1 – Arbitragem e arbitrabilidade; 2. Os tribunais arbitrais como verdadeiros tribunais; 3. O direito disponível; 3.1 Continuação; os contratos administrativos como objeto do litígio; 3.2 Validade, interpretação e execução do contrato administrativo. O ato administrativo arbitrável; 4. Referência ao problema da equidade; 5. Estrutura e funcionamento do tribunal arbitral.
1.
Arbitragem e arbitrabilidade[1]
É remota a origem da
arbitragem, estando na sua génese a recusa da centralização absoluta do poder
jurisdicional nos tribunais estaduais[2]
e a preocupação com a celeridade na composição dos litígios – partindo do
pressuposto de que não há justiça quando tarda a sua solução[3].
Por não ser objeto do presente texto, não abordaremos aqui o passado histórico
do instituto da arbitragem. Diremos apenas que a arbitragem só conhecerá um
desenvolvimento significativo a partir de meados do século XX, no período subsequente
à Segunda Guerra Mundial[4],
particularmente relacionada com o desenvolvimento da economia.
O recurso à arbitragem
comporta vantagens e elas alimentaram o seu desenvolvimento. Desde logo porque, pelo
menor formalismo que comporta relativamente ao processo dos tribunais
(judiciais ou administrativos), permite obter decisões céleres, tornando a
economia mais eficiente. Por outro lado ela oferece uma maior previsibilidade e
adequação à resolução do litígio, já que a escolha dos árbitros permite que as
partes o façam em função do perfil mais adequado ao caso concreto[5].
Consagrando a liberdade de
atuação dos particulares na escolha do modo de resolução dos seus litígios – e
ultrapassadas as dúvidas quanto à sua compatibilidade constitucional (v. infra, 2.) –, a arbitrabilidade de um litígio emergente de relação jurídica
administrativa sujeita-se apenas à disponibilidade do direito[6], na medida em que os sujeitos possam
dele dispor, no âmbito da sua autonomia privada[7]. Assim se consideram excluídos da
possibilidade de convenções de arbitragem «os direitos indisponíveis e os
litígios constitucionalmente submetidos em exclusivo aos tribunais» estaduais[8].
2.
Os tribunais arbitrais como
verdadeiros tribunais
Indispensável na
discussão acerca do papel da arbitragem no contencioso administrativo, será
atender à posição que o legislador imprimiu na Lei Fundamental. Na sua versão
originária, a Constituição de 1976, consagrava, no seu art. 212º –
correspondente ao atual 209º –, a jurisdição dos tribunais judiciais (n.º1),
dos tribunais militares e do Tribunal de Contas (n.º2) e abria a possibilidade
de criação de tribunais administrativos e fiscais (n.º3)[9].
Só em 1982 o legislador constituinte quebrou o silêncio quanto à arbitragem,
consagrando os tribunais arbitrais como verdadeiros tribunais. Ao fazê-lo
removeu as dúvidas que até então preocupavam alguma doutrina – minoritária, por
certo – quanto à compatibilidade da arbitragem com a Lei Fundamental. Alcançou
ainda outra importante consequência como foi a da qualificação da atividade dos
árbitros como «um caso de exercício de uma função estadual por particulares» o
que permitiria ao legislador ordinário reconhecer força de caso julgado formal
e material à decisão arbitral[10].
Tendo em
conta a jurisprudência favorável à validade de cláusulas compromissórias
inseridas em contratos administrativos – de que são exemplo vários acórdãos
proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça na década de 1950 – e a posição de
doutrina autorizada na matéria, consideramos ser criticável o silêncio do legislador
constituinte de 1976 face à arbitragem.
3.
