sábado, 24 de novembro de 2012

ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE REGULAMENTOS ADMINISTRATIVOS: O MEIO CONTENCIOSO DOS I’S



No actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) o regime de impugnação de regulamentos administrativos encontra-se previsto nos artigos 72.º a 76.º. Está integrado no âmbito da acção administrativa especial (artigo 46.º e seguintes CPTA), a par da impugnação de actos administrativos (artigo 50.º e seguintes CPTA) e da condenação da Administração à prática de acto devido (artigo 66.º e seguintes CPTA).
            É importante ressalvar que para o Professor Vasco Pereira da Silva a acção administrativa especial é a verdadeira acção comum do Contencioso Administrativo, e a acção comum é na verdade uma acção especial. Mas quanto a esta troca de nomes efectuada à nascença deixamos para outra altura, não é esse o objecto do nosso post, apesar de concordarmos com esta crítica.

            O facto de existir um mecanismo próprio para a impugnação de regulamentos administrativos é uma realidade recente na Europa, muito devido à influência do Direito Francês e da sua herança revolucionária.
A inimpugnabilidade de regulamentos pela via contenciosa existia essencialmente por causa de três motivos:
i)                  constitucionais, devido ao princípio da separação de poderes, um dos princípios essenciais da Revolução Francesa;
ii)                políticos, fundados em razões de prudência objectiva que não admitiam ou restringiam a impugnação contenciosa das leis e deviam igualmente impedir ou restringir a impugnação dos regulamentos;
iii)               jurídico-normativos, devido à sua definição como norma geral e abstracta não teria destinatários individualizados e consequentemente não poderia violar direito alguma e devido à tese que configurava o regulamento como uma lei em sentido material, e por isso deveria ser contenciosamente insindicável, tal como as leis[1].

O primeiro meio admitido em sede de impugnação de regulamentos foi um meio indirecto, a impugnação incidental: o acto administrativo era impugnado e consequentemente o seria também o regulamento que lhe estava subjacente[2], este meio contencioso será tratado infra.

Em Portugal, Blanco de Morais identifica cinco períodos distintos, na evolução da impugnabilidade de normas, que vão desde a aprovação do CPTA de 1936 até à sua redacção actual[3]. Tendo em conta que este texto não pretende fazer uma análise histórica, vamos apenas pronunciar-nos sucintamente acerca das duas últimas fases: a que decorre entre 1985 e 2002, pautada pela criação de um regime misto; e a que se iniciou em 2002 e ainda se encontra em vigor, que prevê[4] uma única forma processual.

O regime anterior à reforma mais recente do contencioso administrativo, para além da impugnação a título incidental[5], previa dois meios distintos através dos quais era possível reagir contra regulamentos administrativos: um meio processual genérico e um meio processual especial. Esta dualidade de meios contenciosos era dificilmente explicável do ponto de vista lógico, sendo mesmo qualificada pelo Vasco Pereira da Silva como uma dualidade esquizofrénica[6] visto que cada um dos meios utilizava requisitos diferentes para realidades substancialmente idênticas e possuíam um âmbito de aplicação parcialmente sobreposto. Portanto, o que se pretendia que fosse um sistema com uma maior operatividade acabou por ter um efeito diametralmente oposto, alcançando apenas uma duplicação de meios processuais, gerando dúvidas quanto à sua natureza e função.
O meio processual genérico correspondia à declaração de ilegalidade de normas administrativas (artigos 66.º e seguintes do Decreto-Lei 267/85). Este meio podia ser utilizado contra qualquer norma regulamentar, independentemente do órgão ou da entidade que o produzisse, desde que fosse uma norma exequível por si mesma, ou de ter sido, antes, julgada ilegal a título incidental em três casos concretos.
O meio processual especial correspondia à impugnação de normas (artigos 63.º e seguintes do Decreto-Lei 267/85). Era mais limitado que o anterior porque respeitava apenas aos regulamentos provenientes da Administração Local Comum – órgãos da Administração Pública Regional ou Local, das Pessoas Colectivas de Utilidade Pública Administrativa e dos Concessionários (artigo 51.º/1 alíneas c), d) e e) do Decreto-Lei 129/84). No entanto, e apesar desta restrição, este meio contencioso não estava sujeito às condições estabelecidas para o meio processual genérico.
Ainda na vigência deste sistema, de 84/85, houve uma importante alteração no quadro constitucional. Com a Revisão Constitucional de 1997 foi aditado ao artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa (doravante apenas designada de Constituição) o número 5 que consagra o direito fundamental à impugnação de normas administrativas com eficácia externa lesivas dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares. Este aditamento veio tornar ainda mais premente a reforma do contencioso administrativo e acentuou a dimensão subjectiva do controlo jurisdicional das normas administrativas. Todavia, como iremos explicar infra, mesmo depois da mudança de paradigma do contencioso administrativo Vasco Pereira da Silva defende que persiste uma violação ao disposto no artigo 268.º/5 da Constituição.

