No
actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) o
regime de impugnação de regulamentos administrativos encontra-se previsto nos
artigos 72.º a 76.º. Está integrado no âmbito da acção administrativa especial
(artigo 46.º e seguintes CPTA), a par da impugnação de actos administrativos
(artigo 50.º e seguintes CPTA) e da condenação da Administração à prática de
acto devido (artigo 66.º e seguintes CPTA).
É importante ressalvar que para o Professor Vasco Pereira
da Silva a acção administrativa especial é a verdadeira acção comum do
Contencioso Administrativo, e a acção comum é na verdade uma acção especial.
Mas quanto a esta troca de nomes efectuada à nascença deixamos para outra
altura, não é esse o objecto do nosso post, apesar de concordarmos com esta
crítica.
O facto de existir um mecanismo próprio para a impugnação
de regulamentos administrativos é uma realidade recente na Europa, muito devido
à influência do Direito Francês e da sua herança revolucionária.
A
inimpugnabilidade de regulamentos pela via contenciosa existia essencialmente
por causa de três motivos:
i)
constitucionais, devido ao princípio da
separação de poderes, um dos princípios essenciais da Revolução Francesa;
ii)
políticos, fundados em razões de prudência
objectiva que não admitiam ou restringiam a impugnação contenciosa das leis e
deviam igualmente impedir ou restringir a impugnação dos regulamentos;
iii)
jurídico-normativos, devido à sua definição
como norma geral e abstracta não teria destinatários individualizados e
consequentemente não poderia violar direito alguma e devido à tese que
configurava o regulamento como uma lei em sentido material, e por isso deveria
ser contenciosamente insindicável, tal como as leis[1].
O
primeiro meio admitido em sede de impugnação de regulamentos foi um meio
indirecto, a impugnação incidental: o acto administrativo era impugnado e consequentemente
o seria também o regulamento que lhe estava subjacente[2], este meio contencioso
será tratado infra.
Em
Portugal, Blanco de Morais identifica cinco períodos distintos, na evolução da
impugnabilidade de normas, que vão desde a aprovação do CPTA de 1936 até à sua
redacção actual[3].
Tendo em conta que este texto não pretende fazer uma análise histórica, vamos
apenas pronunciar-nos sucintamente acerca das duas últimas fases: a que decorre
entre 1985 e 2002, pautada pela criação de um regime misto; e a que se iniciou
em 2002 e ainda se encontra em vigor, que prevê[4] uma única forma
processual.
O
regime anterior à reforma mais recente do contencioso administrativo, para além
da impugnação a título incidental[5], previa dois meios
distintos através dos quais era possível reagir contra regulamentos
administrativos: um meio processual genérico e um meio processual especial.
Esta dualidade de meios contenciosos era dificilmente explicável do ponto de
vista lógico, sendo mesmo qualificada pelo Vasco Pereira da Silva como uma
dualidade esquizofrénica[6] visto que cada um dos
meios utilizava requisitos diferentes para realidades substancialmente idênticas
e possuíam um âmbito de aplicação parcialmente sobreposto. Portanto, o que se
pretendia que fosse um sistema com uma maior operatividade acabou por ter um
efeito diametralmente oposto, alcançando apenas uma duplicação de meios
processuais, gerando dúvidas quanto à sua natureza e função.
O
meio processual genérico correspondia à declaração de ilegalidade de normas
administrativas (artigos 66.º e seguintes do Decreto-Lei 267/85). Este meio
podia ser utilizado contra qualquer norma regulamentar, independentemente do
órgão ou da entidade que o produzisse, desde que fosse uma norma exequível por
si mesma, ou de ter sido, antes, julgada ilegal a título incidental em três
casos concretos.
