A Arbitragem é como a Coca-Cola ?
Ponto prévio para justificar o
título. Primeiro, na busca de adaptar o estilo de escrita ao blog, sempre dado a frases catchy, revelei dificuldades (como se
poderá comprovar infra). Mas ainda me
restava o título: ocorreu-me então esta comparação assaz entusiasmante, sobretudo
para os fãs da famosa água suja do
imperalismo americano, entre os quais me incluo. Passo a explicá-la:
assenta em duas pré-compreensões minhas acerca da arbitragem no Direito
Administrativo que me parecem agora ter o seu quê de razoabilidade, após a revisão
final do texto – a primeira corresponde ao clássico anúncio publicitário da marca
“primeiro estranha-se, depois entranha-se”;
a segunda, ideia por mim concebida tal o entusiasmo que sempre observei em quem sobre esta - a arbitragem - me falou ao longo do curso, de que seria algo
como “a última Coca-Cola do deserto”. Do sucesso desta iniciativa de adaptação
ao contexto dará – espera-se - conta
o número de visualizações.
1.1.1 Cumpre prevenir o leitor do que aqui se esboçará: a pretexto da curiosidade suscitada pelo art. 180nº1 c) do CPTA, importará uma reflexão sobre o tempo actual e o espaço largo da arbitragem no Direito Administrativo.
Tal não obsta a que objectivizemos
desde já a maneira de encarar aquelas duas variáveis, partindo de duas
asserções delimitativas: a) recordando o passado, notar que “não foi sempre
assim”; b) olhos postos no futuro, notar a tendência de progressiva abrangência
material da arbitragem, num sentido a um tempo desafiante e inquietante para a
dogmática administrativa.
1.1.2 Talvez que não se afigure
clara, prima facie, a ligação da Arbitragem
com a matéria do Contencioso Administrativo - e, portanto, que razões nos
assistem para escrever estas breves linhas. Por um lado, tal estranheza pode
ser descortinada à luz de uma “recordação traumática” de tempos idos: a
arbitragem era tida como mecanismo menor, cuja “jurisdição”(rectius: âmbito) não
incluía a matéria do contencioso
administrativo por natureza (maxime, recursos de anulação[1]). Ora, assim já não acontece hoje:
afirmada a admissibilidade geral da arbitragem no Direito Administrativo[2],
inclusive para actos (v.g. 180nº1 c)), num “contexto” de relação jurídica
administrativa e, amiúde, de colaboração Administração-cidadão.
Cabe portanto, enquadrando o tema,
colocar em evidência a intersecção da arbitragem com o Contencioso
Administrativo:
a) A actividade dos tribunais
arbitrais veio a ser admitida expressamente e integra a Constituição vigente a
partir da revisão constitucional de 1982 (actual 209nº2) no âmbito da
enumeração das categorias de tribunais. Tal influencia duplamente a ordem
jurisdicional administrativa: a montante, a vontade das partes pode modificar a
competência dos tribunais administrativos de círculo[3],
que levará à subtracção de litígios; a
jusante, este elemento concorrencial pode servir como incentivo[4]
para o repensar da “nunca desmentida”
ineficiência administrativa.
b) A subjectivização do
Contencioso e a participação dos particulares no exercício de funções estatais[5]:
os tribunais arbitrais instituem o exercício da função jurisdicional por particulares
com limites (maxime, de legalidade) que se lhes colocam ex ratione materiae. Se tais limites podem ainda decorrer do carácter de ordem pública
da definição legal da competência contenciosa (MARQUES GUEDES[6]),
é correcto notar que não existe hoje uma reserva de jurisdição estatal para julgar
a Administração Pública (ALEXANDRA LEITÃO[7])
.
c) É também importante notar que a
arbitragem constituiu, desde os anos 50 até à entrada em vigor do ETAF (1984),
um caso de aplicação subsidiária da lei processual civil por via da
jurisprudência do STA que, na ausência de disposição expressa, encontrou na
codificação daquela matéria um princípio geral de permitir como regra a
estipulação do juízo arbitral, contra a posição expressa pela doutrina
administrativista da época[8]
(nesta se observa a pré-concepção do Direito Administrativo “como um conjunto de excepções ao Direito
Civil”, notada pelo Professor VASCO PEREIRA DA SILVA[9]).