A impugnação a título incidental já vigorava no sistema de 84/85 e continuou em vigor, praticamente sem alterações depois da reforma. É um meio contencioso de impugnação de regulamentos indirecto, visto que se insere no âmbito de uma impugnação de um acto administrativo. Quando existe um regulamento ilegal que legitima a prática desse acto e se inicia uma acção de impugnação do acto administrativo é óbvio que ao declarar a nulidade ou anulabilidade consequente do acto administrativo, o tribunal, vai também desaplicar a norma ilegal ou inconstitucional que serve de fundamento ao acto impugnado. Esta é uma decorrência directa do princípio da legalidade, consagrado nos artigos 203.º e 204.º da Constituição, nos artigos 1.º/2 e 2.º ETAF e no artigo 52.º/2 CPTA.

O sistema actual sofreu uma unificação de meios, já não existem dois meios distintos para a impugnação de regulamentos administrativos, mas unicamente o regime consagrado no artigo 72.º e seguintes do CPTA integrado na acção administrativa especial, como já foi supra referido. Todavia esta unificação é meramente aparente, visto que sob a capa da impugnação de regulamentos administrativos persistem dois regimes distintos: a impugnação com força obrigatória geral e a impugnação sem força obrigatória geral.

Antes de procedermos à análise do meio contencioso de impugnação de regulamentos administrativos importa responder a uma questão de Direito Administrativo substantivo para tentar clarificar e definir o seu âmbito. O que é um regulamento administrativo?
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos definem regulamento como uma decisão de um órgão da Administração Pública que, ao abrigo de normas de direito público, visa produzir efeitos jurídicos em situações gerais e abstractas, contrariamente ao acto administrativo que se caracteriza por ser uma decisão de um órgão da administração pública que, ao abrigo de normas de direito público, visa produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta[7].
Quanto à questão subjectiva, ou seja, quanto à entidade que as emite, Pedro Delgado Alves aproveita o critério que norteia a definição do âmbito da jurisdição administrativa, consagrado no ETAF. Recorre desta forma ao conteúdo do artigo 4.º/1, alíneas b) e d) ETAF, respectivamente, fiscalização das normas (…) emanadas por pessoas colectivas de direito público a abrigo de disposições de direito administrativo e legalidade das normas (…) praticadas por sujeitos privados, designados concessionários, no exercício de poderes administrativos. Assim, para este autor, o artigo 72.º/1 CPTA engloba: as normas emanadas por concessionários, por sociedades de capitais públicos, por empresas públicas, por associações públicas e por pessoas pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, praticadas no âmbito da função administrativa.
Freitas do Amaral dá uma definição bastante sintética, são normas jurídicas emanadas no exercício do poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei[8]
Tem-se entendido, portanto, que o regulamento administrativo é uma norma impugnável em sentido amplo, incluindo todas as disposições de direito administrativo com carácter geral e abstracto, que visem a produção de efeitos permanentes numa relação inter-subjectiva.
Para Vasco Pereira da Silva, que tem uma opinião distinta das infra expostas – visto que o artigo 120.º CPA define acto administrativo em razão da produção de efeitos jurídicos numa situação individual e concreta e não estabelece qualquer dessas exigências em matéria de regulamentos administrativos (artigos 114.º e seguintes CPA) – só os actos administrativos têm de gozar simultaneamente de individualidade e de concretude, enquanto que, à contrario sensu, todas as disposições unilaterais que sejam só gerais, ou só abstractas, para além das que possuam ambas as caracteristicas, são de considerar como regulamentos administrativos[9]. Neste sentido para este autor os planos são também considerados verdadeiros regulamentos administrativos.
            Quanto à nossa humilde opinião, somos obrigados a discordar do Professor Vasco Pereira da Silva, não nos parece razoável considerar que um regulamento administrativo possa ser individual ou concreto, entendemos que por conter autênticas normas jurídicas, tem de ter cumulativamente as duas características contrárias: tem de conter comandos gerais e abstractos[10].
            Esta questão não se prende directamente com a definição de regulamento administrativo e é apenas um argumento que nos parece fazer sentido, mas no que respeita à sua impugnação através do contencioso administrativo, alguma doutrina não fala especificamente em impugnação de regulamentos, mas antes em impugnação de normas administrativas, e o CPTA[11] adopta também esta terminologia. Ora, as normas jurídicas têm de ser obrigatoriamente gerais e abstractas, portanto, segundo este elemento literal teríamos de considerar que o regulamento administrativo impugnável tem de ter também estas duas características.