O
meio processual especial correspondia à impugnação de normas (artigos 63.º e
seguintes do Decreto-Lei 267/85). Era mais limitado que o anterior porque
respeitava apenas aos regulamentos provenientes da Administração Local Comum –
órgãos da Administração Pública Regional ou Local, das Pessoas Colectivas de
Utilidade Pública Administrativa e dos Concessionários (artigo 51.º/1 alíneas
c), d) e e) do Decreto-Lei 129/84). No entanto, e apesar desta restrição, este
meio contencioso não estava sujeito às condições estabelecidas para o meio
processual genérico.
Ainda
na vigência deste sistema, de 84/85, houve uma importante alteração no quadro
constitucional. Com a Revisão Constitucional de 1997 foi aditado ao artigo
268.º da Constituição da República Portuguesa (doravante apenas designada de
Constituição) o número 5 que consagra o direito fundamental à impugnação de
normas administrativas com eficácia
externa lesivas dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos
particulares. Este aditamento veio tornar ainda mais premente a reforma do
contencioso administrativo e acentuou a dimensão subjectiva do controlo
jurisdicional das normas administrativas. Todavia, como iremos explicar infra,
mesmo depois da mudança de paradigma do contencioso administrativo Vasco Pereira
da Silva defende que persiste uma violação ao disposto no artigo 268.º/5 da
Constituição.
A impugnação a título incidental já
vigorava no sistema de 84/85 e continuou em vigor, praticamente sem alterações
depois da reforma. É um meio contencioso de impugnação de regulamentos
indirecto, visto que se insere no âmbito de uma impugnação de um acto
administrativo. Quando existe um regulamento ilegal que legitima a prática
desse acto e se inicia uma acção de impugnação do acto administrativo é óbvio
que ao declarar a nulidade ou anulabilidade consequente do acto administrativo,
o tribunal, vai também desaplicar a norma ilegal ou inconstitucional que serve de
fundamento ao acto impugnado. Esta é uma decorrência directa do princípio da
legalidade, consagrado nos artigos 203.º e 204.º da Constituição, nos artigos
1.º/2 e 2.º ETAF e no artigo 52.º/2 CPTA.
O sistema actual sofreu uma unificação de meios, já não existem
dois meios distintos para a impugnação de regulamentos administrativos, mas unicamente
o regime consagrado no artigo 72.º e seguintes do CPTA integrado na acção
administrativa especial, como já foi supra referido. Todavia esta unificação é
meramente aparente, visto que sob a capa da impugnação de regulamentos
administrativos persistem dois regimes distintos: a impugnação com força
obrigatória geral e a impugnação sem força obrigatória geral.
Antes
de procedermos à análise do meio contencioso de impugnação de regulamentos
administrativos importa responder a uma questão de Direito Administrativo
substantivo para tentar clarificar e definir o seu âmbito. O que é um regulamento administrativo?
Marcelo
Rebelo de Sousa e André Salgado Matos definem regulamento como uma decisão de
um órgão da Administração Pública que, ao abrigo de normas de direito público,
visa produzir efeitos jurídicos em situações gerais e abstractas,
contrariamente ao acto administrativo que se caracteriza por ser uma decisão de
um órgão da administração pública que, ao abrigo de normas de direito público,
visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta[7].
Quanto
à questão subjectiva, ou seja, quanto à entidade que as emite, Pedro Delgado
Alves aproveita o critério que norteia a definição do âmbito da jurisdição
administrativa, consagrado no ETAF. Recorre desta forma ao conteúdo do artigo
4.º/1, alíneas b) e d) ETAF, respectivamente, fiscalização das normas (…) emanadas por pessoas colectivas de direito
público a abrigo de disposições de direito administrativo e legalidade das normas (…) praticadas por
sujeitos privados, designados concessionários, no exercício de poderes
administrativos. Assim, para este autor, o artigo 72.º/1 CPTA engloba: as
normas emanadas por concessionários, por sociedades de capitais públicos, por
empresas públicas, por associações públicas e por pessoas pessoas colectivas de
utilidade pública administrativa, praticadas no âmbito da função
administrativa.
Freitas
do Amaral dá uma definição bastante sintética, são normas jurídicas emanadas no
exercício do poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra
entidade pública ou privada para tal habilitada por lei[8].
