso administrativo – a arbitragem na resolução de litígios de natureza administrativa, em especial no domínio dos contratos públicos.



1 – Arbitragem e arbitrabilidade; 2. Os tribunais arbitrais como verdadeiros tribunais; 3. O direito disponível; 3.1 Continuação; os contratos administrativos como objeto do litígio; 3.2 Validade, interpretação e execução do contrato administrativo. O ato administrativo arbitrável; 4. Referência ao problema da equidade; 5. Estrutura e funcionamento do tribunal arbitral.

1.     Arbitragem e arbitrabilidade[1]
É remota a origem da arbitragem, estando na sua génese a recusa da centralização absoluta do poder jurisdicional nos tribunais estaduais[2] e a preocupação com a celeridade na composição dos litígios – partindo do pressuposto de que não há justiça quando tarda a sua solução[3]. Por não ser objeto do presente texto, não abordaremos aqui o passado histórico do instituto da arbitragem. Diremos apenas que a arbitragem só conhecerá um desenvolvimento significativo a partir de meados do século XX, no período subsequente à Segunda Guerra Mundial[4], particularmente relacionada com o desenvolvimento da economia.
O recurso à arbitragem comporta vantagens e elas alimentaram o seu desenvolvimento. Desde logo porque, pelo menor formalismo que comporta relativamente ao processo dos tribunais (judiciais ou administrativos), permite obter decisões céleres, tornando a economia mais eficiente. Por outro lado ela oferece uma maior previsibilidade e adequação à resolução do litígio, já que a escolha dos árbitros permite que as partes o façam em função do perfil mais adequado ao caso concreto[5].
Consagrando a liberdade de atuação dos particulares na escolha do modo de resolução dos seus litígios – e ultrapassadas as dúvidas quanto à sua compatibilidade constitucional (v. infra, 2.) –, a arbitrabilidade de um litígio emergente de relação jurídica administrativa sujeita-se apenas à disponibilidade do direito[6], na medida em que os sujeitos possam dele dispor, no âmbito da sua autonomia privada[7]. Assim se consideram excluídos da possibilidade de convenções de arbitragem «os direitos indisponíveis e os litígios constitucionalmente submetidos em exclusivo aos tribunais» estaduais[8].

2.     Os tribunais arbitrais como verdadeiros tribunais
Indispensável na discussão acerca do papel da arbitragem no contencioso administrativo, será atender à posição que o legislador imprimiu na Lei Fundamental. Na sua versão originária, a Constituição de 1976, consagrava, no seu art. 212º – correspondente ao atual 209º –, a jurisdição dos tribunais judiciais (n.º1), dos tribunais militares e do Tribunal de Contas (n.º2) e abria a possibilidade de criação de tribunais administrativos e fiscais (n.º3)[9]. Só em 1982 o legislador constituinte quebrou o silêncio quanto à arbitragem, consagrando os tribunais arbitrais como verdadeiros tribunais. Ao fazê-lo removeu as dúvidas que até então preocupavam alguma doutrina – minoritária, por certo – quanto à compatibilidade da arbitragem com a Lei Fundamental. Alcançou ainda outra importante consequência como foi a da qualificação da atividade dos árbitros como «um caso de exercício de uma função estadual por particulares» o que permitiria ao legislador ordinário reconhecer força de caso julgado formal e material à decisão arbitral[10].
Tendo em conta a jurisprudência favorável à validade de cláusulas compromissórias inseridas em contratos administrativos – de que são exemplo vários acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça na década de 1950 – e a posição de doutrina autorizada na matéria, consideramos ser criticável o silêncio do legislador constituinte de 1976 face à arbitragem.