            O CPTA nos dias de hoje:
Vamos agora proceder a uma curta análise das duas modalidades de impugnação de regulamentos:
1.      A impugnação com força obrigatória geral encontra-se prevista no artigo 73.º/1 e 3 CPTA. Esta só pode ser pedida pelos particulares interessados depois de a norma ter sido desaplicada em três casos concretos (artigo 73.º/1 CPTA), quer por via directa quer por via incidental, desde que esse particular tenha sido prejudicado pela aplicação da norma ou possa notoriamente vir a sê-lo num momento próximo – exige-se, portanto, uma lesão efectiva ou potencial da esfera jurídica do autor para que este possa deduzir o pedido. Quando a lesão não tenha ainda ocorrido, cabe ao autor demonstrar a previsibilidade e iminência do dano na sua esfera jurídica, neste caso existe uma autêntica legitimidade pré-interessada, em que o tribunal é obrigado a proceder a dois juízos de prognose cumulativos a verificação da verosimilhança da lesão e a constatação da proximidade temporal da aplicação da norma[12].
O Ministério Público não tem esta limitação, pode intentar a acção em qualquer altura, sem ter havido pronúncia prévia pelo tribunal. Tem todavia duas possibilidades para a propor: i) oficiosamente; ii) ou, mediante requerimento apresentado pelas pessoas e entidades mencionadas no artigo 9.º/2 CPTA, para defesa dos valores aí mencionados (artigo 73.º/3 CPTA). Nestes casos do artigo 73.º/3 CPTA o Ministério Público está obrigado a deduzir o pedido ou não? Este modo de impugnação indirecta dos particulares por intermédio do Ministério Público é um verdadeiro dever deste, ou uma mera faculdade, ao abrigo de um juízo de discricionariedade próprio?
  Ponto assente é que existe um verdadeiro dever nos casos do artigo 73.º/4 CPTA, que consideraremos infra, por isso mesmo poderíamos concluir que no número anterior está consagrada uma mera faculdade e que por isso o pedido dos particulares não é minimamente vinculativo para o Ministério Público. Mas, se assim fosse, este procedimento não teria qualquer utilidade, visto que o direito de petição tem os mesmos efeitos e já estava ao dispor das pessoas e entidades do artigo 9.º/2 CPTA. Porém, se contrariarmos ao extremo o que acabamos de afirmar ficaríamos com uma solução também impraticável, porque caso o Ministério Público fosse obrigado a impugnar todos os regulamentos que lhe são pedidos por via do 73.º/3 CPTA isso poderia despoletar infindáveis processos de impugnação de normas, sendo alguns deles desnecessários e apenas servindo para o congestionamento dos Tribunais Administrativos.
  Pedro Delgado Alves, conclui que o mais razoável é dotar o Ministério Público de alguma margem de manobra, impondo-lhe todavia, um dever especial de fundamentação nos casos em que opte por não dar seguimento a um requerimento formulado[13], acrescentamos nós que esta solução intermédia é a que mais se adequa à protecção das garantias dos particulares e ao princípio do interesse processual.
  Caso o Ministério Público tenha conhecimento de que a mesma norma foi alvo de desaplicação em três casos, devido à sua ilegalidade, tem o dever de propor a acção (artigo 73.º/4 CPTA). Aqui, ao contrário do que acabou de se concluir relativamente ao artigo 73.º/3 CPTA, existe um verdadeiro dever. Assim que o Ministério Público tiver conhecimento da desaplicação da norma em três casos concretos ele está obrigado a propor a acção de impugnação com força obrigatória geral.
  Os efeitos da impugnação de regulamentos com força obrigatória geral encontram-se expressamente previstos no artigo 76.º CPTA[14]. A regra é que os efeitos se produzem retroactivamente - eficácia ex tunc – e determinam a repristinação das normas revogadas, sem prejuízo de o tribunal poder determinar que os efeitos se produzam apenas para o futuro – tenham eficácia ex nunc – quando tal se justifique por razoes de segurança jurídica, de equidade ou de interesse público de excepcional relevo (artigo 76.º/1 e 2 CPTA).
  Ficam ressalvados expressamente os casos julgados e os casos decididos, salvo quando exista uma decisão em contrario, em matéria sancionatória, que seja mais favorável ao particular.
   Em jeito de conclusão, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral tem com efeito, o alcance de reintegrar a ordem jurídica no seu conjunto[15]