Tem-se
entendido, portanto, que o regulamento administrativo é uma norma impugnável em
sentido amplo, incluindo todas as disposições de direito administrativo com
carácter geral e abstracto, que visem a produção de efeitos permanentes numa
relação inter-subjectiva.
Para
Vasco Pereira da Silva, que tem uma opinião distinta das infra expostas – visto
que o artigo 120.º CPA define acto administrativo em razão da produção de
efeitos jurídicos numa situação individual e concreta e não estabelece qualquer
dessas exigências em matéria de regulamentos administrativos (artigos 114.º e
seguintes CPA) – só os actos administrativos têm de gozar simultaneamente de
individualidade e de concretude, enquanto que, à contrario sensu, todas as
disposições unilaterais que sejam só gerais, ou só abstractas, para além das
que possuam ambas as caracteristicas, são de considerar como regulamentos
administrativos[9].
Neste sentido para este autor os planos são também considerados verdadeiros
regulamentos administrativos.
Quanto à nossa humilde opinião, somos obrigados a
discordar do Professor Vasco Pereira da Silva, não nos parece razoável
considerar que um regulamento administrativo possa ser individual ou concreto,
entendemos que por conter autênticas normas jurídicas, tem de ter
cumulativamente as duas características contrárias: tem de conter comandos
gerais e abstractos[10].
Esta questão não se prende directamente com a definição
de regulamento administrativo e é apenas um argumento que nos parece fazer
sentido, mas no que respeita à sua impugnação através do contencioso
administrativo, alguma doutrina não fala especificamente em impugnação de
regulamentos, mas antes em impugnação de normas administrativas, e o CPTA[11] adopta também esta
terminologia. Ora, as normas jurídicas têm de ser obrigatoriamente gerais e
abstractas, portanto, segundo este elemento literal teríamos de considerar que
o regulamento administrativo impugnável tem de ter também estas duas
características.
O CPTA nos dias de hoje:
Vamos
agora proceder a uma curta análise das duas modalidades de impugnação de
regulamentos:
1. A impugnação
com força obrigatória geral encontra-se prevista no artigo 73.º/1 e 3
CPTA. Esta só pode ser pedida pelos particulares interessados depois de a norma
ter sido desaplicada em três casos concretos (artigo 73.º/1 CPTA), quer por via
directa quer por via incidental, desde que esse particular tenha sido
prejudicado pela aplicação da norma ou possa notoriamente vir a sê-lo num
momento próximo – exige-se, portanto, uma lesão efectiva ou potencial da esfera
jurídica do autor para que este possa deduzir o pedido. Quando a lesão não
tenha ainda ocorrido, cabe ao autor demonstrar a previsibilidade e iminência do
dano na sua esfera jurídica, neste caso existe uma autêntica legitimidade pré-interessada, em que o
tribunal é obrigado a proceder a dois juízos de prognose cumulativos a
verificação da verosimilhança da lesão e a constatação da proximidade temporal
da aplicação da norma[12].
O
Ministério Público não tem esta limitação, pode intentar a acção em qualquer
altura, sem ter havido pronúncia prévia pelo tribunal. Tem todavia duas
possibilidades para a propor: i) oficiosamente; ii) ou, mediante requerimento
apresentado pelas pessoas e entidades mencionadas no artigo 9.º/2 CPTA, para
defesa dos valores aí mencionados (artigo 73.º/3 CPTA). Nestes casos do artigo
73.º/3 CPTA o Ministério Público está obrigado a deduzir o pedido ou não? Este
modo de impugnação indirecta dos particulares por intermédio do Ministério Público
é um verdadeiro dever deste, ou uma mera faculdade, ao abrigo de um juízo de
discricionariedade próprio?
