sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A legitimidade bate à porta


Os processos urgentes; a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias – legitimidade processual


Os processos urgentes que pretendem ser objecto deste estudo surgem como mecanismos de tutela inseridos no âmbito da jurisdição administrativa que pretendem resolver conflitos de forma “célere e flexível”, nas palavras do Professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA. Pode afirmar-se que o objectivo desta figura passa pela obtenção de tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações de determinados direitos dos cidadãos.

O regime dos processos urgentes do Direito Contencioso Administrativo encontra-se consagrado no Título IV do CPTA. São quatro as formas especiais de processo aqui descritas: os processos do contencioso eleitoral (artigos 97º a 99º); os processos do contencioso pré-contratual (artigos 100º a 103º); os pedidos de intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões (artigos 104º a 108º); e os pedidos de intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias (artigos 109º a 111º). Naturalmente, tratam-se de processos urgentes devido à necessidade de urgência na obtenção de pronúncia sobre o mérito da causa. De referir, ainda, que o facto de serem estes os consagrados pelo legislador no CPTA não impede que outros estejam previstos em legislação especial.

Esta estrutura assenta na divisão entre “impugnações urgentes”, que são no fundo processos especiais de impugnação de actos administrativos, e “intimações”, que consistem em processos urgentes de imposição, de pronúncia de uma decisão. Destas últimas se distingue a intimação judicial para a prática de acto legalmente devido, não deixando, no entanto, de ser este outro dos processos urgentes de imposição previstos.

O modelo de tramitação a seguir seria, nos casos das impugnações urgentes, o da acção administrativa especial, tendo em atenção as especificidades estabelecidas na lei para cada um dos casos. Quanto às intimações, esta variava consoante estivesse ou não em causa a emissão de um acto administrativo. As intimações para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões não suscitam grandes questões a este respeito, correspondendo a “uma espécie de acções administrativas comuns urgentes” (MÁRIO AROSO DE ALMEIDA), pois se não fosse a urgência característica deste tipo de processo, seria esta a forma que seguiria. Já quanto às intimações para defesa de direitos, liberdades e garantias, uma vez que poderão suscitar a emissão de um acto administrativo, tanto poderiam seguir os trâmites de uma acção administrativa especial como de uma acção administrativa comum. 

A intimação surge-nos como um processo urgente cujo objectivo passa pela emissão de uma imposição, dando por isso origem a uma condenação habitualmente dirigida à Administração. Procura a adopção de comportamentos, tanto acções como omissões e, nos casos específicos da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, pode inclusivamente levar à prática de actos administrativos. Dado o seu carácter urgente, surge a necessidade de seguir uma tramitação especial simplificada, do qual é exemplificativo o disposto no número 2 do artigo 36º, bem como nos números 2 e 3 do artigo 147º CPTA.

Como já referido supra, estão previstos na legislação nacional dois processos distintos de intimação: a intimação para prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões (artigo 36º, número 1, alínea c) CPTA; e artigos 104º a 108º CPTA); e a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (alínea d) do número 1 do artigo 36º, bem como artigos 109º e seguintes CPTA).

No primeiro são exercidos o direito à informação procedimental e o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos. No segundo, transcrevendo o disposto no número 1 do artigo 109º CPTA, procura-se impor a adopção de uma conduta positiva ou negativa (que) se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.º, podendo ser utilizado em defesa de todo o tipo de direitos, liberdades e garantias (diferentemente do disposto no número 5 do artigo 20º CRP).

A decisão que dê provimento ao processo, por seu lado, poderá dar origem a duas situações: ou é determinado o comportamento concreto a que o destinatário é intimado (regra geral presente nos números 4 e 5 do artigo 110º CPTA) ou, estando em causa a obtenção de um acto administrativo estritamente vinculado, é conferido ao tribunal o poder de executar especificamente esse dever, através da emissão de uma sentença constitutiva cujo objectivo passará pela produção dos efeitos desse mesmo acto devido, substituindo-se assim o acto ilegalmente recusado ou omitido (número 3 do artigo 109º CPTA).