2.    A Impugnação sem força obrigatória geral está prevista no artigo 73.º/2 CPTA e corresponde a uma desaplicação da norma num caso específico. Esta impugnação pode ser pedida pelo lesado ou pelos titulares da acção popular quando a norma produza os seus efeitos imediatamente sem depender de um acto administrativo ou judicial de aplicação. Neste caso estamos novamente perante um conceito amplo de lesão, que inclui a lesão efectiva e a lesão eventual, ou existe alguma diferença? Por razões lógicas e sistemáticas tem-se entendido que o conceito é semelhante ao anterior, por isso compreende a lesão efectiva e eventual.
Este tipo de impugnação sem força obrigatória geral, no fundo, é uma declaração de que a norma impugnada é ilegal e essa declaração só vale para o interessado[16].
Mesmo já existindo três declarações de ilegalidade anteriores, o particular não tem o dever de suscitar a impugnação com força obrigatória geral, uma vez que, tal como decorre da letra do artigo 73.º/2/1.ª parte CPTA, esta possibilidade existe “sem prejuízo do número anterior”. Então, contrariamente ao que sucede com o Ministério Público, o particular não tem, em qualquer circunstância, o dever de suscitar a impugnação com força obrigatória geral; para ele isto é apenas uma faculdade.
  Contrariamente ao anterior sistema, os efeitos da impugnação de regulamentos sem força obrigatória geral não se encontram expressamente previstos na lei. No entanto, a doutrina entende que estes também operam ex tunc e, apesar de ser apenas no caso concreto em apreço, tem um alcance repristinatório. Neste caso não se coloca sequer a questão do juiz ter a possibilidade de limitar os efeitos da declaração, visto que os fundamentos legais dessa limitação respeitam unicamente aos efeitos gerais da declaração da ilegalidade.

Posto isto, é importante referir os restantes pressupostos que são comuns a ambas as modalidades:
a)    Segundo o artigo 44.º/1 ETAF, que consagra uma competência a título residual, o tribunal competente para o conhecimento das acções de impugnação de normas administrativas cabe aos Tribunais Administrativos de Círculo.
b)    Quanto ao prazo de propositura da acção, o artigo 74.º CPTA ao dispor que a declaração de ilegalidade pode ser pedida a todo o tempo, consagra uma regra de inexistência de prazo.
c)    Quanto ao interesse, indicado por Vasco Pereira da Silva[17], não tem de ser actual, podendo ser apenas futuro, já que, nos termos do artigo 73.º/1 CPTA a impugnação de normas está aberta a quem seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo. Ao dispensar o carácter directo de interesse como condição de legitimidade está-se a alargar o âmbito da impugnação de normas jurídicas, o que é compreensível dado a componente objectiva do meio em questão.

Apreciação crítica:
            Este novo regime legal consagrado no CPTA de 2002 pretendia, como já se referiu, simplificar o anterior, tendo como principal preocupação a criação de um regime uno, deixando no passado a dualidade de meios com o mesmo objecto. Todavia, não foi isso que acabou por suceder… é certo que há apenas um meio contencioso de impugnação de regulamentos, consagrado nos artigos 72.º a 76.º CPTA, mas dentro dele há duas modalidades diferentes: uma com força obrigatória geral e outra sem força obrigatória geral. O que acaba por ser na verdade uma nova dualidade, distinguindo-se somente da anterior pelo facto de estar disfarçada nas vestes de uma acção única, por se encontrar na mesma secção e na égide da mesma epigrafe do CPTA. O que acaba por se demonstrar bastante negativo, uma vez que origina dúvidas e incoerências na sua própria essência.
           