O direito disponível
Como dissemos atrás, a disponibilidade do direito face à ordem pública foi o critério
estabelecido pelo legislador, para permitir a submissão de um litígio aos
tribunais arbitrais. Face ao critério em causa, a natureza patrimonial da
matéria transmite, apenas, uma presunção de arbitrabilidade,
já que haverá direitos de conteúdo patrimonial não arbitráveis. Não obstante,
tendo em conta a limitação objetiva imposta à arbitragem no contencioso
administrativo, o domínio tradicional
da arbitragem no contencioso administrativo foi o das questões patrimoniais,
nomeadamente na efetivação da responsabilidade civil, a par da interpretação,
validade ou execução dos contratos administrativos[11],
reservando à jurisdição oficial o território do chamado contencioso por natureza.
Nesse sentido, atendo-se ao
«Estado e outras pessoas coletivas de direito público», estabelece o art. 1º/4
da LAV, que estas poderão «celebrar convenções de arbitragem, se para tanto
forem autorizados por lei especial ou se elas tiverem por objeto litígios
respeitantes a relações de direito privado». Disposição que se revela,
em simultâneo[12], como «(…) uma regra de arbitrabilidade
subjetiva e objetiva, pois que contém uma genérica permissão de recurso à via
arbitral (…), que restringe, depois, em função do objeto do litígio em análise
(…)».
Esta formulação tem necessariamente de ser entendida à
luz da evolução da atuação da Administração Pública nas últimas décadas. Evolução que tem como principal
manifestação a superação das tradicionais formas de atuação administrativa[13] – baseada
na emanação de regulamentos administrativos, na prática de atos administrativos
e na realização de operações materiais – para uma multiplicidade de formas de
atuação, com especial intensidade no recurso à contratação.
O alargamento do âmbito dos tribunais arbitrais no contencioso
administrativo é também contemporâneo do Estado pós-social e da crise do
Estado-providência, responsável pelo fenómeno de privatização da Administração
Pública[14], no
sentido cometer a entes jurídicos de natureza privada – ainda que sujeitos aos
princípios gerais de Direito Administrativo –, a prossecução de fins
atribuídos, pela Constituição, à Administração Pública.
No que ao contencioso
administrativo diz respeito, a doutrina tradicional[15]
reconduzia o critério da disponibilidade do direito à distinção entre o contencioso de anulação por natureza e a
ação administrativa. No primeiro,
tendo por objeto a legalidade do ato administrativo, o juiz limitar-se-ia à sua
anulação, sem que pudesse imiscuir-se do conteúdo da decisão da Administração,
praticado ao abrigo do princípio de discricionariedade administrativa;
enquanto, que, na segunda, não gozando a Administração dessa «autoridade
prévia», teria o juiz uma a faculdade de impor um determinado sentido à atuação
da Administração, sem que, com esse comando, violasse o princípio da separação
de poderes.
Nesta dualidade de meios
processuais se traduzia a disponibilidade ou indisponibilidade do direito.
Concretizando, com Sérvulo Correia[16],
naquela parte em que a Administração exercia poderes de autoridade –
nomeadamente através da prática de ato administrativo – a Administração seria
titular de uma situação jurídica indisponível, daí não se aceitar que essa
situação fosse submetida à arbitragem. No contencioso administrativo (não
anulatório) a Administração, não exercendo poderes de autoridade, operava
segundo uma margem de livre decisão, donde a faculdade de recorrer à arbitragem, com derrogação da competência dos
tribunais administrativos para a ação administrativa.
Esta distinção já não
encontra, hoje, o mesmo sentido de outrora, pois que, como previa o 1º/4 da
LAV, na sua versão originária – remetendo para lei especial a arbitragem para
efeito de recurso contencioso de anulação –, o artigo 180º do CPTA acabou por incluir no
âmbito material dos tribunais arbitrais «questões relativas a atos
administrativos», transgredindo, por um lado, a tradicional conceção de
proibição de os tribunais arbitrais conhecerem da legalidade dos atos
administrativos – baseado no critério supra
mencionado da disponibilidade do direito –, e por outro, indo além da previsão
do ETAF que, na sua versão originária, de 1984, limitava àqueles tribunais o
contencioso de contratos administrativos e de responsabilidade extracontratual
da Administração[17].