O regime da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias permite duas situações distintas: as de urgência normal, presentes no artigo 109º CPTA e seguindo a tramitação prevista no artigo 110º CPTA; e as de especial urgência, previstas no artigo 111º CPTA. Segundo a classificação adoptada pelo Professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, existem quatro possibilidades distintas quanto à tramitação a seguir: o modelo normal, regulado nos números 1 e 2 do artigo 110º CPTA; o modelo mais lento que o normal, constante do número 3 do artigo 110º CPTA, que remete para os artigos 78º e seguintes do mesmo código referentes à acção administrativa especial; o modelo mais rápido que o normal, descritos no número 1 do artigo 11º CPTA; e, por fim, o modelo ultra-rápido, descrito nos números 1 e 2 do artigo 11º CPTA.

Após esta introdução sucinta ao regime legal vigente no nosso ordenamento, torna-se aconselhável referir que tal protecção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos apenas foi objecto de análise por parte da administração com a reforma do contencioso administrativo. Até lá, a jurisdição administrativa pouco podia fazer uma vez que a legislação administrativa existente se apresentava deficitária. O surgimento deste realce surge através da necessidade de defesa dos particulares perante a Administração Pública, tendo assim sido criado este direito a uma tutela jurisdicional efectiva para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Trata-se de uma defesa, de forma efectiva, dos direitos fundamentais, partindo esta exigência não só da Constituição da República Portuguesa (no seu artigo 268º), mas também de compromissos internacionais assumidos (dando como exemplo a Declaração Universal dos Direitos dos Homens, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Pretende agir-se aqui, em termos meramente exemplificativos, sobre o direito de acesso à justiça, o direito a uma processo célere, o direito a um processo público e equitativo perante um tribunal imparcial, o direito à liberdade de associação, o direito de asilo.

Esta via processual de defesa de direitos, liberdades e garantias constava já do Anteprojecto do CPTA, com duas diferenças relativamente ao actual regime vigente: primeiro, este modelo de intimação surge-nos hoje como um meio processual autónomo, ao invés do que sucedia naquele, em que era tido como uma modalidade urgentíssima de tutela cautelar (artigo 114º Anteprojecto do CPTA); segundo, o actual CPTA alarga o âmbito de aplicação da nossa Constituição, abrangendo todos os direitos, liberdades e garantias (ou seja, os pessoais, os de participação política e os dos trabalhadores, bem como os de natureza análoga a qualquer destas categorias) que se vejam afectados no âmbito de relações jurídico-administrativas ou de situações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo, contrariamente ao que sucedia no Anteprojecto.

A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias apresenta-se como um meio subsidiário, devendo equacionar-se primeiramente a possibilidade de intentar uma acção administrativa comum ou especial associada à pretensão de decretamento provisório de uma providência cautelar, não podendo recorrer-se a este instituto de tutela urgente como via normal de reacção. Tal parece retirar-se do disposto no artigo 109º do CPTA, uma vez que a necessidade de recorrer à intimação urgente se afere pela impossibilidade ou insuficiência do regulado no artigo 131º do CPTA (decretamento provisório de uma providência).

            Torna-se importante mencionar ainda o requisito da indispensabilidade, competindo ao requerente da intimação alegar e provar que apenas a procedência do pedido de intimação lhe permitirá assegurar em tempo útil o exercício de um direito, liberdade e garantia. Será, naturalmente, necessária aqui a posterior avaliação do juiz das circunstâncias do caso concreto para se aferir se tal requisito se encontra preenchido. 

            Debrucemo-nos agora sobre o pressuposto da legitimidade no seio da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, aquele a que tenciono dar mais relevância dentro desta análise. Certo é que não existem normas específicas reguladoras da legitimidade activa no âmbito deste processo. Assim, aplicar-se-á aqui o disposto para a legitimidade activa no número 1 do artigo 9º do CPTA. Fazendo uso das palavras de CARLA AMADO GOMES, será parte legítima todo aquele que alegar e provar sumariamente a ameaça de lesão (ou início de lesão) de um direito, liberdade ou garantia através de uma acção ou omissão, jurídica ou material, de entidades prossecutoras de funções materialmente administrativas.

Tendo em conta o já descrito supra, parece dever ser referido que uma importante questão deste campo se prende com o que resulta, por um lado, da CRP, e por outro, do CPTA, pois ao passo que a CRP dispõe relativamente à tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações aos direitos, liberdades e garantias pessoais, o CPTA suprime a referência a este elemento, apresentando como primordial pressuposto a indispensabilidade da emissão de uma decisão de mérito que assegure o exercício de qualquer direito, liberdade e garantia. Será, então, parte legítima para propor uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias qualquer cidadão que procure tutelar uma posição jurídica substantivamente tutelada por qualquer norma de direito interno que disponha sobre direitos fundamentais.