3.     O direito disponível
Como dissemos atrás, a disponibilidade do direito face à ordem pública foi o critério estabelecido pelo legislador, para permitir a submissão de um litígio aos tribunais arbitrais. Face ao critério em causa, a natureza patrimonial da matéria transmite, apenas, uma presunção de arbitrabilidade, já que haverá direitos de conteúdo patrimonial não arbitráveis. Não obstante, tendo em conta a limitação objetiva imposta à arbitragem no contencioso administrativo, o domínio tradicional da arbitragem no contencioso administrativo foi o das questões patrimoniais, nomeadamente na efetivação da responsabilidade civil, a par da interpretação, validade ou execução dos contratos administrativos[11], reservando à jurisdição oficial o território do chamado contencioso por natureza.
Nesse sentido, atendo-se ao «Estado e outras pessoas coletivas de direito público», estabelece o art. 1º/4 da LAV, que estas poderão «celebrar convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizados por lei especial ou se elas tiverem por objeto litígios respeitantes a relações de direito privado». Disposição que se revela, em simultâneo[12], como «(…) uma regra de arbitrabilidade subjetiva e objetiva, pois que contém uma genérica permissão de recurso à via arbitral (…), que restringe, depois, em função do objeto do litígio em análise (…)».

Esta formulação tem necessariamente de ser entendida à luz da evolução da atuação da Administração Pública nas últimas décadas. Evolução que tem como principal manifestação a superação das tradicionais formas de atuação administrativa[13] – baseada na emanação de regulamentos administrativos, na prática de atos administrativos e na realização de operações materiais – para uma multiplicidade de formas de atuação, com especial intensidade no recurso à contratação.
O alargamento do âmbito dos tribunais arbitrais no contencioso administrativo é também contemporâneo do Estado pós-social e da crise do Estado-providência, responsável pelo fenómeno de privatização da Administração Pública[14], no sentido cometer a entes jurídicos de natureza privada – ainda que sujeitos aos princípios gerais de Direito Administrativo –, a prossecução de fins atribuídos, pela Constituição, à Administração Pública.

No que ao contencioso administrativo diz respeito, a doutrina tradicional[15] reconduzia o critério da disponibilidade do direito à distinção entre o contencioso de anulação por natureza e a ação administrativa. No primeiro, tendo por objeto a legalidade do ato administrativo, o juiz limitar-se-ia à sua anulação, sem que pudesse imiscuir-se do conteúdo da decisão da Administração, praticado ao abrigo do princípio de discricionariedade administrativa; enquanto, que, na segunda, não gozando a Administração dessa «autoridade prévia», teria o juiz uma a faculdade de impor um determinado sentido à atuação da Administração, sem que, com esse comando, violasse o princípio da separação de poderes.
Nesta dualidade de meios processuais se traduzia a disponibilidade ou indisponibilidade do direito. Concretizando, com Sérvulo Correia[16], naquela parte em que a Administração exercia poderes de autoridade – nomeadamente através da prática de ato administrativo – a Administração seria titular de uma situação jurídica indisponível, daí não se aceitar que essa situação fosse submetida à arbitragem. No contencioso administrativo (não anulatório) a Administração, não exercendo poderes de autoridade, operava segundo uma margem de livre decisão, donde a faculdade de recorrer à arbitragem, com derrogação da competência dos tribunais administrativos para a ação administrativa.
Esta distinção já não encontra, hoje, o mesmo sentido de outrora, pois que, como previa o 1º/4 da LAV, na sua versão originária – remetendo para lei especial a arbitragem para efeito de recurso contencioso de anulação –, o artigo 180º do CPTA acabou por incluir no âmbito material dos tribunais arbitrais «questões relativas a atos administrativos», transgredindo, por um lado, a tradicional conceção de proibição de os tribunais arbitrais conhecerem da legalidade dos atos administrativos – baseado no critério supra mencionado da disponibilidade do direito –, e por outro, indo além da previsão do ETAF que, na sua versão originária, de 1984, limitava àqueles tribunais o contencioso de contratos administrativos e de responsabilidade extracontratual da Administração[17].