Porém, o juiz arbitral não pode conhecer da legalidade
todos os atos. É o caso dos chamados atos destacáveis, designação
baseada na teoria do ato destacável[18],
subscrita pelo legislador português. Esta previa a impugnabilidade do ato de
forma autónoma, como anteriormente se retirava do art. 185º do Código do
Procedimento Administrativo (adiante CPA), depois revogado com a entrada em
vigor CPTA, bem como nas alíneas d) e
e) do 4º/1 do ETAF.
Determinar
se o ato é ou não destacável levanta, porém, alguns problemas. Será necessário
indagar a conduta da Administração, verificando se estamos perante um ato
administrativo e não uma declaração negocial (e se o mesmo é impugnável),
determinando o ato administrativo quando «razões de segurança jurídica e
ponderação de interesses envolvidos, tanto de terceiros como aqueles que a lei
especificamente coloque a cargo da entidade pública, exigirem o exercício de um
poder de definição jurídica unilateral»[19]-[20].
Cabendo ao tribunal arbitral
qualificar a conduta do contraente público, se esta agiu através de ato
administrativo ou de declaração negocial, deverá o juiz arbitral conhecer da
jurisprudência dos tribunais administrativos estaduais nessa matéria. As
consequências serão relevantes, pois que tratando-se de ato administrativo, o
tribunal arbitral não poderá conhecer da sua legalidade. A teoria da destacabilidade é, pois, inimiga da
arbitragem.
3.1 Continuação; os contratos administrativos como objeto do litígio.
Do que ficou dito acerca
o papel da arbitragem no contencioso administrativo, entendia a doutrina
tradicional – e o legislador anterior ao CPTA –, a insusceptibilidade do
tribunal arbitral apreciar a legalidade de atos administrativos[21];
posição que se defendia no carácter de ordem pública[22]
das normas de competência dos tribunais administrativos. Cometia-se assim à
exclusividade do juiz administrativo os litígios que envolvessem a anulação de
atos administrativos ou a condenação à prática de tais atos; ao passo que nas
questões meramente contratuais de entre as relativas à validade, interpretação
e execução do contrato, dispunha o tribunal arbitral de plena jurisdição. A
entrada em vigor do CPTA coloca em cheque este recorte tradicional.
Impõe-se, porém, um esclarecimento prévio sobre a redação da al. a) do art. 180º do CPTA, e o seu conceito
de contratos administrativos. Tal
importa levar em conta a dicotomia entre contratos administrativos de contratos
de direito privado, celebrados pela Administração. Assim, porque se considerava
dever existir um regime jurídico de direito público para os contratos
administrativos e outro de direito privado, para os demais contratos em que a
Administração fosse parte, a teoria do contrato administrativo propugnava uma
distinção em razão do exercício de poderes de autoridade, donde decorriam
poderes especiais (v.g. de interpretação, de fiscalização, de direção, de
sanção, de modificação unilateral, de rescisão unilateral). Ideia própria da Administração agressiva do Estado
Liberal, mas não de uma Administração baseada no princípio da participação dos
particulares e na consensualidade, própria da Administração prestadora do Estado Social[23]. A
entrada em vigor do novo Código de Contratos Públicos[24]
(adiante CCP), procedeu à unificação do regime jurídico aplicável aos contratos
da Administração Pública e, consequentemente, à uniformização em termos de
competência jurisdicional (até então repartida entre tribunais judiciais e
tribunais administrativos e fiscais[25]), no
sentido de submeter todos os litígios emergentes de contratos públicos à
jurisdição administrativa[26], pois
que «independentemente da natureza jurídica das entidades contratantes, o
[critério adotado é] o da sujeição a normas de direito público (ou relativas à
própria execução do contrato ou relativas aos procedimentos pré-contratuais
(…))». Ao optar por uma qualificação única de contrato público o legislador admite a existência de relações
jurídico-administrativas em contratos anteriormente qualificados como administrativos, de direito privado, bem como de contratos celebrados entre
particulares[27].