Ponto assente é que existe um verdadeiro
dever nos casos do artigo 73.º/4 CPTA, que consideraremos infra, por isso mesmo
poderíamos concluir que no número anterior está consagrada uma mera faculdade e
que por isso o pedido dos particulares não é minimamente vinculativo para o Ministério
Público. Mas, se assim fosse, este procedimento não teria qualquer utilidade,
visto que o direito de petição tem os mesmos efeitos e já estava ao dispor das
pessoas e entidades do artigo 9.º/2 CPTA. Porém, se contrariarmos ao extremo o
que acabamos de afirmar ficaríamos com uma solução também impraticável, porque
caso o Ministério Público fosse obrigado a impugnar todos os regulamentos que
lhe são pedidos por via do 73.º/3 CPTA isso poderia despoletar infindáveis processos
de impugnação de normas, sendo alguns deles desnecessários e apenas servindo
para o congestionamento dos Tribunais Administrativos.
Pedro Delgado Alves, conclui que o mais
razoável é dotar o Ministério Público de alguma margem de manobra, impondo-lhe todavia,
um dever especial de fundamentação nos casos em que opte por não dar seguimento
a um requerimento formulado[13], acrescentamos nós que
esta solução intermédia é a que mais se adequa à protecção das garantias dos
particulares e ao princípio do interesse processual.
Caso o Ministério Público tenha conhecimento de
que a mesma norma foi alvo de desaplicação em três casos, devido à sua
ilegalidade, tem o dever de propor a acção (artigo 73.º/4 CPTA). Aqui, ao
contrário do que acabou de se concluir relativamente ao artigo 73.º/3 CPTA,
existe um verdadeiro dever. Assim que o Ministério Público tiver conhecimento
da desaplicação da norma em três casos concretos ele está obrigado a propor a
acção de impugnação com força obrigatória geral.
Os efeitos da impugnação de regulamentos com
força obrigatória geral encontram-se expressamente previstos no artigo 76.º
CPTA[14]. A regra é que os efeitos
se produzem retroactivamente - eficácia ex
tunc – e determinam a repristinação das normas revogadas, sem prejuízo de o
tribunal poder determinar que os efeitos se produzam apenas para o futuro –
tenham eficácia ex nunc – quando tal
se justifique por razoes de segurança jurídica, de equidade ou de interesse
público de excepcional relevo (artigo 76.º/1 e 2 CPTA).
Ficam ressalvados expressamente os casos
julgados e os casos decididos, salvo quando exista uma decisão em contrario, em
matéria sancionatória, que seja mais favorável ao particular.
Em
jeito de conclusão, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral tem
com efeito, o alcance de reintegrar a ordem jurídica no seu conjunto[15].
2. A Impugnação sem força obrigatória
geral está prevista no artigo 73.º/2 CPTA e corresponde a uma desaplicação
da norma num caso específico. Esta impugnação pode ser pedida pelo lesado ou
pelos titulares da acção popular quando a norma produza os seus efeitos
imediatamente sem depender de um acto administrativo ou judicial de aplicação. Neste
caso estamos novamente perante um conceito amplo de lesão, que inclui a lesão
efectiva e a lesão eventual, ou existe alguma diferença? Por razões lógicas e
sistemáticas tem-se entendido que o conceito é semelhante ao anterior, por isso
compreende a lesão efectiva e eventual.
Este
tipo de impugnação sem força obrigatória geral, no fundo, é uma declaração de
que a norma impugnada é ilegal e essa declaração só vale para o interessado[16].
Mesmo
já existindo três declarações de ilegalidade anteriores, o particular não tem o
dever de suscitar a impugnação com força obrigatória geral, uma vez que, tal
como decorre da letra do artigo 73.º/2/1.ª parte CPTA, esta possibilidade
existe “sem prejuízo do número anterior”. Então, contrariamente ao que sucede
com o Ministério Público, o particular não tem, em qualquer circunstância, o
dever de suscitar a impugnação com força obrigatória geral; para ele isto é
apenas uma faculdade.