            A intimação poderá ser requerida singularmente ou em coligação, de acordo com o disposto nos termos da alínea a) do número 1 do artigo 12º do CPTA. Repare-se, no entanto, que em caso de coligação se estará perante a defesa, por parte de cada autor, de uma posição subjectiva própria, ofendida porém pela mesma acção ou omissão administrativa.

O requerente pode igualmente ser uma pessoa singular ou colectiva, tendo em conta a letra do número 2 do mesmo artigo 12º. Ao reconhecer expressamente capacidade de gozo às pessoas colectivas, supera-se uma concepção de direitos fundamentais exclusivamente centrada no indivíduo. Como exemplo, imagine-se um caso de violação da liberdade de iniciativa económica, que se trata de um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, de uma empresa privada por parte de uma entidade investida de poderes administrativos e no desempenho dessas mesmas funções. Estarão também aqui incluídas pessoas colectivas? Segundo ANA SOFIA DE SOUSA FIRMINO, a resposta será positiva mas apenas nos casos em que estejam envolvidas pessoas colectivas públicas infra-estaduais perante o Estado propriamente dito. Creio que seja este entendimento o correcto dado o alargado âmbito de aplicação do instituto em análise, a que já tivemos oportunidade de fazer referência.

Repare-se ainda que os estrangeiros têm igualmente legitimidade activa para a propositura da acção em análise, de acordo com o artigo 15º da CRP, salvas, claro está, as excepções presentes no seu número 2. Salvo disposição em contrário, o princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas com os cidadãos portugueses vale para todos os direitos, nomeadamente o de interpor acções nos tribunais portugueses quando os seus direitos fundamentais se encontrem ameaçados por qualquer actuação por parte dos poderes públicos.

É também colocada a questão de saber se o Ministério Público é ou não parte legítima para interpor uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Ora, cremos que aqui a razão vai para quem defende uma resposta negativa para a questão. Naturalmente que estando em causa direitos subjectivos, não se vê como conferir legitimidade activa ao Ministério Público para intervir nestas acções. De referir ainda que o entendimento em Espanha segue também esta mesma direcção.

Partindo agora para a questão da legitimidade passiva, dispõe o artigo 109º do CPTA que, em sede de protecção de direitos, liberdades e garantias, a intimação pode ser requerida contra a Administração (número 1) ou contra particulares, ou como já mencionado supra, entidades que exerçam funções materialmente administrativas, como é o caso dos concessionários (número 2). Este último caso dá-se quando a Administração não tome as medidas adequadas a prevenir ou reprimir condutas lesivas dos direitos, liberdades e garantias do interessado, ou seja, do autor. Tal medida apresenta-se, no entanto, como subsidiária face à intimação feita contra a Administração e, como não poderia deixar de ser, encontram-se daqui excluídas todas aquelas questões que não estejam relacionadas com o exercício da função administrativa.

Consideram-se incluídos no segundo grupo mencionado os particulares que exerçam poderes públicos, como é o caso dos concessionários, já citados, bem como aqueles que exerçam actividades tidas como de interesse público e os que violem normas de Direito Administrativo cuja observância devesse ter sido garantida pelo Estado, em todo o caso respeitantes a direitos, liberdades e garantias.

Uma vez que estão aqui abrangidos os variados tipos de actuação administrativa, poderão estar em causa tanto actos administrativos como operações materiais, o que se mostra uma importante evolução do contencioso administrativo neste campo específico de actuação.

À semelhança do que se exige para os restantes processos de intimação e de condenação primária, VIEIRA DE ANDRADE crê que também aqui deverá haver lugar a solicitação prévia ao órgão administrativo competente da medida administrativa omitida. Como não poderia deixar de ser, nestes casos a tramitação apresenta-se simples e rápida, nomeadamente nas situações de especial urgência. 