Temos o
contrato público assim definido como objeto do legislador no referido art. 180º
do CPTA, ao referir-se a contratos
administrativos. Prosseguindo na análise do já citado art. 180º, al. a) do CPTA, ao prever a sujeição do contencioso
de legalidade de atos de execução do contrato à arbitragem – compreendendo as
questões de validade, interpretação e execução –, o legislador procurou adequar
o direito adjetivo à evolução experimentada pela Administração nas últimas
décadas, que a levou a abandonar as tradicionais formas autoritárias,
substituindo-as por mecanismos de consenso, o que, em última análise, se traduz
no alargamento das matérias submetidas à arbitragem.
3.2 Validade, interpretação e execução de contratos administrativos: o ato
administrativo arbitrável.
Mesmo antes da entrada em
vigor do CPTA – e em face da previsão do art. 4º/1 LAV –, a doutrina
manifestava abertura quanto à submissão à arbitragem da fiscalização de
legalidade de atos administrativos. Como justificava Sérvulo Correia «o caráter disponível ou indisponível do
poder da Administração resulta da natureza vinculada ou discricionária do poder
de definição do conteúdo da situação jurídica administrativa e não da forma
típica adotada para a conduta concreta»[28],
admitindo a possibilidade de lei especial permitir a submissão de arbitragem de
litígios a que corresponderia o recurso contencioso de anulação. Por sua vez, Alexandra Leitão, afirmou que essa possibilidade
não era de excluir, nem relativamente ao contencioso pré-contratual, «nem tão
pouco, para apreciar a legalidade dos acordos procedimentais, integrativos ou substitutivos do procedimento, bem
como a invalidade consequente ou intrínseca dos contratos administrativos, nos
mesmos termos e desde que a atuação se insira no âmbito do exercício dos
poderes discricionários da Administração»[29].
Se o legislador do CPTA se
revelou inovador ao permitir a submissão à arbitragem de litígios emergentes da
execução do contrato administrativo, parece não admitir os atos e formalidades
da fase pré-contratual, i.e., dos atos e formalidades inerentes ao processo de
formação da vontade do contraente público, iniciado com a decisão de contratar;
pois que embora a redação se apresente,
à vista desarmada, meramente exemplificativa – como parece resultar da
expressão «incluindo a apreciação de atos (…)» –, convocando o art. 13º do CPTA
e o 44º do ETAF, e a julgar pela opinião da doutrina maioritária, a arbitragem
de atos da fase pré-contratual não se encontra permitida pelo art. 180º. Restrição
que não constava do anteprojeto do mesmo CPTA (adiante ACPTA), de acordo com a
interpretação das normas do art. 16º e do art. 97º/2.
De iure condendo deverá o legislador por termo a essa divergência[30], tendo em conta
o facto de que a CRP «não estabelece uma reserva de jurisdição pública» e de
que «os tribunais arbitrais são verdadeiros tribunais administrativos que,
apesar de não estarem revestidos de imperium,
exercem a iurdisdictio com a mesma
dignidade que os tribunais administrativos estaduais».
Ademais seriam evidentes
as vantagens que o mesmo alargamento traria para o funcionamento dos tribunais
arbitrais na resolução de um litígio de que dependesse o conhecimento, a título
prejudicial, da validade de um ato da fase pré-contratual que inquine a
execução do contrato – v.g. o ato de
adjudicação. Pelo contrário, impedido que está o tribunal arbitral de conhecer
do objeto do litígio em termos globais, porque se entende o tribunal
administrativo estadual como órgão exclusivamente competente para a declaração
de conformidade, anulação, nulidade ou inexistência do ato, levanta-se o
problema da dilação, privando a arbitragem de uma das vantagens que lhe é
reconhecida, como é a celeridade na composição do litígio.
