quarta-feira, 14 de novembro de 2012


A Arbitragem é como a Coca-Cola ?


Ponto prévio para justificar o título. Primeiro, na busca de adaptar o estilo de escrita ao blog, sempre dado a frases catchy, revelei dificuldades (como se poderá comprovar infra). Mas ainda me restava o título: ocorreu-me então esta comparação assaz entusiasmante, sobretudo para os fãs da famosa água suja do imperalismo americano, entre os quais me incluo. Passo a explicá-la: assenta em duas pré-compreensões minhas acerca da arbitragem no Direito Administrativo que me parecem agora ter o seu quê de razoabilidade, após a revisão final do texto – a primeira corresponde ao clássico anúncio publicitário da marca “primeiro estranha-se, depois entranha-se”; a segunda, ideia por mim concebida tal o entusiasmo que sempre observei em quem sobre esta - a arbitragem - me falou ao longo do curso, de que seria algo como “a última Coca-Cola do deserto”. Do sucesso desta iniciativa de adaptação ao contexto dará – espera-se -  conta o número de visualizações.



1.1.1 Cumpre prevenir o leitor do que aqui se esboçará: a pretexto da curiosidade suscitada pelo art. 180nº1 c) do CPTA, importará uma reflexão sobre o tempo actual e o espaço largo da arbitragem no Direito Administrativo.
Tal não obsta a que objectivizemos desde já a maneira de encarar aquelas duas variáveis, partindo de duas asserções delimitativas: a) recordando o passado, notar que “não foi sempre assim”; b) olhos postos no futuro, notar a tendência de progressiva abrangência material da arbitragem, num sentido a um tempo desafiante e inquietante para a dogmática administrativa.

1.1.2 Talvez que não se afigure clara, prima facie, a ligação da Arbitragem com a matéria do Contencioso Administrativo - e, portanto, que razões nos assistem para escrever estas breves linhas. Por um lado, tal estranheza pode ser descortinada à luz de uma “recordação traumática” de tempos idos: a arbitragem era tida como mecanismo menor, cuja “jurisdição”(rectius: âmbito) não incluía a matéria do contencioso administrativo por natureza (maxime, recursos de anulação[1]). Ora, assim já não acontece hoje: afirmada a admissibilidade geral da arbitragem no Direito Administrativo[2], inclusive para actos (v.g. 180nº1 c)), num “contexto” de relação jurídica administrativa e, amiúde, de colaboração Administração-cidadão.
Cabe portanto, enquadrando o tema, colocar em evidência a intersecção da arbitragem com o Contencioso Administrativo:
a) A actividade dos tribunais arbitrais veio a ser admitida expressamente e integra a Constituição vigente a partir da revisão constitucional de 1982 (actual 209nº2) no âmbito da enumeração das categorias de tribunais. Tal influencia duplamente a ordem jurisdicional administrativa: a montante, a vontade das partes pode modificar a competência dos tribunais administrativos de círculo[3], que levará à subtracção de litígios; a jusante, este elemento concorrencial pode servir como incentivo[4] para o repensar da “nunca desmentida” ineficiência administrativa.
b) A subjectivização do Contencioso e a participação dos particulares no exercício de funções estatais[5]: os tribunais arbitrais instituem o exercício da função jurisdicional por particulares com limites (maxime, de legalidade) que se lhes colocam ex ratione materiae. Se tais limites podem ainda decorrer do carácter de ordem pública da definição legal da competência contenciosa (MARQUES GUEDES[6]), é correcto notar que não existe hoje uma reserva de jurisdição estatal para julgar a Administração Pública (ALEXANDRA LEITÃO[7]) .
c) É também importante notar que a arbitragem constituiu, desde os anos 50 até à entrada em vigor do ETAF (1984), um caso de aplicação subsidiária da lei processual civil por via da jurisprudência do STA que, na ausência de disposição expressa, encontrou na codificação daquela matéria um princípio geral de permitir como regra a estipulação do juízo arbitral, contra a posição expressa pela doutrina administrativista da época[8] (nesta se observa a pré-concepção do Direito Administrativo “como um conjunto de excepções ao Direito Civil”, notada pelo Professor VASCO PEREIRA DA SILVA[9]).
d) De resto, (também) esta matéria vem sendo progressivamente conectada com o Direito Administrativo à medida que este deixou de ser puramente vertical ou autoritário – i.e., a arbitragem ganha lugar “administrativo” nos anos 50 (por via jurisprudencial v. supra c)) ainda antes da concepção actocêntrica do Direito Administrativo entrar em crise. Mas vem alargando o seu espaço à sombra da metamorfose da Administração[10],  saindo reforçada pelo conceito de relação jurídica administrativa, no que esta importa de  ver o particular não como objecto nem sequer como sujeito passivo, mas como sujeito activo[11]. Como escreveu lapidarmente BACHOF[12], a propósito do recurso à relação jurídica (em vez do acto administrativo): “outros institutos e formas de actuação se podem desenvolver e intensificar, na sua diversidade, o que constitui uma necessidade do Direito Administrativo para se adequar às tarefas da Administração”.
e) Quanto aos meios contenciosos, observa-se que antes da “queda da cadeira” da dualidade de meios contenciosos recurso de anulação/acção administrativa que se baseava, grosso modo, na (in)disponibilidade de direitos e poderes que integram a relação jurídica controvertida[13], existia correpondência de âmbitos entre a acção administrativa e a arbitragem.  Hoje, poderá observar-se, algo aprioristicamente, que o legislador não quis tirar todas as consequências da equiparação constitucional dos tribunais administrativos e arbitrais.