Porém, o juiz arbitral não pode conhecer da legalidade todos os atos. É o caso dos chamados atos destacáveis, designação baseada na teoria do ato destacável[18], subscrita pelo legislador português. Esta previa a impugnabilidade do ato de forma autónoma, como anteriormente se retirava do art. 185º do Código do Procedimento Administrativo (adiante CPA), depois revogado com a entrada em vigor CPTA, bem como nas alíneas d) e e) do 4º/1 do ETAF.
Determinar se o ato é ou não destacável levanta, porém, alguns problemas. Será necessário indagar a conduta da Administração, verificando se estamos perante um ato administrativo e não uma declaração negocial (e se o mesmo é impugnável), determinando o ato administrativo quando «razões de segurança jurídica e ponderação de interesses envolvidos, tanto de terceiros como aqueles que a lei especificamente coloque a cargo da entidade pública, exigirem o exercício de um poder de definição jurídica unilateral»[19]-[20].
            Cabendo ao tribunal arbitral qualificar a conduta do contraente público, se esta agiu através de ato administrativo ou de declaração negocial, deverá o juiz arbitral conhecer da jurisprudência dos tribunais administrativos estaduais nessa matéria. As consequências serão relevantes, pois que tratando-se de ato administrativo, o tribunal arbitral não poderá conhecer da sua legalidade. A teoria da destacabilidade é, pois, inimiga da arbitragem.

3.1 Continuação; os contratos administrativos como objeto do litígio.
Do que ficou dito acerca o papel da arbitragem no contencioso administrativo, entendia a doutrina tradicional – e o legislador anterior ao CPTA –, a insusceptibilidade do tribunal arbitral apreciar a legalidade de atos administrativos[21]; posição que se defendia no carácter de ordem pública[22] das normas de competência dos tribunais administrativos. Cometia-se assim à exclusividade do juiz administrativo os litígios que envolvessem a anulação de atos administrativos ou a condenação à prática de tais atos; ao passo que nas questões meramente contratuais de entre as relativas à validade, interpretação e execução do contrato, dispunha o tribunal arbitral de plena jurisdição. A entrada em vigor do CPTA coloca em cheque este recorte tradicional.

Impõe-se, porém, um esclarecimento prévio sobre a redação da al. a) do art. 180º do CPTA, e o seu conceito de contratos administrativos. Tal importa levar em conta a dicotomia entre contratos administrativos de contratos de direito privado, celebrados pela Administração. Assim, porque se considerava dever existir um regime jurídico de direito público para os contratos administrativos e outro de direito privado, para os demais contratos em que a Administração fosse parte, a teoria do contrato administrativo propugnava uma distinção em razão do exercício de poderes de autoridade, donde decorriam poderes especiais (v.g. de interpretação, de fiscalização, de direção, de sanção, de modificação unilateral, de rescisão unilateral). Ideia própria da Administração agressiva do Estado Liberal, mas não de uma Administração baseada no princípio da participação dos particulares e na consensualidade, própria da Administração prestadora do Estado Social[23]. A entrada em vigor do novo Código de Contratos Públicos[24] (adiante CCP), procedeu à unificação do regime jurídico aplicável aos contratos da Administração Pública e, consequentemente, à uniformização em termos de competência jurisdicional (até então repartida entre tribunais judiciais e tribunais administrativos e fiscais[25]), no sentido de submeter todos os litígios emergentes de contratos públicos à jurisdição administrativa[26], pois que «independentemente da natureza jurídica das entidades contratantes, o [critério adotado é] o da sujeição a normas de direito público (ou relativas à própria execução do contrato ou relativas aos procedimentos pré-contratuais (…))». Ao optar por uma qualificação única de contrato público o legislador admite a existência de relações jurídico-administrativas em contratos anteriormente qualificados como administrativos, de direito privado, bem como de contratos celebrados entre particulares[27].
Temos o contrato público assim definido como objeto do legislador no referido art. 180º do CPTA, ao referir-se a contratos administrativos. Prosseguindo na análise do já citado art. 180º, al. a) do CPTA, ao prever a sujeição do contencioso de legalidade de atos de execução do contrato à arbitragem – compreendendo as questões de validade, interpretação e execução –, o legislador procurou adequar o direito adjetivo à evolução experimentada pela Administração nas últimas décadas, que a levou a abandonar as tradicionais formas autoritárias, substituindo-as por mecanismos de consenso, o que, em última análise, se traduz no alargamento das matérias submetidas à arbitragem. 