No caso de não se admitir
os atos do contencioso pré-contratual no objeto da al. a) do art. 180º CPTA, restar-nos-á, de acordo com Diogo Freitas do Amaral[31], que na dependência de apreciação
incidental de ato administrativo pelo tribunal da jurisdição oficial, possa o
árbitro julgar apreciar a sua validade; pois que, decidindo-se pela sua
ilegalidade, não está a anular o ato, mas apenas a desaplica-lo no caso sub judice, sem que daí resulte efeito de
caso julgado – salvaguardando, por essa via, a competência da jurisdição
administrativa para anular atos administrativos.
Questão
controvertida é aquela que se suscita a propósito da arbitragem nos contratos
com objeto passível de ato administrativo, em que se projeta no tribunal
arbitral a fiscalização do contrato, de acordo com o regime previsto para o ato
administrativo (aqui substituído pelo contrato). Do quadro legal aplicável, cremos
que poderá o tribunal arbitral conhecer da validade desses contratos, nos
aspetos que, uma vez vinculados à lei, tanto lhe devem conformidade na atuação
mediante a celebração de contrato, como através da prática unilateral de um ato
administrativo[32].
Será, contudo, uma apreciação limitada; ou outra coisa não se poderá retirar do
CCP, ao excluir, no seu art. 313º/3, que nos contratos com objeto passível de
ato administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos,
possa a sentença arbitral modificar o seu conteúdo, a ponto de «precludir» o
exercício da margem de livre decisão no exercício de poderes de modificação
objetiva do contrato com fundamento em alteração anormal e imprevisível das
circunstâncias em assentou a decisão das partes ao contratar[33].
4. Referência ao problema da equidade
A
LAV prevê no seu art. 39º que os árbitros sejam autorizados a julgar segundo a
equidade, se for nesse sentido a convenção das partes. Tal solução comporta
efeitos sobre a legalidade aplicável ao julgamento dos litígios pela via
arbitral, pois que poderão abdicar, em certa medida, do Direito positivo. E
abre a porta à aplicação contra legem
da justiça do caso concreto[34]. O
apelo à equidade deve partir de uma interligação entre esta e a legalidade
administrativa, numa perspetiva dialética, apelando de novo ao critério do
direito disponível. Tal impõe, de novo, uma distinção entre áreas vinculadas e
discricionárias da decisão administrativa, pelo que haverá, em função da sua
natureza, matérias insuscetíveis de apreciação à luz da equidade. Assim
rejeitamos que a equidade sirva para substituir a lei; mas antes de aplicar, no
sentido defendido por alguns autores, de uma equidade em sentido fraco, de individualização da
norma geral e abstrata no caso concreto, com o objetivo de flexibilizar,
integrar e aplicar o Direito com apelo aos princípios gerais do sistema, do que
propriamente de o afastar. Trata-se ainda de obviar a problemas de natureza
técnica que, perante o caso concreto, revelariam momentos de inoperacionalidade
da norma positiva. Daí que o campo por excelência da equidade, pela sua
metodologia e pelo seu caráter flexível, será o das ações de responsabilidade
contratual[35].
A
permissão da arbitragem de equidade não poderá, pois, funcionar como
habilitação para decidir em termos «ajurídicos» ou «arbitrariamente contra lei
expressa»; isto para evitar que a equidade derrogue o «padrão de conformidade
normativa» que decorre do princípio da legalidade administrativa. Certo está
que mesmo quando o tribunal decida contra
legem ela encontrará o seu fundamento na dentro do próprio sistema jurídico
e da própria legalidade.