d) De resto, (também) esta matéria vem sendo progressivamente conectada com o Direito Administrativo à medida que este deixou de ser puramente vertical ou autoritário – i.e., a arbitragem ganha lugar “administrativo” nos anos 50 (por via jurisprudencial v. supra c)) ainda antes da concepção actocêntrica do Direito Administrativo entrar em crise. Mas vem alargando o seu espaço à sombra da metamorfose da Administração[10], saindo reforçada pelo conceito de relação jurídica administrativa, no que esta importa de ver o particular não como objecto nem sequer como sujeito passivo, mas como sujeito activo[11]. Como escreveu lapidarmente BACHOF[12], a propósito do recurso à relação jurídica (em vez do acto administrativo): “outros institutos e formas de actuação se podem desenvolver e intensificar, na sua diversidade, o que constitui uma necessidade do Direito Administrativo para se adequar às tarefas da Administração”.
d) De resto, (também) esta matéria vem sendo progressivamente conectada com o Direito Administrativo à medida que este deixou de ser puramente vertical ou autoritário – i.e., a arbitragem ganha lugar “administrativo” nos anos 50 (por via jurisprudencial v. supra c)) ainda antes da concepção actocêntrica do Direito Administrativo entrar em crise. Mas vem alargando o seu espaço à sombra da metamorfose da Administração[10], saindo reforçada pelo conceito de relação jurídica administrativa, no que esta importa de ver o particular não como objecto nem sequer como sujeito passivo, mas como sujeito activo[11]. Como escreveu lapidarmente BACHOF[12], a propósito do recurso à relação jurídica (em vez do acto administrativo): “outros institutos e formas de actuação se podem desenvolver e intensificar, na sua diversidade, o que constitui uma necessidade do Direito Administrativo para se adequar às tarefas da Administração”.
e) Quanto aos meios contenciosos, observa-se que antes da “queda da cadeira” da dualidade de meios
contenciosos recurso de anulação/acção administrativa que se baseava, grosso
modo, na (in)disponibilidade de direitos e poderes que integram a relação
jurídica controvertida[13],
existia correpondência de âmbitos entre a acção administrativa e a arbitragem. Hoje, poderá observar-se, algo
aprioristicamente, que o legislador não quis tirar todas as consequências da
equiparação constitucional dos tribunais administrativos e arbitrais.
2.1 A discussão da
arbitrabilidade administrativa, tem-se entendido, traz consigo associada a
questão de saber “o que é a arbitragem
?”. A natureza jurídica da arbitragem[14]
tem sido encarada como judicial – na medida em que os árbitros se equiparam aos
juízes, sendo as decisões verdadeiras sentenças passíveis de recurso
jurisdicional - , contratual – negócio jurídico que manifesta a autonomia
privada das partes relativamente às suas relações jurídicas disponíveis ou
mista – a base é um contrato; a partir do momento em que o tribunal se
constitui este funciona “do mesmo modo que qualquer outro”, sendo pois uma
alternativa aos tribunais administrativos para a resolução de litígios. A meu
ver, parece-me esta última ter a virtude de maior compreensão do “ciclo de
vida” da arbitragem, reunindo elementos “constitutivos,
funcionais e teleológicos” (JOSÉ LUÍS ESQUÍVEL).
Conexa com a questão controvertida da natureza jurídica da
arbitragem parece haver outra questão prévia com interesse, há uma questão reputada
como essencial por ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA: poderá falar-se com propriedade
em “arbitragem administrativa” [15]
ou será preferível a designação
“Arbitragem no Direito Administrativo” ? Entre uma e outra nomenclatura parece
ir, para esta recente doutrina, uma enorme distância. No escopo da primeira
designação está a consideração da arbitragem como realidade administrativizada e administrativizável: primeiro, por via
da constitucionalização, depois analisando-se o critério da disponibilidade em
face da sua prestabilidade na jurisdição administrativa; noutro sentido, a
referida autora entende aquela como um instituto transversal aos vários ramos
de Direito no ordenamento jurídico português, sendo (a estabilidade do) seu
critério expressão disso mesmo, bloqueando assim uma eventual “reponderação
administrativa” do critério da
disponibilidade, por razões de valia prática a observar noutros ramos de
Direito[16].
2.2 Hoje, tem-se por assente que o que interessa como
critério no art.180nº1 c) CPTA é saber, como defendeu SÉRVULO CORREIA[17],
se o poder que define o conteúdo da situação jurídica é discricionário ou
vinculado. O conteúdo da norma é possibilitar a arbitragem em duas situações:
sempre que o acto seja válido e sempre que no acto estiverem presentes
elementos de discricionariedade. Daquela se retira ad contrario a ideia de que se o acto é revogável com base no
mérito é porque é disponível para a Administração, logo arbitrável[18].