3.2  Validade, interpretação e execução de contratos administrativos: o ato administrativo arbitrável.
Mesmo antes da entrada em vigor do CPTA – e em face da previsão do art. 4º/1 LAV –, a doutrina manifestava abertura quanto à submissão à arbitragem da fiscalização de legalidade de atos administrativos. Como justificava Sérvulo Correia «o caráter disponível ou indisponível do poder da Administração resulta da natureza vinculada ou discricionária do poder de definição do conteúdo da situação jurídica administrativa e não da forma típica adotada para a conduta concreta»[28], admitindo a possibilidade de lei especial permitir a submissão de arbitragem de litígios a que corresponderia o recurso contencioso de anulação. Por sua vez, Alexandra Leitão, afirmou que essa possibilidade não era de excluir, nem relativamente ao contencioso pré-contratual, «nem tão pouco, para apreciar a legalidade dos acordos procedimentais, integrativos ou substitutivos do procedimento, bem como a invalidade consequente ou intrínseca dos contratos administrativos, nos mesmos termos e desde que a atuação se insira no âmbito do exercício dos poderes discricionários da Administração»[29].
Se o legislador do CPTA se revelou inovador ao permitir a submissão à arbitragem de litígios emergentes da execução do contrato administrativo, parece não admitir os atos e formalidades da fase pré-contratual, i.e., dos atos e formalidades inerentes ao processo de formação da vontade do contraente público, iniciado com a decisão de contratar; pois que embora a redação se apresente, à vista desarmada, meramente exemplificativa – como parece resultar da expressão «incluindo a apreciação de atos (…)» –, convocando o art. 13º do CPTA e o 44º do ETAF, e a julgar pela opinião da doutrina maioritária, a arbitragem de atos da fase pré-contratual não se encontra permitida pelo art. 180º. Restrição que não constava do anteprojeto do mesmo CPTA (adiante ACPTA), de acordo com a interpretação das normas do art. 16º e do art. 97º/2.

De iure condendo deverá o legislador por termo a essa divergência[30], tendo em conta o facto de que a CRP «não estabelece uma reserva de jurisdição pública» e de que «os tribunais arbitrais são verdadeiros tribunais administrativos que, apesar de não estarem revestidos de imperium, exercem a iurdisdictio com a mesma dignidade que os tribunais administrativos estaduais».
Ademais seriam evidentes as vantagens que o mesmo alargamento traria para o funcionamento dos tribunais arbitrais na resolução de um litígio de que dependesse o conhecimento, a título prejudicial, da validade de um ato da fase pré-contratual que inquine a execução do contrato – v.g. o ato de adjudicação. Pelo contrário, impedido que está o tribunal arbitral de conhecer do objeto do litígio em termos globais, porque se entende o tribunal administrativo estadual como órgão exclusivamente competente para a declaração de conformidade, anulação, nulidade ou inexistência do ato, levanta-se o problema da dilação, privando a arbitragem de uma das vantagens que lhe é reconhecida, como é a celeridade na composição do litígio.
No caso de não se admitir os atos do contencioso pré-contratual no objeto da al. a) do art. 180º CPTA, restar-nos-á, de acordo com Diogo Freitas do Amaral[31], que na dependência de apreciação incidental de ato administrativo pelo tribunal da jurisdição oficial, possa o árbitro julgar apreciar a sua validade; pois que, decidindo-se pela sua ilegalidade, não está a anular o ato, mas apenas a desaplica-lo no caso sub judice, sem que daí resulte efeito de caso julgado – salvaguardando, por essa via, a competência da jurisdição administrativa para anular atos administrativos.
Questão controvertida é aquela que se suscita a propósito da arbitragem nos contratos com objeto passível de ato administrativo, em que se projeta no tribunal arbitral a fiscalização do contrato, de acordo com o regime previsto para o ato administrativo (aqui substituído pelo contrato). Do quadro legal aplicável, cremos que poderá o tribunal arbitral conhecer da validade desses contratos, nos aspetos que, uma vez vinculados à lei, tanto lhe devem conformidade na atuação mediante a celebração de contrato, como através da prática unilateral de um ato administrativo[32]. Será, contudo, uma apreciação limitada; ou outra coisa não se poderá retirar do CCP, ao excluir, no seu art. 313º/3, que nos contratos com objeto passível de ato administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos, possa a sentença arbitral modificar o seu conteúdo, a ponto de «precludir» o exercício da margem de livre decisão no exercício de poderes de modificação objetiva do contrato com fundamento em alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em assentou a decisão das partes ao contratar[33].