Por outro lado, recorrendo à equidade, a disponibilidade dos efeitos do Direito positivo no controlo da atuação administrativa por um tribunal arbitral, a Administração poderá escolher o grau de «maleabilidade» do Direito que vai servir no julgamento da sua própria atuação; pelo que nos deparamos perante uma dupla competência dos órgãos administrativos – de, simultaneamente, afastar a intervenção dos tribunais administrativos a favor dos tribunais arbitrais (especialmente, através do recurso à contratação, alternativa ao ato administrativo) e simultaneamente determinar o Direito aplicável ao julgamento. Estamos com Paulo Otero, quando o autor questiona a constitucionalidade desse «excesso de amplitude dispositiva conferida à Administração Pública», nomeadamente no que toca ao respeito pelo princípio da separação de poderes[36].
Por outro lado, recorrendo à equidade, a disponibilidade dos efeitos do Direito positivo no controlo da atuação administrativa por um tribunal arbitral, a Administração poderá escolher o grau de «maleabilidade» do Direito que vai servir no julgamento da sua própria atuação; pelo que nos deparamos perante uma dupla competência dos órgãos administrativos – de, simultaneamente, afastar a intervenção dos tribunais administrativos a favor dos tribunais arbitrais (especialmente, através do recurso à contratação, alternativa ao ato administrativo) e simultaneamente determinar o Direito aplicável ao julgamento. Estamos com Paulo Otero, quando o autor questiona a constitucionalidade desse «excesso de amplitude dispositiva conferida à Administração Pública», nomeadamente no que toca ao respeito pelo princípio da separação de poderes[36].
5.
Estrutura e funcionamento dos tribunais
arbitrais
O tribunal arbitral administrativo
funciona nos termos da LAV, com as adaptações necessárias. No que se refere à sua
constituição e funcionamento do tribunal arbitral, o CPTA prevê, nos seus
artigos 181º a 184º e 186º, que o interessado que pretenda recorrer à
arbitragem pode exigir da Administração a celebração de compromisso arbitral –
previsto na LAV. A apresentação do pedido do interessado destinado à outorga do
compromisso arbitral tem efeito suspensivo relativamente aos prazos de que
dependa a utilização dos meios processuais próprios da jurisdição
administrativa. Quanto à Administração Pública, a outorga do compromisso
arbitral em que será parte o Estado, é objeto de despacho do ministro
responsável, cabendo essa competência no caso das Regiões Autónomas, das
autarquias locais e das demais pessoas coletivas de direito público, conforme o
caso, ao governo regional, ao órgão autárquico que desempenha funções
executivas ou ao presidente do respetivo órgão dirigente.
As decisões de um tribunal
arbitral podem ser anuladas pelo TCA com os mesmos fundamentos que, na LAV,
podem determinar a anulação da decisão e, por outro, ser objeto de recurso para
o CTA do mesmo modo que a LAV prevê o recurso para o TR, sempre que o tribunal
não tenha decidido seguindo a equidade[37].
Diogo N. Gaspar
19379
Diogo N. Gaspar
19379
[1] O neologismo foi introduzido pelo legislador, na Lei
da Arbitragem Voluntária, adiante LAV, servindo para «exprimir uma qualidade do
litígio» (…) e a «licitudade da sua solução por via arbitral» (Raúl Ventura, Convenção de arbitragem, in Revista
da Ordem dos Advogados, n.º 46, 1986, p. 317).
[2] Jorge Miranda, Manual de Direito constitucional, tomo
IV, 3ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 200, p. 263
[3] Pedro Romano Martinez,
Soluções alternativas de resolução de
conflitos, em especial a arbitragem, in Estudos
em memória do Prof. Doutor José Luís Saldanha Sanches, vol. II, 2011, p.
867
[4] Sem, contudo, ignorar esse percurso, v. Manuel P. Barrocas, Manual da arbitragem, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 51 e ss; e, em
especial no Direito português, José
Duarte Nogueira, Arbitragem na
história do Direito português, in Revista
Jurídica da AAFDL, n.º 20, Lisboa: AAFDL, 1995, pp. 10 e ss., e Francisco Cortez, A arbitragem voluntária em Portugal. Dos ricos homens aos tribunais privados, in O Direito,
n.º 124, 1992, pp. 365 e ss.