Contrariamente ao anterior sistema, os efeitos
da impugnação de regulamentos sem força obrigatória geral não se encontram
expressamente previstos na lei. No entanto, a doutrina entende que estes também
operam ex tunc e, apesar de ser
apenas no caso concreto em apreço, tem um alcance repristinatório. Neste caso
não se coloca sequer a questão do juiz ter a possibilidade de limitar os
efeitos da declaração, visto que os fundamentos legais dessa limitação
respeitam unicamente aos efeitos gerais da declaração da ilegalidade.
Posto
isto, é importante referir os restantes pressupostos que são comuns a ambas as
modalidades:
a) Segundo
o artigo 44.º/1 ETAF, que consagra uma competência a título residual, o tribunal competente para o conhecimento
das acções de impugnação de normas administrativas cabe aos Tribunais
Administrativos de Círculo.
b) Quanto
ao prazo de propositura da acção, o
artigo 74.º CPTA ao dispor que a declaração de ilegalidade pode ser pedida a
todo o tempo, consagra uma regra de inexistência de prazo.
c) Quanto
ao interesse, indicado por Vasco
Pereira da Silva[17],
não tem de ser actual, podendo ser apenas futuro, já que, nos termos do artigo
73.º/1 CPTA a impugnação de normas está aberta a quem seja prejudicado pela
aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo. Ao
dispensar o carácter directo de interesse como condição de legitimidade está-se
a alargar o âmbito da impugnação de normas jurídicas, o que é compreensível
dado a componente objectiva do meio em questão.
Apreciação
crítica:
Este novo regime legal consagrado no CPTA de 2002
pretendia, como já se referiu, simplificar o anterior, tendo como principal
preocupação a criação de um regime uno, deixando no passado a dualidade de
meios com o mesmo objecto. Todavia, não foi isso que acabou por suceder… é
certo que há apenas um meio contencioso de impugnação de regulamentos, consagrado
nos artigos 72.º a 76.º CPTA, mas dentro dele há duas modalidades diferentes: uma
com força obrigatória geral e outra sem força obrigatória geral. O que acaba
por ser na verdade uma nova dualidade, distinguindo-se somente da anterior pelo
facto de estar disfarçada nas vestes de uma acção única, por se encontrar na
mesma secção e na égide da mesma epigrafe do CPTA. O que acaba por se
demonstrar bastante negativo, uma vez que origina dúvidas e incoerências na sua
própria essência.
Vasco
Pereira da Silva critica duramente a dicotomia gerada na determinação da
legitimidade. O artigo 73.º CPTA ao contrapor o particular e actor popular ao
Ministério Público, leva à consagração do Ministério Público como o principal
responsável pela impugnação de normas administrativas, uma vez que o particular
e o actor popular estão dependentes da verificação de três casos concretos de
não aplicação. O Professor entende que, a haver distinções relativas à
legitimidade se devia separar o particular quer do Ministério Público, quer do
actor popular, já que ambos actuam para defesa da legalidade e do interesse
público[18]. Ainda quanto ao actor
popular, Vasco Pereira da Silva, critica o facto de este se poder constituir
como assistente, afirmando que pesando os interesses em jogo o legislador
acabou por trocar os papéis do actor popular e do particular, porque a
intervenção como assistente se revela supérflua quanto ao primeiro e necessária
quanto aos segundos.
Por
este motivo, faz uma interpretação correctiva do artigo 73.º/3 CPTA, com base
em argumentos sistemáticos, no princípio da tutela jurisdicional efectiva, na
natureza dos interesses em jogo e das regras gerais para se constituir como
assistente. Tendo tudo isto em conta deve considerar-se alargada também ao
particular a possibilidade de se poder constituir como assistente do Ministério
Público.
O
artigo 73.º/2 CPTA pode originar uma confusão entre a apreciação de regulamentos
a título incidental e a título principal, uma vez que parece confundir a
desaplicação da norma com a declaração de ilegalidade. Por este motivo, Vasco
Pereira da Silva diz que a formulação da norma está infeliz[19].
Ainda
no que respeita à legitimidade, consideramos um pouco perversa a lógica da
associação deste pressuposto processual aos efeitos da sentença de impugnação.