Vasco Pereira da Silva critica duramente a dicotomia gerada na determinação da legitimidade. O artigo 73.º CPTA ao contrapor o particular e actor popular ao Ministério Público, leva à consagração do Ministério Público como o principal responsável pela impugnação de normas administrativas, uma vez que o particular e o actor popular estão dependentes da verificação de três casos concretos de não aplicação. O Professor entende que, a haver distinções relativas à legitimidade se devia separar o particular quer do Ministério Público, quer do actor popular, já que ambos actuam para defesa da legalidade e do interesse público[18]. Ainda quanto ao actor popular, Vasco Pereira da Silva, critica o facto de este se poder constituir como assistente, afirmando que pesando os interesses em jogo o legislador acabou por trocar os papéis do actor popular e do particular, porque a intervenção como assistente se revela supérflua quanto ao primeiro e necessária quanto aos segundos.
Por este motivo, faz uma interpretação correctiva do artigo 73.º/3 CPTA, com base em argumentos sistemáticos, no princípio da tutela jurisdicional efectiva, na natureza dos interesses em jogo e das regras gerais para se constituir como assistente. Tendo tudo isto em conta deve considerar-se alargada também ao particular a possibilidade de se poder constituir como assistente do Ministério Público.
O artigo 73.º/2 CPTA pode originar uma confusão entre a apreciação de regulamentos a título incidental e a título principal, uma vez que parece confundir a desaplicação da norma com a declaração de ilegalidade. Por este motivo, Vasco Pereira da Silva diz que a formulação da norma está infeliz[19].
Ainda no que respeita à legitimidade, consideramos um pouco perversa a lógica da associação deste pressuposto processual aos efeitos da sentença de impugnação. A redacção deste artigo 73.º CPTA encontra-se bastante confusa, misturando 3 coisas distintas, o pressuposto processual da legitimidade, a distinção das modalidades possíveis da impugnação de regulamentos e o âmbito de cada uma delas. Teria sido mais proveitoso se o legislador tivesse autonomizado pelo menos a questão da legitimidade, como faz nos restantes meios contenciosos, facilitando dessa forma a interpretação das normas jurídicas.
           
Igualmente alvo de duras críticas por parte de Vasco Pereira da Silva é a modalidade de impugnação sem força obrigatória geral, que produz efeitos apenas no caso concreto[20]. Ao estudar estas críticas constantes n’O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise[21], chegámos à conclusão de  que este Professor qualifica a impugnação de regulamentos como um meio: ilógico, inconstitucional e ilegal.
Como seguimos a sua opinião, decidimos inspirar-nos nela para o título deste post, daí a fórmula: Impugnação de Regulamentos Administrativos: o Meio Contencioso dos I’s. Isto sem prejuízo de formularmos outras observações e reparos.

Não é lógico porque uma norma jurídica ou é legal ou não é. Se for considerada ilegal, esse vício é demasiado gravoso e não pode deixar de se repercutir nos seus efeitos. Ora, se a norma considerada ilegal é geral e abstracta não vai incidir directamente numa situação exclusiva, ou seja, ao ser ilegal na situação 1, certamente que também o irá ser na situação 2, na situação 3, etc.. Assim, o juízo de ilegalidade da norma deve valer para todos os destinatários e para todas as situações da vida, conduzindo ao seu afastamento total da ordem jurídica. Para fundamentar de forma mais completa este ponto podemos ainda invocar o princípio da legalidade, os princípios da unidade e da coerência do sistema jurídico, o princípio da igualdade, e os princípios da certeza e da segurança jurídica que são essenciais do Estado de Direito.
A isto acresce que a apreciação a título principal que confirme que a norma é ilegal, terá como consequência a desaplicação da mesma, que é geral e abstracta, meramente naquele caso concreto. Mas o que é afinal, em que consiste, o caso concreto de uma impugnação directa de uma norma geral e abstracta? Como é possível tentar conciliar estes dois conceitos completamente antagónicos? O professor diz que esta harmonização é um mistério insondável[23], roçando as raias do absurdo quando se trate de um pedido de apreciação de regulamento suscitado pelo actor popular, que actua para defesa da legalidade e do interesse público, sem possuir interesse directo na demanda, mas que a lei equipara ao particular, apenas tendo legitimidade na impugnação de normas no caso concreto, ou seja quando não tenha força obrigatória geral.