[5] Assim, Pedro
Romano Martinez, Soluções
alternativas…cit, p. 870;
[6] Cf. Art.º. 1º da Lei da Arbitragem Voluntária
(adiante LAV).
[7]
Manuel P. Barrocas, Manual…cit., p. 100, traduzindo Redfern e Hunter, no
sentido de que «os legisladores e tribunais de cada Estado devem decidir sobre
a importância de reservar certas matérias de interesse público (...) para os
tribunais e encorajar a arbitragem em assuntos de natureza comercial».
[8] Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra: Coimbra
Almedina, 2007, p. 808
[9]
Possibilidade que passaria a «necessidade» na revisão de 1989, como afirma Jorge Miranda, Manual de Direito constitucional, tomo I, 8ª ed., 2009, Coimbra:
Coimbra Editora, p. 383. Sobre a revisão constitucional de 1989 e suas
implicações no contencioso administrativo, v. Vasco
Pereira da Silva, O contencioso
administrativo no divã da psicanálise. Ensaio sobre as ações no novo processo
administrativo, Coimbra: Almedina, 2009, p. 29.
[10] José Manuel
Sérvulo Correia, A arbitragem
voluntária no domínio dos contratos administrativos, in Estudos em memória do Prof. Doutor João de
Castro Mendes, Lisboa: LEX, 1995, p. 231
[11]
Assim, Maria João
Estorninho, Direito europeu dos contratos públicos, Coimbra: Almedina, 2006, p.
333
[12] Citamos Ana Perestrelo de Oliveira, A arbitragem
de litígios com entes públicos,
Coimbra: Almedina, 2010, p. 34;
[13] Vasco
Pereira da Silva, Em busca do ato
administrativo perdido, Coimbra: Almedina, 2003, cap. III
[14] Como caracteriza Maria
João Estorninho, em A fuga para o
Direito privado, Coimbra: Almedina, 2009, pp. 47 e ss.
[15] Nomeadamente, Marcelo
Caetano, Manual de Direito administrativo,
6ª edição, Coimbra: Almedina, 1963, p. 766;
[16] José Manuel
Sérvulo Correia, A arbitragem... cit, pp. 233-234;
[17] Cf. art. 2º/2 do Decreto-Lei 129/84;
[18] A teoria dos atos destacáveis foi uma criação da
doutrina e jurisprudência francesas do início do século XX e propôs a separação
de certos atos do respetivo procedimento ou do contrato, para efeitos de
impugnação contenciosa. Assim, por oposição à teoria da incorporação, do século
XIX, de acordo com a qual todos os atos administrativos praticados ao longo do
procedimento constituíam um corpo indivisível, implicando que todos aqueles
praticados fossem parte da relação contratual.
[19] Mário Aroso de
Almeida, Anulação de atos
administrativos e relações jurídicas emergentes, Coimbra: Almedina, 2002,
p. 98; já Alexandra Leitão, A proteção dos terceiros no contencioso dos
contratos da Administração Pública, Coimbra: Almedina, 2002, p. 273, sugere
critérios de distinção como «a comparação com o contrato privado equivalente; a
forma do ato; a atuação ser ou não precedida de negociações; a possibilidade de
aplicação do regime jurídico do CPA; o grau de predeterminação das cláusulas
contratuais relativamente à atuação administrativa; e os efeitos sobre
terceiros».