4. Referência ao problema da equidade
A LAV prevê no seu art. 39º que os árbitros sejam autorizados a julgar segundo a equidade, se for nesse sentido a convenção das partes. Tal solução comporta efeitos sobre a legalidade aplicável ao julgamento dos litígios pela via arbitral, pois que poderão abdicar, em certa medida, do Direito positivo. E abre a porta à aplicação contra legem da justiça do caso concreto[34]. O apelo à equidade deve partir de uma interligação entre esta e a legalidade administrativa, numa perspetiva dialética, apelando de novo ao critério do direito disponível. Tal impõe, de novo, uma distinção entre áreas vinculadas e discricionárias da decisão administrativa, pelo que haverá, em função da sua natureza, matérias insuscetíveis de apreciação à luz da equidade. Assim rejeitamos que a equidade sirva para substituir a lei; mas antes de aplicar, no sentido defendido por alguns autores, de uma equidade em sentido fraco, de individualização da norma geral e abstrata no caso concreto, com o objetivo de flexibilizar, integrar e aplicar o Direito com apelo aos princípios gerais do sistema, do que propriamente de o afastar. Trata-se ainda de obviar a problemas de natureza técnica que, perante o caso concreto, revelariam momentos de inoperacionalidade da norma positiva. Daí que o campo por excelência da equidade, pela sua metodologia e pelo seu caráter flexível, será o das ações de responsabilidade contratual[35].
A permissão da arbitragem de equidade não poderá, pois, funcionar como habilitação para decidir em termos «ajurídicos» ou «arbitrariamente contra lei expressa»; isto para evitar que a equidade derrogue o «padrão de conformidade normativa» que decorre do princípio da legalidade administrativa. Certo está que mesmo quando o tribunal decida contra legem ela encontrará o seu fundamento na dentro do próprio sistema jurídico e da própria legalidade. 
Por outro lado, recorrendo à equidade, a disponibilidade dos efeitos do Direito positivo no controlo da atuação administrativa por um tribunal arbitral, a Administração poderá escolher o grau de «maleabilidade» do Direito que vai servir no julgamento da sua própria atuação; pelo que nos deparamos perante uma dupla competência dos órgãos administrativos – de, simultaneamente, afastar a intervenção dos tribunais administrativos a favor dos tribunais arbitrais (especialmente, através do recurso à contratação, alternativa ao ato administrativo) e simultaneamente determinar o Direito aplicável ao julgamento. Estamos com Paulo Otero, quando o autor questiona a constitucionalidade desse «excesso de amplitude dispositiva conferida à Administração Pública», nomeadamente no que toca ao respeito pelo princípio da separação de poderes[36].

5.     Estrutura e funcionamento dos tribunais arbitrais
O tribunal arbitral administrativo funciona nos termos da LAV, com as adaptações necessárias. No que se refere à sua constituição e funcionamento do tribunal arbitral, o CPTA prevê, nos seus artigos 181º a 184º e 186º, que o interessado que pretenda recorrer à arbitragem pode exigir da Administração a celebração de compromisso arbitral – previsto na LAV. A apresentação do pedido do interessado destinado à outorga do compromisso arbitral tem efeito suspensivo relativamente aos prazos de que dependa a utilização dos meios processuais próprios da jurisdição administrativa. Quanto à Administração Pública, a outorga do compromisso arbitral em que será parte o Estado, é objeto de despacho do ministro responsável, cabendo essa competência no caso das Regiões Autónomas, das autarquias locais e das demais pessoas coletivas de direito público, conforme o caso, ao governo regional, ao órgão autárquico que desempenha funções executivas ou ao presidente do respetivo órgão dirigente.
As decisões de um tribunal arbitral podem ser anuladas pelo TCA com os mesmos fundamentos que, na LAV, podem determinar a anulação da decisão e, por outro, ser objeto de recurso para o CTA do mesmo modo que a LAV prevê o recurso para o TR, sempre que o tribunal não tenha decidido seguindo a equidade[37]



Diogo N. Gaspar
19379




[1] O neologismo foi introduzido pelo legislador, na Lei da Arbitragem Voluntária, adiante LAV, servindo para «exprimir uma qualidade do litígio» (…) e a «licitudade da sua solução por via arbitral» (Raúl Ventura, Convenção de arbitragem, in Revista da Ordem dos Advogados, n.º 46, 1986, p. 317).