2.3 Por último, é meu intuito deixar algumas observações
finais, em jeito de tópicos de (e para) reflexão:
a) De uma maneira geral, podemos afirmar que a intersecção
da arbitragem e do Direito Administrativo, nunca deixa de ter inconscientemente associada a questão da
(in)arbitrabilidade do Direito Administrativo[19].
Para tal, concorrem pré-compreensões mais ou menos difusas sobre o papel
clássico da Administração em tempos idos e também a própria summa divisio entre Direito Público e
Direito Privado no potencial conflito jus
imperii vs. autonomia privada. Mais que certo é, em face do contexto, que o
papel da Administração continuará em mutação. Se a tal associarmos a
relativização hodierna daquela distinção e o progressivo desvanecimento das
“memórias traumáticas”, existirão limites à tendência de progressivo
alargamento do âmbito da arbitrabilidade dos actos administrativos ?
b) Pondo em evidência a possibilidade de impugnar a decisão
arbitral (art. 186º CPTA), o princípio de equiparação de estatutos e
incompatibilidades entre árbitros e juízes e os efeitos de sentença
jurisdicional (maxime de caso
julgado) já atribuídos pela doutrina[20]
e pela jurisprudência constitucional[21]
à arbitragem, parece carecer de
verdadeiro fundamento, em face da equiparação constitucional do 209nº2 CRP e da
integração dos árbitros na justiça administrativa em sentido orgânico, funcional e material[22],
a notada diferença de competência em razão da matéria[23].
Sem prejuízo de reflexão mais aprofundada sobre a questão em apreço, parece que
tal décalage pode ser perspectivada
em termos de “legitimidade social”
(VIEIRA DE ANDRADE) dos árbitros e dos juízes[24].
Isto é, não havendo dúvidas em afirmar que os tribunais arbitrais exercem poder
jurisidicional (v.g. 209nº2 CRP), parece a fonte de poder - convencional - que legitima aqueles tribunais
ser distinta da que constitui o tribunal administrativo – o contrato social, na
forma de ius imperii[25].
No fundo, poderá afirmar-se uma diferença ao nível do fundamento ontológico
entre um e outro? Parece-me que sim, sendo que daqui tem decorrido uma
diferença[26]
(observada como) inerente e natural
dos poderes dos tribunais arbitrais. Assim sendo, importará também ponderar a “parificação da arbitragem” como sintoma,
em última análise, da saúde ou da doença do contrato social enquanto fonte de
poder do tribunal administrativo.
João Tiago Freitas Mendes
19687
subturma 6
Bibliografia
ANDRADE, Vieira
de – A Justiça Administrativa (Lições). Almedina, 2009.
CORREIA, José
Manuel Sérvulo – Direito do Contencioso Administrativo,
vol. I. Lex, 2005.
- A Arbitragem
Voluntária no domínio dos Contratos Administrativos (in Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor João de Castro Mendes, pp. 229-263). Lex, 1995.
ESQUÍVEL, José
Luís – Os Contratos Administrativos e a
Arbitragem. Almedina, 2004.
ESTORNINHO, Maria
João – A Fuga para o Direito Privado.
Almedina, 2009.
- Direito Europeu dos
Contratos Públicos. Almedina, 2006.
MONCADA, Luís
Cabral de – A Arbitragem no Direito
Administrativo; uma justiça alternativa (in Revista da Faculdade de Direito da
Universidade do Porto, Ano VII, Nº especial, pp. 171-186). Coimbra Editora,
2010.
OLIVEIRA, Ana
Perestrelo de – Arbitragem de Litígios
com Entes Públicos. Almedina, 2007.
OTERO, Paulo – Legalidade e
Administração Pública. Almedina, 2003.
SIFUENTES, Mónica – Problemas acerca dos conflitos entre a jurisdição administrativa e
judicial no direito português (in Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, pp. 316-348). Coimbra Editora, 2001.
SILVA, Vasco Pereira da – O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Almedina, 2009 (2ª ed.).
- Em Busca do Acto
Administrativo Perdido. Almedina, 2003.
[1] Em
princípio não se aceitava a arbitragem para efeito de anulação jurisdicional de
actos, pois que o objecto do meio contencioso recurso de anulação é a
legalidade do acto.
[2] Entre
muitos outros, v.ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, ob.cit., p.11.
[3] v. PAULO
OTERO, ob.cit., p. 1057.
[4] v.J.L.ESQUÍVEL, ob.cit., p.78
[5] v.CABRAL
DE MONCADA, ob.cit., p.172
[6] v.
SÉRVULO CORREIA, A arbitragem…, p. 232.