A redacção deste artigo 73.º CPTA encontra-se bastante confusa, misturando 3
coisas distintas, o pressuposto processual da legitimidade, a distinção das
modalidades possíveis da impugnação de regulamentos e o âmbito de cada uma
delas. Teria sido mais proveitoso se o legislador tivesse autonomizado pelo
menos a questão da legitimidade, como faz nos restantes meios contenciosos,
facilitando dessa forma a interpretação das normas jurídicas.
Igualmente
alvo de duras críticas por parte de Vasco Pereira da Silva é a modalidade de
impugnação sem força obrigatória geral, que produz efeitos apenas no caso
concreto[20].
Ao estudar estas críticas constantes n’O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise[21],
chegámos à conclusão de que este
Professor qualifica a impugnação de regulamentos como um meio: ilógico,
inconstitucional e ilegal.
Como
seguimos a sua opinião, decidimos inspirar-nos nela para o título deste post,
daí a fórmula: Impugnação de Regulamentos
Administrativos: o Meio Contencioso dos I’s. Isto sem prejuízo de
formularmos outras observações e reparos.
Não
é lógico porque uma norma jurídica ou é legal ou não é. Se for considerada
ilegal, esse vício é demasiado gravoso e não pode deixar de se repercutir nos
seus efeitos. Ora, se a norma considerada ilegal é geral e abstracta não vai
incidir directamente numa situação exclusiva, ou seja, ao ser ilegal na
situação 1, certamente que também o irá ser na situação 2, na situação 3, etc..
Assim, o juízo de ilegalidade da norma deve valer para todos os destinatários e
para todas as situações da vida, conduzindo ao seu afastamento total da ordem
jurídica. Para fundamentar de forma mais completa este ponto podemos ainda
invocar o princípio da legalidade, os princípios da unidade e da coerência do
sistema jurídico, o princípio da igualdade, e os princípios da certeza e da
segurança jurídica que são essenciais do Estado de Direito.
A
isto acresce que a apreciação a título principal que confirme que a norma é
ilegal, terá como consequência a desaplicação da mesma, que é geral e
abstracta, meramente naquele caso concreto. Mas o que é afinal, em que
consiste, o caso concreto de uma impugnação directa de uma norma geral e
abstracta? Como é possível tentar conciliar estes dois conceitos completamente
antagónicos? O professor diz que esta harmonização é um mistério insondável[23], roçando as raias do absurdo quando se trate de um pedido de
apreciação de regulamento suscitado pelo actor popular, que actua para defesa
da legalidade e do interesse público, sem possuir interesse directo na demanda,
mas que a lei equipara ao particular, apenas tendo legitimidade na impugnação
de normas no caso concreto, ou seja quando não tenha força obrigatória geral.
Para
Vasco Pereira da Silva o meio continua a ser inconstitucional, visto que, ao estabelecer
que a impugnação de normas gerais e abstractas só tem efeitos concretos cria
uma restrição que afecta a extensão e o alcance do conteúdo essencial do
direito fundamental de impugnação de normas jurídicas lesivas dos direitos dos
particulares, previsto expressamente no artigo 268.º/5 da Constituição.
Mas
não é só isto que está em causa, para além da violação do artigo 268.º/5 da
Constituição, o Professor defende que existe também uma violação de bens e
valores constitucionais de natureza objectiva, nomeadamente o princípio da
igualdade, o princípio da legalidade e o próprio Estado de Direito.
O
acórdão Kühne[24],
do Tribunal de Justiça da União Europeia, consagrou a regra do afastamento da
ordem jurídica das decisões públicas ilegais em detrimento da perspectiva da
salvaguarda dos efeitos produzidos. Estabelece que o julgamento de ilegalidade
de uma norma, com fundamento em violação de Direito Europeu, não deve permitir
a subsistência da sua aplicação na ordem jurídica de um Estado-Membro, mesmo
quando ela decorra de uma decisão judicial. Portanto, ao não cumprir esta
disposição, o meio contencioso de impugnação de regulamentos está a violar o
Direito da União Europeia.