[2] Jorge Miranda, Manual de Direito constitucional, tomo IV, 3ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 200, p. 263

[3] Pedro Romano Martinez, Soluções alternativas de resolução de conflitos, em especial a arbitragem, in Estudos em memória do Prof. Doutor José Luís Saldanha Sanches, vol. II, 2011, p. 867

[4] Sem, contudo, ignorar esse percurso, v. Manuel P. Barrocas, Manual da arbitragem, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 51 e ss; e, em especial no Direito português, José Duarte Nogueira, Arbitragem na história do Direito português, in Revista Jurídica da AAFDL, n.º 20, Lisboa: AAFDL, 1995, pp. 10 e ss., e Francisco Cortez, A arbitragem voluntária em Portugal. Dos ricos homens aos tribunais privados, in O Direito, n.º 124, 1992, pp. 365 e ss.

[5] Assim, Pedro Romano Martinez, Soluções alternativascit, p. 870;

[6] Cf. Art.º. 1º da Lei da Arbitragem Voluntária (adiante LAV).

[7] Manuel P. Barrocas, Manual…cit., p. 100, traduzindo Redfern e Hunter, no sentido de que «os legisladores e tribunais de cada Estado devem decidir sobre a importância de reservar certas matérias de interesse público (...) para os tribunais e encorajar a arbitragem em assuntos de natureza comercial».

[8] Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra: Coimbra Almedina, 2007, p. 808

[9] Possibilidade que passaria a «necessidade» na revisão de 1989, como afirma Jorge Miranda, Manual de Direito constitucional, tomo I, 8ª ed., 2009, Coimbra: Coimbra Editora, p. 383. Sobre a revisão constitucional de 1989 e suas implicações no contencioso administrativo, v. Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise. Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo, Coimbra: Almedina, 2009, p. 29. 

[10] José Manuel Sérvulo Correia, A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em memória do Prof. Doutor João de Castro Mendes, Lisboa: LEX, 1995, p. 231

[11] Assim, Maria João Estorninho, Direito europeu dos contratos públicos, Coimbra: Almedina, 2006, p. 333

[12] Citamos Ana Perestrelo de Oliveira, A arbitragem de litígios com entes públicos, Coimbra: Almedina, 2010, p. 34;

[13] Vasco Pereira da Silva, Em busca do ato administrativo perdido, Coimbra: Almedina, 2003, cap. III

[14] Como caracteriza Maria João Estorninho, em A fuga para o Direito privado, Coimbra: Almedina, 2009, pp. 47 e ss.

[15] Nomeadamente, Marcelo Caetano, Manual de Direito administrativo, 6ª edição, Coimbra: Almedina, 1963, p. 766;

[16] José Manuel Sérvulo Correia, A arbitragem... cit, pp. 233-234;

[17] Cf. art. 2º/2 do Decreto-Lei 129/84;

[18] A teoria dos atos destacáveis foi uma criação da doutrina e jurisprudência francesas do início do século XX e propôs a separação de certos atos do respetivo procedimento ou do contrato, para efeitos de impugnação contenciosa. Assim, por oposição à teoria da incorporação, do século XIX, de acordo com a qual todos os atos administrativos praticados ao longo do procedimento constituíam um corpo indivisível, implicando que todos aqueles praticados fossem parte da relação contratual.

[19] Mário Aroso de Almeida, Anulação de atos administrativos e relações jurídicas emergentes, Coimbra: Almedina, 2002, p. 98; já Alexandra Leitão, A proteção dos terceiros no contencioso dos contratos da Administração Pública, Coimbra: Almedina, 2002, p. 273, sugere critérios de distinção como «a comparação com o contrato privado equivalente; a forma do ato; a atuação ser ou não precedida de negociações; a possibilidade de aplicação do regime jurídico do CPA; o grau de predeterminação das cláusulas contratuais relativamente à atuação administrativa; e os efeitos sobre terceiros».