Para Vasco Pereira da Silva o meio continua a ser inconstitucional, visto que, ao estabelecer que a impugnação de normas gerais e abstractas só tem efeitos concretos cria uma restrição que afecta a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito fundamental de impugnação de normas jurídicas lesivas dos direitos dos particulares, previsto expressamente no artigo 268.º/5 da Constituição.
Mas não é só isto que está em causa, para além da violação do artigo 268.º/5 da Constituição, o Professor defende que existe também uma violação de bens e valores constitucionais de natureza objectiva, nomeadamente o princípio da igualdade, o princípio da legalidade e o próprio Estado de Direito.

O acórdão Kühne[24], do Tribunal de Justiça da União Europeia, consagrou a regra do afastamento da ordem jurídica das decisões públicas ilegais em detrimento da perspectiva da salvaguarda dos efeitos produzidos. Estabelece que o julgamento de ilegalidade de uma norma, com fundamento em violação de Direito Europeu, não deve permitir a subsistência da sua aplicação na ordem jurídica de um Estado-Membro, mesmo quando ela decorra de uma decisão judicial. Portanto, ao não cumprir esta disposição, o meio contencioso de impugnação de regulamentos está a violar o Direito da União Europeia.

            Conclusão:
Podemos assim concluir que, apesar da boa vontade e do esforço do legislador, a reforma do contencioso administrativo acabou por não melhorar o sistema de impugnação de regulamentos no Contencioso Administrativo português. Se considerarmos que o sistema dual anterior à reforma padecia de esquizofrenia, temos de considerar que este apesar de não ser esquizofrénico não é também completamente são, arriscaríamos no diagnóstico de um distúrbio de personalidade, que o leva a diversas contradições e incertezas no mesmo meio contencioso.


[1] Pp. 136 e 137, BLANCO DE MORAIS, em Temas e Problemas de Processo Administrativo
[2] Pp. 243, VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa
[3] PP. 139 a 142, BLANCO DE MORAIS, em Temas e Problemas de Processo Administrativo
[4] A nosso ver, aparentemente.
[5] Vamos pôr de parte a impugnação a título incidental, quando nos pronunciarmos sobre impugnação de regulamentos será sempre a impugnação a título principal.
[6] Pp. 416, Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise
[7] Artigo 120.º CPA
[8] Pp. 151 e 155, FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo
[9] Pp. 179 e 180, Vasco Pereira da Silva, Verde cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, 2002
[10] Pp. 249 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral
[11] A SECÇÃO III tem como epígrafe Impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão
[12] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, em Código de Processo nos Tribunais Administrativos; Estatuto dos Tribunais Administrativos e Tributários Anotado, volume I, anotação do art. 73.º
[13] PP. 81, PEDRO DELGADO ALVES, Novas e Velhas Andanças do Contencioso Administrativo
[14] Este novo regime traz importantes inovações, comparando com a legislação de 84/85, visto que se inverte a regra geral relativa à eficácia temporal da decisão.
[15] Pp. 230, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos
[16] Pp. 229, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos
[17] Pp. 430, VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise
[18] Pp. 419, VPS
[19] Pp. 418
[20] VASCO PEREIRA DA SILVA ironiza, dizendo que esta modalidade o relembra da anedota de alguém que não é capaz de se pronunciar em concreto porque isso é muito abstracto. (pp. 421)
[21] Pp. 411 a 430
[23] Pp. 422
[24] Processo C-453/00



Joana Marques, n.º 19657


BIBLIOGRAFIA:
·       
           ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE (2012) – Manual de Processo Administrativo, Almedina
·  
  ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE (2004) – O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina
·         
    ALVES, PEDRO DELGADO (2005) – O Novo Regime de Impugnação de Normas, em Novas e Velhas Andanças do contencioso Administrativo, AAFDL
·    
        AMARAL, DIOGO FREITAS (2011) – Curso de Direito Administrativo, Almedina
·     
       ANDRADE, CARLOS VIEIRA DE (2009) – A Justiça Administrativa, Almedina
·
        MORAIS, CARLOS BLANCO DE (2011) – A Impugnação dos Regulamentos no Contencioso Administrativo Português, em Temas e Problemas de Processo Administrativo, Edição do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
·    
     OLIVEIRA, MÁRIO ESTEVES DE; OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES DE (2004) – Código de Processo nos Tribunais Administrativos; Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotado, Volume I Almedina
· 
        SILVA, VASCO PEREIRA DA (2009) – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina
·    
     SOUSA, MARCELO REBELO DE; MATOS, ANDRÉ SALGADO DE (2006) – Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote

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