2.1  A discussão da arbitrabilidade administrativa, tem-se entendido, traz consigo associada a questão de saber “o que é a arbitragem ?”. A natureza jurídica da arbitragem[14] tem sido encarada como judicial – na medida em que os árbitros se equiparam aos juízes, sendo as decisões verdadeiras sentenças passíveis de recurso jurisdicional - , contratual – negócio jurídico que manifesta a autonomia privada das partes relativamente às suas relações jurídicas disponíveis ou mista – a base é um contrato; a partir do momento em que o tribunal se constitui este funciona “do mesmo modo que qualquer outro”, sendo pois uma alternativa aos tribunais administrativos para a resolução de litígios. A meu ver, parece-me esta última ter a virtude de maior compreensão do “ciclo de vida” da arbitragem, reunindo elementos “constitutivos, funcionais e teleológicos” (JOSÉ LUÍS ESQUÍVEL).
Conexa com a questão controvertida da natureza jurídica da arbitragem parece haver outra questão prévia com interesse, há uma questão reputada como essencial por ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA: poderá falar-se com propriedade em “arbitragem administrativa” [15] ou será preferível a  designação “Arbitragem no Direito Administrativo” ? Entre uma e outra nomenclatura parece ir, para esta recente doutrina, uma enorme distância. No escopo da primeira designação está a consideração da arbitragem como realidade administrativizada e administrativizável: primeiro, por via da constitucionalização, depois analisando-se o critério da disponibilidade em face da sua prestabilidade na jurisdição administrativa; noutro sentido, a referida autora entende aquela como um instituto transversal aos vários ramos de Direito no ordenamento jurídico português, sendo (a estabilidade do) seu critério expressão disso mesmo, bloqueando assim uma eventual “reponderação administrativa”  do critério da disponibilidade, por razões de valia prática a observar noutros ramos de Direito[16].

2.2 Hoje, tem-se por assente que o que interessa como critério no art.180nº1 c) CPTA é saber, como defendeu SÉRVULO CORREIA[17], se o poder que define o conteúdo da situação jurídica é discricionário ou vinculado. O conteúdo da norma é possibilitar a arbitragem em duas situações: sempre que o acto seja válido e sempre que no acto estiverem presentes elementos de discricionariedade. Daquela se retira ad contrario a ideia de que se o acto é revogável com base no mérito é porque é disponível para a Administração, logo arbitrável[18].