[20] V., a esse propósito, o Acórdão do STA de 20 de dezembro de 2000, no âmbito do processo n.º 46372;

[21] Reproduzindo esse entendimento, v. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (adiante STA), de 14 de maio de 1998, no âmbito do processo n.º 42938;

[22] V. o art. 3º da antiga Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LEPTA)
[23] Seguimos Vasco Pereira da Silva, O contencioso…cit., p. 479;

[24] Diploma que acolheu o conteúdo das diretivas europeias 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, e que operou à compatibilização da noção europeia de contrato público com a noção tradicional do ordenamento jurídico português;

[25] Com a crítica de Maria João Estorninho, Direito europeu…cit., p. 286, que alertava para a necessidade de «repensar o sistema de contencioso da atividade contratual pública», tendo em conta o processo de uniformização de regimes em curso; por sua vez, Vasco Pereira da Silva, O contencioso…cit., p. 477, classifica de «dicotomia esquizofrénica» essa que levava a Administração «a distinguir, de ‘entre os iguais’, aqueles que ‘eram mais iguais que outros’, de modo a lhes poder ser atribuído um ‘foro especial’, privativo da Administração»;

[26] Cf. o art. 4º/1 ETAF no qual o legislador, abandonando a distinção entre contratos administrativos e contratos de direito privado, procede a uma enumeração «de qualificação», da qual resulta um «regime processual comum para todos os contratos da função administrativa», como afirma Vasco Pereira da Silva, O contencioso…cit., p. 493.

[27] Assim, Maria João Estorninho, Direito europeu… cit., pp. 287 e ss..; contra Pedro Gonçalves, O contrato administrativo (uma instituição do direito administrativo do nosso tempo), Almedina: Coimbra, 2003, pp. 53 e ss., que se pronunciava a favor da manutenção da categoria do contrato administrativo, reduzindo a reforma de 2002 a uma nova configuração processual em matéria contratual, sem «força nem legitimidade» para ditar uma «sentença de morte» da figura do contrato administrativo, porque embora ausente da letra da lei, se mantinha bem presente «no seu espírito», invocando nesse sentido a redação da al. f) do mesmo art. 4º/1; posição que consideramos ser hoje indefensável, tendo em conta a entrada em vigor do CCP, pois que tal representaria a negação do primado do Direito da União Europeia.

[28] José Manuel Sérvulo Correia, A arbitragem…cit., p. 235

[29] Alexandra Leitão, A proteção…cit., p. 401-402.

[30] José Luís Esquível, Os contratos…cit., p. 243.

[31] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito administrativo, vol. II, Coimbra: Almedina, 2010, p. 657;

[32] Assim, José Luís Esquível, Os contratos…cit., p. 210, acrescentando que a doutrina tradicional que vedava a apreciação pelos tribunais arbitrais da validade de atos administrativos acabava «sem se aperceber de tal facto, por ‘fechar a porta’ a determinadas situações que ‘podem entrar pela janela’»; aceitando ainda que «os tribunais arbitrais possam, na mesma medida, apreciar a invalidade de um ato administrativo (…) praticado como alternativa ao (…) contrato».

[33] Nesse sentido, Luís Cabral de Moncada, A arbitragem no Direito administrativo; uma justiça alternativa, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 179;

[34] Tomando a definição de José de Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e teoria geral, Coimbra: Almedina, 2005, p. 430;

[35] Seguimos José Luís Esquível, Os contratoscit., p. 289.

[36] Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade, Coimbra: Almedina, 2007, p. 1067-1068, que conclui ir essa solução de encontro ao «entendimento de que ‘julgar a Administração ainda é administrar’» em vez daquele que, «tal como a Constituição impõe ao integrar os tribunais administrativos no poder judicial, ‘julgar a Administração é exercer a função jurisdicional’»

[37] José Luís Esquível, Os contratos…cit., p. 192.

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