[7] Cfr.
Paulo Otero, ob.cit., p. 105
[8] Idem,
ibidem.
[9] Cfr.
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo…cit., pp. 247-248.
[10] v.
MARIA JOÃO ESTORNINHO, A Fuga para…cit., pp. 58-66; 175-188.
[11] v.
VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca…cit., p. 149 e segs (em particular, neste
ponto, p.152-153)
[12] Idem,
ibidem, p.161.
[13] Neste
sentido, SÉRVULO CORREIA, A arbitragem…, p. 234.
[14] Segue-se
aqui de muito perto JOSÉ LUÍS ESQUÍVEL, ob.cit., p.79.
[15]
Expressão tradicional, utilizada por exemplo por SÉRVULO CORREIA.
[16] Tal
resulta do exposto por ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, ob.cit., p. 82 e segs.
[17] SÉRVULO
CORREIA, A arbitragem, p. 235, nota 10.
[18] CABRAL
DE MONCADA, ob.cit., pp. 180- 181.
[19] A nunca
desmentida arbitrabilidade do Direito Administrativo: exemplo paradigmático
desta feição da doutrina portuguesa da segunda metade do séc. XX MARQUES GUEDES
não afirmava a inarbitrabilidade do direito administrativo; mas indo contra a
jurisprudência dominante do STA que aplicava subsidiariamente o Código de
Processo Civil, entendia não haver à época lei especial que a autorizasse. Na
prática, embora não em posição de princípio, a doutrina daquele autor fazia a
arbitragem depender da máquina burocrática (existência de lei especial),
cortando-lhe a jusante o oxigénio, ao desconsiderar a aplicação subsidiária do
CPC. A acrescer a esta dissociação entre a teoria admnistrativista que admitia
pontualmente – recursos – a arbitragem e a praxis da época, há a considerar a
especialidade da competência especial face à competência genérica dos Tribunais
Administrativos (afirmada desde logo por MARQUES GUEDES), donde se pode retirar
como corolário que atribuir poder aos Tribunais Arbitrais é subtraí-la aos
Tribunais Administrativos.
[20] MARIA
JOÃO ESTORNINHO, Direito Europeu…cit., p.330 e segs. ; SÉRVULO CORREIA, Direito
do…cit., p. 685.
[21] MÓNICA
SIFUENTES, ob.cit., p.340 enumera, com referência àquela “característica”: v.
Acórdão 506/96, Processo nº173/93, DR, II série, nº154, p.9055-6, 5-07-96;
Acórdão 757/95, Processo nº128/94, DR, II série, nº74, p. 4190-4, 27-03-96.
[22] CABRAL
DE MONCADA, ob.cit., p.172.
[23] Tendo
em conta esta e apesar daqueles efeitos, parece legítimo desconfiar se
estaremos perante sentenças e juízes na “pureza dos conceitos”. Não se trata de
questão semântica apenas: pois se se afirma a equiparação daí haveriam que ser
retiradas as devidas consequências materiais, pelo que não choca que se afirme uma
semelhança em nome do nivelamento entre o plano teórico e o plano prático. A
este propósito também não deixa de ser curioso notar que VIEIRA DE ANDRADE,
ob.cit., p.99, nota 133, equipara os tribunais arbitrais aos administrativos
incluíndo estes e aqueles na letra do art.3ºnº1 CPTA para daí extrair a
necessidade de interpretar restritivamente o seu âmbito, à propósito dos
limites funcionais da justiça administrativa.
[24] Tal
raciocínio bebe, mutatis mutandis, da
formulação de VIEIRA DE ANDRADE, ob.cit., p.100, a propósito dos limites
funcionais da justiça administrativa. Não se afigura oportuno nem necessário
entrar por ora na interessantíssima discussão a propósito de saber se e quando
pode o juíz administrativo ditar o conteúdo da conduta a adoptar pela
Administração.
[25] Trata-se
de tirar consequências da natureza jurídica assinalada supra. Neste sentido, v.
SÉRVULO CORREIA, Direito do…cit., pp. 685.
[26]
Julgamos não poder falar-se em rigor de uma “redução”
(SÉRVULO CORREIA, Direito do…cit., pp. 685) pois que essa expressão parece
não dar conta desta “décalage” nos ser apresentada como “facto consumado” (sem
embargo do alargamento do âmbito material da arbitrabilidade administrativa já
sublinhado). Em face da divergência de tipo ontológico que defendemos, a
diferença de poderes resulta da natureza das coisas e não propriamente de uma
opção do legislador.
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