2.3 Por último, é meu intuito deixar algumas observações finais, em jeito de tópicos de (e para) reflexão:

a) De uma maneira geral, podemos afirmar que a intersecção da arbitragem e do Direito Administrativo, nunca deixa de ter inconscientemente associada a questão da (in)arbitrabilidade do Direito Administrativo[19]. Para tal, concorrem pré-compreensões mais ou menos difusas sobre o papel clássico da Administração em tempos idos e também a própria summa divisio entre Direito Público e Direito Privado no potencial conflito jus imperii vs. autonomia privada. Mais que certo é, em face do contexto, que o papel da Administração continuará em mutação. Se a tal associarmos a relativização hodierna daquela distinção e o progressivo desvanecimento das “memórias traumáticas”, existirão limites à tendência de progressivo alargamento do âmbito da arbitrabilidade dos actos administrativos ?   

b) Pondo em evidência a possibilidade de impugnar a decisão arbitral (art. 186º CPTA), o princípio de equiparação de estatutos e incompatibilidades entre árbitros e juízes e os efeitos de sentença jurisdicional (maxime de caso julgado) já atribuídos pela doutrina[20] e pela jurisprudência constitucional[21] à arbitragem,  parece carecer de verdadeiro fundamento, em face da equiparação constitucional do 209nº2 CRP e da integração dos árbitros na justiça administrativa em sentido orgânico, funcional e material[22], a notada diferença de competência em razão da matéria[23]. Sem prejuízo de reflexão mais aprofundada sobre a questão em apreço, parece que tal décalage pode ser perspectivada em termos de “legitimidade social” (VIEIRA DE ANDRADE) dos árbitros e dos juízes[24]. Isto é, não havendo dúvidas em afirmar que os tribunais arbitrais exercem poder jurisidicional (v.g. 209nº2 CRP), parece a fonte de poder -  convencional - que legitima aqueles tribunais ser distinta da que constitui o tribunal administrativo – o contrato social, na forma de ius imperii[25]. No fundo, poderá afirmar-se uma diferença ao nível do fundamento ontológico entre um e outro? Parece-me que sim, sendo que daqui tem decorrido uma diferença[26] (observada como) inerente e natural dos poderes dos tribunais arbitrais. Assim sendo, importará também ponderar a “parificação da arbitragem” como sintoma, em última análise, da saúde ou da doença do contrato social enquanto fonte de poder do tribunal administrativo.


João Tiago Freitas Mendes 
19687
subturma 6



Bibliografia



ANDRADE, Vieira de – A Justiça Administrativa (Lições). Almedina, 2009.
CORREIA, José Manuel Sérvulo – Direito do Contencioso Administrativo, vol. I. Lex, 2005.
- A Arbitragem Voluntária no domínio dos Contratos Administrativos (in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor João de Castro Mendes, pp. 229-263). Lex, 1995.
ESQUÍVEL, José Luís – Os Contratos Administrativos e a Arbitragem. Almedina, 2004.
ESTORNINHO, Maria João – A Fuga para o Direito Privado. Almedina, 2009.
- Direito Europeu dos Contratos Públicos. Almedina, 2006.
MONCADA, Luís Cabral de – A Arbitragem no Direito Administrativo; uma justiça alternativa (in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano VII, Nº especial, pp. 171-186). Coimbra Editora, 2010.
OLIVEIRA, Ana Perestrelo de – Arbitragem de Litígios com Entes Públicos. Almedina, 2007.
OTERO, Paulo – Legalidade e Administração Pública. Almedina, 2003.                         
SIFUENTES, Mónica – Problemas acerca dos conflitos entre a jurisdição administrativa e judicial no direito português (in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pp. 316-348). Coimbra Editora, 2001.
SILVA, Vasco Pereira da – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Almedina, 2009 (2ª ed.).

- Em Busca do Acto Administrativo Perdido. Almedina, 2003.