[20] V., a esse propósito, o Acórdão do STA de 20 de
dezembro de 2000, no âmbito do processo n.º 46372;
[21] Reproduzindo esse entendimento, v. o Acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo (adiante STA), de 14 de maio de 1998, no âmbito
do processo n.º 42938;
[22] V. o
art. 3º da antiga Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LEPTA)
[23] Seguimos Vasco
Pereira da Silva, O contencioso…cit.,
p. 479;
[24] Diploma que acolheu o conteúdo das diretivas europeias
2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do
Conselho, e que operou à compatibilização da noção europeia de contrato público com a noção tradicional
do ordenamento jurídico português;
[25] Com a crítica de Maria
João Estorninho, Direito europeu…cit.,
p. 286, que alertava para a necessidade de «repensar o sistema de contencioso
da atividade contratual pública», tendo em conta o processo de uniformização de
regimes em curso; por sua vez, Vasco
Pereira da Silva, O contencioso…cit.,
p. 477, classifica de «dicotomia
esquizofrénica» essa que levava a Administração «a distinguir, de ‘entre os
iguais’, aqueles que ‘eram mais iguais que outros’, de modo a lhes poder ser
atribuído um ‘foro especial’, privativo da Administração»;
[26] Cf. o art. 4º/1 ETAF no qual o legislador, abandonando
a distinção entre contratos administrativos e contratos de direito privado, procede
a uma enumeração «de qualificação», da qual resulta um «regime processual comum
para todos os contratos da função administrativa», como afirma Vasco Pereira da Silva, O contencioso…cit., p. 493.
[27] Assim, Maria
João Estorninho, Direito europeu…
cit., pp. 287 e ss..; contra Pedro
Gonçalves, O contrato administrativo (uma instituição do
direito administrativo do nosso tempo), Almedina: Coimbra, 2003, pp. 53 e
ss., que se pronunciava a favor da manutenção da categoria do contrato administrativo, reduzindo a
reforma de 2002 a uma nova configuração processual em matéria contratual, sem
«força nem legitimidade» para ditar uma «sentença de morte» da figura do contrato administrativo, porque embora
ausente da letra da lei, se mantinha bem presente «no seu espírito», invocando
nesse sentido a redação da al. f) do
mesmo art. 4º/1; posição que consideramos ser hoje indefensável, tendo em conta
a entrada em vigor do CCP, pois que tal representaria a negação do primado do
Direito da União Europeia.
[28] José Manuel
Sérvulo Correia, A arbitragem…cit.,
p. 235
[29] Alexandra
Leitão, A proteção…cit., p.
401-402.
[30] José Luís Esquível, Os
contratos…cit., p. 243.
[31] Diogo Freitas
do Amaral, Curso de Direito
administrativo, vol. II, Coimbra: Almedina, 2010, p. 657;
[32] Assim, José
Luís Esquível, Os contratos…cit.,
p. 210, acrescentando que a doutrina tradicional que vedava a apreciação pelos
tribunais arbitrais da validade de atos administrativos acabava «sem se
aperceber de tal facto, por ‘fechar a porta’ a determinadas situações que
‘podem entrar pela janela’»; aceitando ainda que «os tribunais arbitrais
possam, na mesma medida, apreciar a invalidade de um ato administrativo (…)
praticado como alternativa ao (…) contrato».
[33] Nesse sentido, Luís
Cabral de Moncada, A arbitragem no
Direito administrativo; uma justiça alternativa, in Revista da Faculdade de Direito da
Universidade do Porto, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 179;
[34] Tomando a definição de José de Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e teoria geral, Coimbra: Almedina, 2005, p.
430;
[35] Seguimos José
Luís Esquível, Os contratos…cit., p. 289.
[36] Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: o
sentido da vinculação administrativa à juridicidade, Coimbra: Almedina,
2007, p. 1067-1068, que conclui ir essa solução de encontro ao «entendimento de
que ‘julgar a Administração ainda é administrar’» em vez daquele que, «tal como
a Constituição impõe ao integrar os tribunais administrativos no poder
judicial, ‘julgar a Administração é exercer a função jurisdicional’»
[37] José Luís
Esquível, Os contratos…cit., p.
192.
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