Conclusão:
Podemos
assim concluir que, apesar da boa vontade e do esforço do legislador, a reforma
do contencioso administrativo acabou por não melhorar o sistema de impugnação
de regulamentos no Contencioso Administrativo português. Se considerarmos que o
sistema dual anterior à reforma padecia de esquizofrenia, temos de considerar
que este apesar de não ser esquizofrénico não é também completamente são,
arriscaríamos no diagnóstico de um distúrbio de personalidade, que o leva a
diversas contradições e incertezas no mesmo meio contencioso.
[1] Pp. 136 e 137, BLANCO DE MORAIS, em Temas e Problemas de Processo Administrativo
[2] Pp. 243, VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa
[3] PP. 139 a 142, BLANCO DE MORAIS, em Temas e Problemas de Processo Administrativo
[4] A nosso ver, aparentemente.
[5] Vamos pôr de parte a impugnação a título
incidental, quando nos pronunciarmos sobre impugnação de regulamentos será
sempre a impugnação a título principal.
[6] Pp. 416, Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise
[7] Artigo 120.º CPA
[8] Pp. 151 e 155, FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo
[9] Pp. 179 e 180, Vasco Pereira da Silva,
Verde cor de Direito – Lições de Direito
do Ambiente, 2002
[10] Pp. 249 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ
SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo
Geral
[11] A SECÇÃO III tem como epígrafe Impugnação de normas e declaração de
ilegalidade por omissão
[12] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO
ESTEVES DE OLIVEIRA, em Código de Processo
nos Tribunais Administrativos; Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Tributários Anotado, volume I, anotação do art. 73.º
[13] PP. 81, PEDRO DELGADO ALVES, Novas e
Velhas Andanças do Contencioso Administrativo
[14] Este novo regime traz importantes inovações,
comparando com a legislação de 84/85, visto que se inverte a regra geral
relativa à eficácia temporal da decisão.
[15] Pp. 230, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Novo Regime do Processo nos Tribunais
Administrativos
[16] Pp. 229, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Novo Regime do Processo nos Tribunais
Administrativos
[17] Pp. 430, VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise
[18] Pp. 419, VPS
[19] Pp. 418
[20] VASCO PEREIRA DA SILVA ironiza,
dizendo que esta modalidade o relembra da anedota de alguém que não é capaz de
se pronunciar em concreto porque isso é muito abstracto. (pp. 421)
[21] Pp. 411 a 430
[23] Pp. 422
[24] Processo C-453/00
Joana Marques, n.º 19657
BIBLIOGRAFIA:
·
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE (2012) – Manual de Processo Administrativo,
Almedina
·
ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE (2004) – O Novo Regime do Processo nos Tribunais
Administrativos, Almedina
·
ALVES, PEDRO DELGADO (2005) – O Novo Regime de Impugnação de Normas,
em Novas e Velhas Andanças do contencioso
Administrativo, AAFDL
·
AMARAL, DIOGO FREITAS (2011) – Curso de Direito Administrativo,
Almedina
·
ANDRADE, CARLOS VIEIRA DE (2009) – A Justiça Administrativa, Almedina
·
MORAIS, CARLOS BLANCO DE (2011) – A Impugnação dos Regulamentos no Contencioso
Administrativo Português, em Temas e
Problemas de Processo Administrativo, Edição do Instituto de Ciências
Jurídico-Políticas
·
OLIVEIRA, MÁRIO ESTEVES DE; OLIVEIRA, RODRIGO
ESTEVES DE (2004) – Código de Processo
nos Tribunais Administrativos; Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
Anotado, Volume I Almedina
·
SILVA, VASCO PEREIRA DA (2009) – O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, Almedina
·
SOUSA, MARCELO REBELO DE; MATOS, ANDRÉ
SALGADO DE (2006) – Direito
Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote
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