[1] Em princípio não se aceitava a arbitragem para efeito de anulação jurisdicional de actos, pois que o objecto do meio contencioso recurso de anulação é a legalidade do acto.
[2] Entre muitos outros, v.ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, ob.cit., p.11.
[3] v. PAULO OTERO, ob.cit., p. 1057.
[4] v.J.L.ESQUÍVEL, ob.cit., p.78
[5] v.CABRAL DE MONCADA, ob.cit., p.172
[6] v. SÉRVULO CORREIA, A arbitragem…, p. 232.
[7] Cfr. Paulo Otero, ob.cit., p. 105
[8] Idem, ibidem.
[9] Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo…cit., pp. 247-248.
[10] v. MARIA JOÃO ESTORNINHO, A Fuga para…cit., pp. 58-66; 175-188.
[11] v. VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca…cit., p. 149 e segs (em particular, neste ponto, p.152-153)
[12] Idem, ibidem, p.161.
[13] Neste sentido, SÉRVULO CORREIA, A arbitragem…, p. 234.
[14] Segue-se aqui de muito perto JOSÉ LUÍS ESQUÍVEL, ob.cit., p.79.
[15] Expressão tradicional, utilizada por exemplo por SÉRVULO CORREIA.
[16] Tal resulta do exposto por ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, ob.cit., p. 82 e segs.
[17] SÉRVULO CORREIA, A arbitragem, p. 235, nota 10.
[18] CABRAL DE MONCADA, ob.cit., pp. 180- 181.
[19] A nunca desmentida arbitrabilidade do Direito Administrativo: exemplo paradigmático desta feição da doutrina portuguesa da segunda metade do séc. XX MARQUES GUEDES não afirmava a inarbitrabilidade do direito administrativo; mas indo contra a jurisprudência dominante do STA que aplicava subsidiariamente o Código de Processo Civil, entendia não haver à época lei especial que a autorizasse. Na prática, embora não em posição de princípio, a doutrina daquele autor fazia a arbitragem depender da máquina burocrática (existência de lei especial), cortando-lhe a jusante o oxigénio, ao desconsiderar a aplicação subsidiária do CPC. A acrescer a esta dissociação entre a teoria admnistrativista que admitia pontualmente – recursos – a arbitragem e a praxis da época, há a considerar a especialidade da competência especial face à competência genérica dos Tribunais Administrativos (afirmada desde logo por MARQUES GUEDES), donde se pode retirar como corolário que atribuir poder aos Tribunais Arbitrais é subtraí-la aos Tribunais Administrativos.
[20] MARIA JOÃO ESTORNINHO, Direito Europeu…cit., p.330 e segs. ; SÉRVULO CORREIA, Direito do…cit., p. 685.
[21] MÓNICA SIFUENTES, ob.cit., p.340 enumera, com referência àquela “característica”: v. Acórdão 506/96, Processo nº173/93, DR, II série, nº154, p.9055-6, 5-07-96; Acórdão 757/95, Processo nº128/94, DR, II série, nº74, p. 4190-4, 27-03-96.
[22] CABRAL DE MONCADA, ob.cit., p.172.
[23] Tendo em conta esta e apesar daqueles efeitos, parece legítimo desconfiar se estaremos perante sentenças e juízes na “pureza dos conceitos”. Não se trata de questão semântica apenas: pois se se afirma a equiparação daí haveriam que ser retiradas as devidas consequências materiais, pelo que não choca que se afirme uma semelhança em nome do nivelamento entre o plano teórico e o plano prático. A este propósito também não deixa de ser curioso notar que VIEIRA DE ANDRADE, ob.cit., p.99, nota 133, equipara os tribunais arbitrais aos administrativos incluíndo estes e aqueles na letra do art.3ºnº1 CPTA para daí extrair a necessidade de interpretar restritivamente o seu âmbito, à propósito dos limites funcionais da justiça administrativa.
[24] Tal raciocínio bebe, mutatis mutandis, da formulação de VIEIRA DE ANDRADE, ob.cit., p.100, a propósito dos limites funcionais da justiça administrativa. Não se afigura oportuno nem necessário entrar por ora na interessantíssima discussão a propósito de saber se e quando pode o juíz administrativo ditar o conteúdo da conduta a adoptar pela Administração.
[25] Trata-se de tirar consequências da natureza jurídica assinalada supra. Neste sentido, v. SÉRVULO CORREIA, Direito do…cit., pp. 685.
[26] Julgamos não poder falar-se em rigor de uma “redução” (SÉRVULO CORREIA, Direito do…cit., pp. 685) pois que essa expressão parece não dar conta desta “décalage” nos ser apresentada como “facto consumado” (sem embargo do alargamento do âmbito material da arbitrabilidade administrativa já sublinhado). Em face da divergência de tipo ontológico que defendemos, a diferença de poderes resulta da natureza das coisas e não propriamente de uma opção do legislador.

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