Cumpre concluir com a indicação de qual a consequência decorrente do não cumprimento dos requisitos previstos no artigo 109º CPTA. A doutrina diverge neste campo: ou se procede à absolvição do réu da instância, com a justificação para tal baseada na impropriedade da forma processual utilizada; ou se dá lugar à convolação, em regra num processo cautelar. RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA segue a opinião de que a convolação deverá ter lugar quando se verifiquem casos em que o autor pensava, erroneamente, que a sua situação concreta exigia a emissão célere de uma decisão de fundo. Para este autor, a absolvição da instância só deveria ser a consequência de um erro puro e simples na forma de processo (como é o caso onde não está sequer em causa um direito, liberdade ou garantia).

Já FERNANDA MAÇÃS, por sua vez, defende que só nos casos em que seria necessária uma reformulação total do requerimento inicial é que se mostra defensável a absolvição da instância. Ao invés, o Professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, postulando por uma solução mais radical, defende que, em caso de recusa da intimação por força do artigo 131º CPTA, então deverá observar-se a convolação oficiosa do processo num processo cautelar, não podendo simplesmente ser proferida uma decisão de absolvição da instância. Adoptando esta última, cremos que, como bem aponta este Professor, o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos, liberdades e garantias não poderá permitir outra solução.

Relativamente à tramitação, não pode deixar de ser feita uma breve referência ao facto de, apesar de se estar perante um procedimento urgente que deverá decorrer de forma simples e rápida, o contraditório estar assegurado também aqui, como demonstra o número 2 do artigo 111º do CPTA.

A sentença daqui resultante, como já referido supra, procurará desta forma condenar a Administração na adopção de uma conduta que tanto poderá ser positiva como negativa. Assim sendo, estarão em causa sentenças de tipo condenatório que determinarão, em princípio, qual o comportamento a seguir pela Administração bem como o prazo e o órgão administrativo responsável por esse cumprimento. A pretensão poderá, no entanto, dirigir-se à prática de um acto administrativo, havendo nestes casos possibilidade de nos depararmos com uma sentença substitutiva. São os casos do número 3 do artigo 109º do CPTA.

O incumprimento da intimação, de acordo com o número 5 do artigo 110º do CPTA, dará lugar ao pagamento de sanção pecuniária compulsória, sem prejuízo de eventual apuramento de responsabilidade civil, disciplinar e criminal. 

Perante esta análise cumpre concluir que a opção legislativa de alargamento do âmbito do número 5 do artigo 20º da CRP se revela feliz e marcante para o desenvolvimento da justiça administrativa face ao cenário com que nos deparávamos antes do actual Código de Processo dos Tribunais Administrativos. Com já tivemos oportunidade de analisar, o artigo 109º é interpretado com alguma elasticidade pelo facto de aqui não se fazer estritamente menção a direitos “pessoais”, ao contrário do que dispõe o citado artigo da CRP. Tal opção patenteia um importante desenvolvimento no progresso da protecção dos direitos fundamentais.

Inês dos Santos Mateus
19632

 
BIBLIOGRAFIA:

Monografias, Artigos e Teses

 
ALMEIDA, Mário Aroso de; Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010. 

ANDRADE, José Carlos Vieira de; A Justiça Administrativa (lições), 10ª Edição, Almedina, 2009. 

BOTELHO, Catarina Santos; «A Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias: quid novum?», in Separata da Revista o Direito, Ano 143º I, Almedina, 2011. 

DIAS, José Eduardo Figueiredo; «Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias», in Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXXIV, Coimbra, 2008. 

FERREIRA, Lisa Pinto de Sousa; Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias: contencioso administrativo e tutela efectiva da urgência, 2002. 

FIRMINO, Ana Sofia de Sousa; A Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias, Lisboa, 2004.  

LEÃO, Anabela F. da Costa; «A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: sob o signo da urgência», in Estudos de Direito Público, Janeiro, 2006. 

MAÇÃS, Fernanda; A Nova Justiça Administrativa: trabalhos e conclusões do seminário comemorativo do 1º ano de vigência da reforma do contencioso administrativo, CEJ, Coimbra Editora, 2006. 

OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de; A Nova Justiça Administrativa: trabalhos e conclusões do seminário comemorativo do 1º ano de vigência da reforma do contencioso administrativo, CEJ, Coimbra Editora, 2006. 

SILVA, Liliana Cunha; Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias: da inovação à aplicabilidade, Setembro, 2007.
 

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